domingo, 30 de agosto de 2020

ECOS

Lembro-me daquela Aldeia, - como canta Tony – situada na serra da Nogueira, ou serra da Pena Mourisca, coberta desde sempre pelos seus extensos carvalhais – como reza a história – cuja explicação do seu nome poderá estar na raiz nog-, que hoje se chama: Rebordainhos, e outrora no início do século XIX foi vila do Couto e sede de concelho, com suas gentes que já partiram, mas deixaram para trás, características sonantes, que ainda hoje ecoam aos meus ouvidos, sobretudo aqueles apelidos vindos não se sabe de onde, estapafúrdicos com os quais se identificavam de bom ou mau grado. Gente honesta e trabalhadora, simples, humilde, alegre, escondendo nas algibeiras os percalços, injustiças, infortúnios predestinados, ou alegrando-se com um percurso triunfal de sucesso social e profissional.

No bairro da Chave, que começava no cemitério, por onde passava a estrada de terra batida extensa com 4 km que ligava Rossas Estação de caminhos-de-ferro, via estreita, com ligação à cidade Bragança, através daquele monstro férreo a vapor, havia uma subida com elevação acentuada, onde a maior parte dos transportes móveis ficavam enterrados na lama, até que uma ou duas boas “perelhas” de bois viessem resgatá-los, e o Sr. “Cachulas” através de um buraco da parede da sua residência, ria ás gargalhadas enquanto gritava para o vizinho “Picarete”: mais um! Conta “Malino” e depois dá a lista ao “Fuseiro” ou ao contabilista “Façana” porque o “Jarrete” só cospe para o chão, e o “beiça-torta” ando com os sebos…entretanto chegava o “Moreno” todo vaidoso com dois coelhos e três perdizes na cartucheira e logo deu o seu palpite: que os leve o diabo. Vão passar lá para a fraga da ladeira…

Mais acima, já no bairro do Cubelo, o “Chiotes” andava atarefado com uma “torina” que mancava de uma das patas traseiras, e o raio do ferrador de Rossas nunca mais chegava… entretanto ouvindo aquele banzé saiu dos comandos, numa varanda velha a cair de podre, o “ Coronel” para saber do que se tratava. Como não podia deixar de ser apareceu também o “Doutor” e o “Grilo” os quais já traziam as opiniões formuladas, por ter ouvido o “Direito” dizer que o melhor era matar a vaca e come-la no prado, que com esses malvados todos por aí nem os ossos ficavam!?

Passou-se pela fonte do Espinheiro onde dois ou três calafates, assentados esperavam a vinda das donzelas à água para meter a curalhada, ou levarem um chega para lá. Trinta metros adiante, na fonte grande, outros que sabiam de antemão que aquelas que andavam de baixo de olho iam ali, esperavam como gato o rato, e era à noitinha, quando todos os gatos são pretos, que eles ousavam afrontar as feras tornando-se cordeirinhos tão grande o desejo, e tão rigoroso os pais não as querendo ver de barriga para a frente como tantas outras, antes de saírem da casa onde fora criadas.Na casa da tia Aninhas batiam-se os ovos ao som dos fados do Octávio das Cabanas, e na forja do Ramos batia-se o ferro cheirando a queimado. O Pereira velho veio à janela para brigar com o vizinho por tudo e por nada, mas este não quis paleio, tinha o ferro quente para bater. No cimo das escaleiras a tia “vermelha farejava tudo o que se passava e contava ao “Norato” e ao Morais, porque os “Galanduns” já não lhe davam crédito. Logo por cima o “Patorro” ensinava a “Caldeireira” as regras do bem viver. Só no cimo do morro o “Foguete” apreciava a canalhada na cerca da escola enquanto sua mulher costurava. De tempos a tempos a tia “Fontes” soltava um berro que se ouvia do cabeço cercado chamando pelo seu zé Manel. Junto do cerdeiro, a Benigna cozia o centeio, mediante os conselhos da “Dàvó” e o “Patinge” falava sozinho comentando jogadas de fito nos malhões do 

prado, mas logo saía o “juiz” barafustando que nem tinha sossego na sua casa. Por aqui se fica o bairro da Portela, porque já no prado, na taberna do “Trocho” jogava-se o chincalhão a meio quartilho de vinho, com insultos e palavrões a acompanhar, porque ninguém gosta perder. Na sua casinha o “Almoceras” contava os tostões todos os dias que guardava para comprar um “ “cauny-prima” e o “Piloto” abanava a cabeça cada vez que o via a fazer a contabilidade. O “Fouce” passava carrancudo como se estivesse zangado com o mundo inteiro, já o “Atilano” sorria por tudo e por nada. No bairro das pedras havia também um “Santo” que nunca foi venerado por ninguém e o “Seco” que plantou o freixo do prado onde centenas de pessoas cantaram, dançaram, beberam, e saborearam a maravilhosa sombra dos dias tórridos. Junto da Igreja vivia o “Leque” Malandro! Muito malandro! Ao lado o “Bagueixe” que falava tão baixo e com a boca fechada que mal se percebia o que dizia. Junto da casa verde vivia o “Cuco” longe do Pintassilgo, do Gaio e do Chedre. Era já  o bairro do Outeiro que começava com a casa do “Couceiro” Marquesa, “Torto” “Frade” e “Çuca” a quem partíamos as telhas todas com o jogo da bola na eira do outeiro campo oficial do grupo desportivo de Rebordainhos porque o da cabeça ficava muito longe e era necessário retirar as carvalhas que o invadiam pouco a pouco e hoje deve ser mato grosso. Assim termina o relato dos meus ecos, espero não ofender ninguém, porque tal não é minha intenção, e porque tenho imenso respeito e consideração por toda esta gente que infelizmente já não está connosco.

 



 

sexta-feira, 21 de agosto de 2020

A razão


Quando a voz da razão fala mais alto, e o coração bate mais forte, estejamos longe ou perto, sós ou acompanhados, felizes ou desamparados, lembramo-nos sempre daquele cantinho perdido, quase abandonado, onde aprendemos a dar os primeiros passos, a dizer as primeiras palavras, a reconhecer os sons e os perfumes do que fica para sempre amolecido dentro de nós, a fermentar com a lentidão dos confins da terra, donzela de nobreza singular sem títulos, mas com poderes sobrenaturais, que nos enfeitiça nos transforma em amor incondicional, que guardamos numa caixinha de alimentar sonhos, nostálgica de vez em quando, à qual jamais renunciamos totalmente, porque esta voz, rouca, tímida ou pungente está sempre presente para nos lembrar quem somos e de onde viemos.

A vida dá voltas sem fim, como o rodízio de um moinho, enquanto não lhe cortam a fonte essencial que alimenta a sua rotação, e nós pobres mortais, esquecemo-nos que somos meros passageiros, envolvendo-nos em quezílias insignificantes, rixas familiares por bens ou situações sociais, cortando laços de amor ou amizade que outrora nos uniram com tanta força! Esquecer pode ser fácil para quem transporta a frieza, presunção, as gírias malignas e contaminantes, mas é a maior das cobardias camufladas, que o ser humano utiliza para ignorar ou sair de situações embaraçosas. Lamentamos ou fingimos lamentar situações que excederam a nossa dignidade, quando um de nós parte para a eternidade, e de negro vestidos, apresentamos os pêsames que só são sentidos na linguagem protocolar; vamos a velórios apenas para fazer parte da lista hipócrita, e com flores sem perfume embelezam a viagem final.

A voz da razão falou também em tempos de festividades, que por motivos de saúde não se organizaram este ano. Porém, os filhos da terra vieram numerosos marcar presença como sempre, seguindo regras ou infringindo-as inconscientemente, levados pelo poder do desejo, e a concretização dos sonhos ou saudades das quais apenas podem usufruir de ano a ano.

Voltar à sua terra é sempre um renascimento, é assim que o “Puto de Vale dos Amieiros” descreve a sua vida juntamente com aqueles que amou e conviveu, num livro de reflexões, crónicas, e vivências.

 


sexta-feira, 14 de agosto de 2020

CSPSL Murçós: CSPSL Murçós: O puto de Vale dos amieiros

CSPSL Murçós: CSPSL Murçós: O puto de Vale dos amieiros: CSPSL Murçós: O puto de Vale dos amieiros : Finalmente terminei a minha leitura do livro do António Brás, "O puto do Vale de Amieiros&q...

Primeiro trabalho exercido em França

 

Segunda-feira do mês de Dezembro 1968. Ainda bem cedo, levantei-me, preparei-me e fui tomar o Metro a cerca de 150m da Cité des fleurs, na estação Brochant. Tomei a precaução de antes, verificar no grande mapa as direções a tomar, onde devia mudar, e meia hora depois, entrava na estação Saint Lazare, para tomar o comboio que me levaria até Les Muraux, como tinha ficado previamente combinado com os compatriotas. Levava o endereço escrito num papelucho, que tendia aos passantes, os quais com muito custo me iam orientando, porque a distancia dos trabalhos e o lugar não eram ainda bem conhecidos dos moradores. Porém, cheguei ao local, e as primeiras impressões foram de desalento… havia um abarracamento alinhado, duas grandes gruas, homens de variadas raças, trabalhando nas suas especialidades… construía-se um Liceu de três andares. Fui logo abordado por um dos numerosos trabalhadores que me perguntou sem rodeios o que procurava. – Venho falar co o Sr. … com o chefe.

-Qual deles?

O…

-É comigo gritou de longe o “pisco.”

Levou-me para uma barraca que servia de escritório, e n’um Francês aportuguesado, explicou a situação ao superior, condutor de trabalhos. Pediu-me os documentos (BI) e ordenou que podíamos ir, ficando tudo ao encargo do contabilista.


Voltando-se para mim, o chefe de equipa, reconfortou-me dizendo:

- Aqui estás à vontade… se precisares de alguma coisa, ou se houver problemas é a mim que tens a dizer, que eu resolvo… como sabes já trabalha cá o pintassilgo, o Moisés, o Domingos, e outros que eu trouxe… que sabes fazer?

Sem saber que responder a tal pergunta, e não querendo comprometer a minha admissão, demorei a responder, e o meu interlocutor adiantou:

- Aqui toda a gente faz tudo… se não sabe, aprende… vamos lá.

Levou-me para junto do Domingos, o mais especializado, veterano naquelas andanças. Por detrás de uma placa de cimento vigiava os meus movimentos, chegando com certeza à conclusão mais plausível, que era eu nunca ter visto os trabalhos da construção civil… segurava as escoras metálicas com tanta delicadeza e receio de sujar a camisola, que o “pisco” não esteve com meias medidas: aproximou-se de mim, arregaçou-me as mangas, e, com as mãos cheias de óleo queimado passou-as pelos meus membros superiores, ao mesmo tempo que acrescentava: - quem quer ser pescador tem que se lançar ao mar…

Fixei-me na barraca dos da terra, onde havia instaladas quatro camas, sobrepostas, uma banca para cozinhar, e um fogão de duas bocas pertencente aos compatriotas. Cada um de nós deveria fazer as compras e cozinhar segundo os meios e possibilidades, embora, como era recém-chegado me tenha sido proposto empréstimo de algum dinheiro para as primeiras necessidades, e se quisesse comer juntamente com eles teria de participar nas tarefas, das compras, cozinhar, e lavar a louça. A barraca prefabricada possuía o mínimo conforto, água, luz, e aquecimento, servindo a mata próxima para outras necessidades, para os que não queriam usar o quarto de banho improvisado, para o banho e WC.

Todos estes trabalhos realizavam-se no alto de uma pequena colina, distante do aglomerado de casas de cerca de 2km.

A minha adaptação não foi fácil, mas, com a ajuda dos amigos, consegui aprender a cozinhar, (sobretudo ovos mexidos com batata frita), e as compras nos supermercados facilitavam-nos a taxa da linguagem. Foram seis meses passados, tempo obrigatório do contrato, também para se obter uma carta de “séjour” de “ travaille” e de segurança social.

O trabalho, pouco a pouco, aprendemos a fazer de tudo, e entretanto tinha chegado também o Nelzeira e o Zé, este último tendo passado por numerosas e complicadas dificuldades, ao ponto de ter de falsificar o seu BI porque não tinha ainda 18 anos, e como tal não lhe era permitido trabalhar em solo Francês.

Foram seis meses passados com altos e baixos. O racismo levava os jovens a travar numerosos confrontos de agressão física e moral, alguns deles provocados pela comunidade Portuguesa, que não respeitavam as regras do Nacionalismo, nem tentavam esforçarem-se pela integração cívica que se impunha. Por tudo isto, foram muitas as vezes em que a polícia nos visitou alta noite, nas barracas, pedindo a identificação, e alguns dos mais atrevidos, dormiram na jaula. Para mim, íntegro defensor dos bons princípios, pacifista por natureza, sentia-me mal, entre dois “clins”, tentando sempre distanciar-me dos contenciosos por duas cascas de alho, tendo como objetivo primordial, ganhar dinheiro, e economizar o mais que possível para ajudar os meus familiares deixados em Portugal. Voltei nas primeiras férias, após contrato concluído, com 50 contos nos bolsos, os quais serviram para erguer as paredes da casa de minha avó que tinha ruido com o inverno, onde viviam meus pais.

Gostava deixar uma homenagem muito sentida ao Domingos, rapaz extraordinário, que faleceu por estas terras, vítima de doença insuficiência renal, e ao Moisés que se salvou da broncopneumonia, após longo internamento no hospital de Melun. Fostes para mim seres incomparáveis de bondade, dedicação alegria de viver, mas sobretudo de uma ajuda que jamais esquecerei.

 


sábado, 8 de agosto de 2020

CSPSL Murçós: O puto de Vale dos amieiros

CSPSL Murçós: O puto de Vale dos amieiros: Finalmente terminei a minha leitura do livro do António Brás, "O puto do Vale de Amieiros". Embora já conhecesse muitas partes q...

O "BUFO"

 "Era informador da polícia política

(-Nunca deixei de cumprir o meu dever de português)
agora passa as tardes diante de um bagacito, sozinho numa mesa encostada à parede. Tem oitenta e sete anos, o cabelo penteado com esmero, o nó da gravata, cheia de lustro, perfeito.
(-Há duas coisas que não perco, o patriotismo e o orgulho)
cuida-se conforme pode mas percebe-se que pode pouco, o bagaço dura a tarde inteira, o que comerá ao jantar
(- Com as democracias a darem cabo do mundo o que se espera?)
no buraco onde dorme
(- Um quarto digno)
com um postigozito além do qual traseiras e hortaliças.
Trabalhava nas finanças outrora, no tempo do Senhor Doutor Salazar
(vénia breve)
atento aos desrespeitosos e aos traidores
(lábio inferior a crescer de indignação)
que se atreviam a piadinhas
(- Começa-se na piada e acaba-se na bomba)
acerca do Governo da Nação
(- Até insinuações contra a masculinidade do Presidente do Conselho, palavra de honra)
factos que ele enviava imediatamente por escrito, datados e assinados
(- Não conheço o medo, meu amigo)
para a sede da polícia
(- Assim por baixo mais de mil e quinhentos relatórios)
e, embora não o fizesse por dinheiro
(- Que fique claro: o amor a Portugal não se paga em moedas)
(- Às vezes, nuns apertozitos)
aceitava um subsídio nominal, que arredondava o fim do mês e lhe permitia ajudar a mãe nos remédios
(- Não nasci em berço de ouro e dou graças a Deus por isso)
visto que a idade traz sempre doenças consigo, no que se refere à mãe o açúcar e a vesícula
(- Foram sempre os pontos fracos da minha família, o açúcar e a vesícula)
cujo tratamento, no seu caso, constava do bagacito e uma sopinha ao jantar, tomada lentamente a fim de sentir, durante mais tempo, uns fiapos de couve na boca. Oitenta e sete anos, o mesmo casaco, as mesmas calças, o rebordo do colarinho preto do uso, a língua que desobedecia aqui e ali, empastelando os pontos de vista, embora continuasse lúcido e alerta
(- A memória não falha)
apesar das perseguições e injustiças que lhe caíram em cima
(- Literalmente)
quando o Estado Novo, para desgraça nossa, terminou, substituído por gente ateia e sem moral que se pôs logo a dar independência aos pretos e liberdades às mulheres, pernas ao léu, divórcios, uma vergonha. Os ateus sem moral roubaram-lhe o emprego, enxovalharam-no
(- Houve quem tentasse bater-me, imagine)
o senhorio pô-lo na rua
(- A minha esposa faleceu desse desgosto)
a esposa faleceu
(- Literalmente)
desse desgosto
(- Esteve a soro no hospital quinze dias já vê)
permaneceu que tempos a olhar-me calado, posto que estar a soro no hospital é um facto que impressiona qualquer pessoa
(- Não o arrepia, a si?)
deu uma mirada ao bagaço, por um triz não bebia um golinho, impedindo o cálice de durar três horas, apagou emoções do canto do olho com o indicador
(- Desculpe mas isto mexe comigo)
lá se recompôs a custo, lutando com as tremuras dos ombros, e a vida dele, daí para a frente, um cortejo de calamidades e misérias de toda a ordem, suportados com a dignidade de um Homem
(- Sou da cepa dos que andaram nas caravelas)
sem emprego, sem mulher, sem dinheiro, sem polícia política com quem desabafar, sem amigos até, que por cobardia o abandonavam juntando-se aos ateus sem moral
- (Não tem sido fácil não curvar a espinha)
que não se cansam de apodrecer a juventude, geração após geração, transformando-nos numa récua
(- Estou a medir os termos quando afirmo que récua, estou a ser indulgente)
de homossexuais, drogados e gatunos. Soslaio desconfiado para mim
(- Você não é homossexual, por acaso?)
seguido de regresso à contemplação do copinho
(- Por fora não dá ares mas eles disfarçam-se bem)
e fica na dúvida, a vigiar-me os modos até que, de repente, as mãos lhe tremem
(- Tenho medo) os olhos principiam a descer das órbitas
(- Tenho tanto medo) uma veia do pescoço, enorme, principia a latir, uma criança assoma no fundo de oitenta e sete anos, indefesa, intacta, tão sozinha
(- Não me deixe morrer)
e eu, indeciso, pego-lhe ao colo, não lhe pego ao colo, eu, indeciso, piro-me, não me piro, eu, indeciso
- E agora?
De modo que acabo por poisar-lhe a palma na manga
- Sossegue que não o deixo morrer
com a sensação esquisita, idiota, inexplicável, de ignorar qual dos dois sou eu." (2013) ANTÓNIO LOBO ANTUNES
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