sábado, 11 de novembro de 2017

Anos 69/70

 Viveres III
Ao fundo da “rue trufault”, no último, andar do prédio, o 6º sem elevador, que servia de hotel mobilado, vivia eu, num quarto minúsculo, onde existia uma banca para cozinhar, um duche para me banhar, uma mesa duas cadeiras, cama para uma só pessoa, e um pequeno guarda-roupa. Tinha uma vista espantosa para a Cidade, sobretudo ao cair da noite, através de uma janela onde permanecia por tempo indeterminado, naquelas noites de fim de verão, a contemplar, admirativo, abstrato, como encantado, a beleza incomparável desta maravilhosa e linda Cidade que é Paris. A um passo da “ Butte Montmartre” e do requintado bairro onde se viam crescer as videiras com seus ricos cachos de uvas, a subida até ao Sacré Coeur pelas ruas estreitas ladeadas por casas de construção aldeã onde as pessoas vinham para a soleira conversar e davam as boas horas a quem por lá passava e se dirigia para a Praça do Tertre onde os pintores de renome executavam as suas proezas mediante numerosos espectadores envolvidos na arte e na imaginação criativas, bebendo uma bebida fresca na esplanada abarrotada de gente dos pequenos cafés circundantes, e os que iam divertir-se nos cabarets, dos quais sobressaía o famoso “chez michou;” com os seus emblemáticos óculos azuis, e extravagante vestimenta, o qual conheci mais tarde pessoalmente, no exercício das minhas funções de : “táxi driver”.

 Viviam também aqui alguns conterrâneos oriundos da zona de Vila-Pouca de Aguiar, com os quais me familiarizei sem excessos de confiança, tendo sido informado da reputação deles barulhentos que não correspondia com o meu sentido de pacifista. A disciplina de acesso era rigorosa, e o porteiro, permanente dia e noite à entrada velava pelo respeito, das entradas e saídas, e do silêncio a partir das 22h da noite.
Comecei a trabalhar na fábrica Citroên, em Levallois, no 1º turno das 6h30 até às 15h. Pelas 5h30 da manhã tocava o despertador, levantar e preparar para apanhar o 1º metro. Possuíamos um passe que mostrávamos à entrada dos grandes portões onde quatro porteiros verificavam as entradas minuciosamente. Pelas 10h da manhã fazíamos uma pausa para o café, e após o termo deste tempo, ouvia-se o toque estrondoso para recomeçar o trabalho, dirigindo-se todo pessoal cada um para o seu lugar previamente estabelecido.
Integrei-me bastante bem e rapidamente neste ambiente, e apesar da dificuldade para me levantar cedo de manhã, tínhamos a vantagem de dispor de bastante tempo livre da parte da tarde, que eu aproveitava para ir ao cinema, ou à biblioteca onde podia pedir livros emprestados por 8 dias. Destas frequentes idas ao cinema, surgiu a paixão pela comédia teatral, bichinho que já vinha mordendo desde a minha adolescência, e da minha terra natal onde tinha participado em marchas de rua, e algumas encenações e realizações de peças simples tal como os meios. Um filme marcou-me particularmente: “Mourir d’Aimer” onde Anie Girardo representou magistralmente o “rôle” de uma professora do Liceu que se apaixonou loucamente por um dos seus alunos, amor proibido pela hierarquia que rege as leis da Educação Nacional, e que a levou ao suicídio, deixando dois filhos entregues ao marido e uma carta onde o suplicava de lhe perdoar, e de velar pela felicidades deles visto ela o não poder fazer.
Esta fábrica tinha diversas sucursais onde trabalhavam milhares de pessoas, às quais proporcionava, a prática de grande diversidade de desportos inclusive o futebol. Foi nesta modalidade que me inscrevi fazendo os testes necessários para ingressar na divisão ao meu nível. Treinávamos duas vezes por semana, e jogávamos aos Domingos, com deslocações pagas, equipamentos e fatos de treino, postos à nossa disposição, assim como os terrenos de jogo, situando-se o nosso no Stade Francais em Bobigny.
Fiz aqui, neste ambiente desportivo, numerosos amigos, que hoje recordo nostalgicamente, mas, que nunca mais vi. Pouco importava a cor da pele, que viessem da antiga Jugoslávia, de Marrocos, de Portugal, Espanha, Itália etc. Existia entre nós uma cumplicidade discreta, uma amizade sincera, humilde, honesta que nos unia como irmãos, na partilha do entretenimento apaixonante, no respeito mútuo de emigrantes e filhos da pátria que nos acolheu de braços abertos fazendo de nós os homens que somos com princípios e valores, sem reparar nas posições sociais, as quais tanto afligem os seres humanos hoje em dia, cujos níveis académicos valem mais que tudo, como se os outros que por razões diversas, fossem leprosos contagiantes. Concordo que se orgulhem, mas não sejam cínicos nem desprezíveis, hipócritas nem amnésicos, pois grade parte dos que assim se comportam esquecem de onde vem e por onde passaram seus pais…
Hoje, na solidão dos tempos e do lugar, pesam-me as saudades, como os anos que passaram, esgueirando-se rapidamente, como um sopro, como uma luz que brilhou e pouco a pouco se vai extinguindo com a aproximação da noite. Longe para lá do imaginário, ficaram sepultadas não se sabe onde horas de euforia de delírio de felicidade intensa, em gestos e factos simples tal como sempre foi a simplicidade do meu ego.
Gostava deixar também um breve pensamento para as gentes de Santulhão com os quais passei momentos inesquecíveis, ao Nelo e Américo de Monção, ao pessoal de vinhas, ao Coelho e pessoal de Avintes, de Montalegre, Caves e Porto, jamais vos esquecerei, MEUS GRANDES AMIGOS.


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