quarta-feira, 18 de julho de 2018

Pontos e paragrafos


Quisera eu, e até almejara, narrar, com a maior das simplicidades transeuntes, um viver ríspido, repleto de sonhos efêmeros, de amores platónicos, de flirts desvairados na imensidão das estrelas brilhantes, ou então recordar com veemência desmedida, lugares ditosos, bênçãos poderosíssimas, alacridade de feitiço esporádico, gestos embriagantes que o silêncio profundo absorve, na timidez da aproximação dos teus lábios ressequidos pelo desejo, enquanto testemunhavam o lacrimejar de uns olhos cor da paixão esvairados, e o pelejar do coração n’um ritmo desenfreado; e o tempo que se nos esgueirava por entre frestas que ambos tecíamos recatados, contentando-nos com o remanescente! E aquela maldita frase destroçadora… - Porque serei eu tanto do teu agrado? – Ostentasse responder objetivamente num frenesim vencido pela mentira, na cegueira do orgulho, na humilhação da questão, no despeito ou na honra, que finalmente sempre me mergulhava num silêncio impotente, por vezes subversivo, mas tão marcante quanto as sequelas de um martirizado. E os anos foram passando deixando na zaga um oceano de pérolas nem vivas nem mortas, esperançadas com petulância pela adversidade divergente, ingrata, cupidez em britar abandonando os principais valores murais.                                                                                                                           Quisera voltar atrás no tempo, ainda sem máscaras nem preconceitos, eramos ambos dois miúdos, e reviver de novo, magicamente, aqueles anseios cativantes de pureza, ingenuidade, e ímpeto, nos encontros marcados por um gesto, um olhar, ou simplesmente atraídos por o possante íman programado para manter-nos unidos até à eternidade porque só se ama uma vez. Por: António Brás Pereira texto e foto.                     




segunda-feira, 9 de julho de 2018

A Matança

por

ANTÓNIO BRAZ PEREIRA

O acto da matança será barbaresco para os defensores dos animais, mas era útil e necessário para a sobrevivência nos meios rurais, sobretudo quando o talho mais próximo se localizava na capital de distrito, a uma distância de vinte e seis quilómetros, quatro deles percorridos a pé, por carreiros de terra batida, até chegar à estação de caminhos de ferro onde o Sr. Azevedo, por duas coroas, passava o bilhete que dava acesso ao comboio a carvão, (mais tarde automotora) que demorava mais ou menos uma hora para chegar à cidade. Tempo e dinheiro gastos para comprar carnes que, ao fim e ao cabo, também eram abatidas por alguém, não justificavam que se não fizesse a matança.

Enquanto puto, a matança do porco, em Rebordainhos, era, para mim, um dia de alegria, abundância e harmonia. Em se aproximando o Natal, o porco entrava na engorda e passava a ser mais mimado com castanhas descascadas, batatas e centeio granulado, cozidos num grande caldeiro posto sobre a lareira que também era aproveitada para encostar os pés molhados e, até, as roupas vestidas que fumegavam como quando se cozia pão! Nesta altura, porque o frio apertava mais e as geadas deixavam vestígios nas poças e tanques de água, o tempo adequava-se à conservação e, por isso, marcava-se uma data, quase sempre aos domingos, para o dia fatal do animal.

A diferença que existia entre as famílias remediadas e as pobres, como noutros aspectos, também se notava neste. Primeiro, pelo número de convidados e, depois, pelo número de animais: de nenhum a três.

Certo Janeiro fomos convidados para casa do tio João Santo que matava os seus três porcos. Saí de casa bem cedo e nem esperei pelos demais familiares – eles sabiam o caminho e, além disso, mal tinha cerrado olho durante a noite

ansioso pelo amanhecer. O dia estava frio e gelado e, de noite, tinha caído uma camadita de neve. Passei diante das poças da Fonte Grande e do Espinheiro cujo gelo, apesar de convidar à patinagem, me deixou indiferente, tal era a apressa de chegar. Mais adiante, perto do pelourinho, dirigi-me para a rua que dava acesso à casa do Bagueixe, com a intenção de passar pelo atalho que desembocava, direitinho, nas escadas do lado da adega, as quais me levariam directamente ao destino. Ia avançando lentamente, escorregando aqui e ali, quando, da Casa do tio Leque, que mantinha a porta fechada, ouvi chamar:

Ó Bagueixe, tens muitas mulheres?...

Como não obtivesse resposta do vizinho cujas paredes eram meeiras (e a comunicação se fazia através dos buracos que nelas havia ou, então, pelas janelas que eram próxima uma da outra), repetiu a mesma pergunta, levantando ainda mais a voz. Do outro lado, em resposta, ouviu-se uma blasfémia acompanhada da seguinte frase:

– Tenho as mulheres no…
– Pois olha, diz o Leque, cornos não te faltam!
– Raios partam o homem que é maluco como os carros!... Não se pode estar sossegado na cama!

Levantando-se em ceroulas e camisola de flanela, o Bagueixe foi direitinho à janela e, mal a abriu, viu à sua esquerda o outro, debruçado sobre a sua, a rir às gargalhadas enquanto apontava para as telhas das quais caíam, longos e cristalinos, muitos candeolos de gelo. Ficaram os dois tagarelando por mais algum tempo, enquanto eu, receoso de perder o mata-bicho da matança, corria para a grande cozinha do tio João Santo.


A mesa enorme estava repleta de presunto, bacalhau passado por ovos, figos e nozes secos. Também não faltava a garrafa de aguardente, queijo e café migado. Alguns convidados esperavam, já, sentados no escano. Junto da 
grande lareira estavam dois potes grandes, um destinado à canja onde uma galinha velha cozia durante horas; o outro, para o arroz do almoço. Todas estas tarefas caseiras eram entregues às mulheres que iam buscar o fígado fresco para refogá-lo. Outras três ou quatro, porque era necessária água corredia, iam lavar as tripas lá para as Ribas, Fonte da Vila, ou mesmo à Ribeira. Voltavam geladas dos pés à cabeça.
Os homens, após o mata-bicho, preparavam-se para enfrentar os bichos. Alguns eram grandes e fortes que nem toiros, razão pela qual eram os mais jovens com “cabedal” e os trintões pujantes os primeiros a ter que arregaçar as mangas. Não podendo deixar transparecer o receio que lhes ia na alma, um após outro, lentamente, com alguma apreensão, iam-se aproximando da porta, por detrás da qual, o manso animal se transformava em fera brava, como que adivinhando as intenções daquela quantidade de homens. O Matador, com grande experiência, visto serem raros a possuírem coragem e saber, entrava na loje logo depois do primeiro homem, que levava uma corda na qual fizera um laço. Logo atrás vinham os mais corajosos: dois deles deitavam as mãos às orelhas do animal, para este abrir a boca onde era introduzido o laço da corda que lhe prendia o focinho, fixando-a nos caninos do animal. Conduziam-no assim para a rua e, a partir daqui, numerosas, engraçadas e verdadeiras passagens podiam ser contadas. Nesse dia da matança do tio João Santo apenas aconteceu que, enquanto alguns agarravam o terceiro porco (pesava duzentos quilos, limpo), parte dos homens preparavam-se para a chamusca do segundo que… pega a correr pela canada da casa do Ferreira e só parou no lameiro do tio António Trocho, perante a estupefacção dos que presenciaram a cena, mais o gozo do tio Leque que gritava às gargalhadas:
– Agarrai-o! Agarrai-o!... Ó Bagueixe, o Santo só chama gente fraca para a matança! …
– Chegavam-lhe os dois que ficaram; a esse fazíamos-lhe nós o fado, respondeu o outro.

Enquanto se fazia a preparação dos cevados sobre bancos largos e resistentes, os garotos costumavam cortar o rabo, prepará-lo e assá-lo nas brasas com duas areias de sal.

A quem não passava despercebida qualquer matança, era ao Hermínio Russo nem ao seu colega, o Carlos Chiote. Começavam por rondar o local quando os animais estavam em fim de preparação e, aproveitando qualquer distracção dos matanceiros, puxavam da peliqueira afiada e cortavam um pedaço magro, junto da espádua e iam, depressa, assá-lo. Nesse dia, era em casa do Bagueixe, de mecha com eles.

De porta fechada, os três comparsas preparavam-se para petiscar, assando o isco nas brasas, com sal e um pedaço de malagueta. Mas o tio Leque, malandro como as raposas, tinha farejado já qualquer coisa, para além do fumo que lhe entrava pelas narinas. O Bagueixe saíra com uma garrafa de quartilho e meio, vazia, nas mãos e voltara momentos depois com ela cheia…

– Cheira-me a comeninzana! … Mas introduzir-se em casa do Bagueixe não era tarefa fácil, sobretudo porque não devia estar só. O Leque precisava de arranjar uma artimanha!… De repente, lembrou-se das bombas que sempre guardava em casa: – E vai ser uma dos foguetes que bota muito fumo e eles são obrigados a abrir. Meu dito meu feito: um grande estrondo, fumo a sair pelo buraco do gato… e os três perto da porta aberta, tossindo, enquanto rogavam pragas ao engenhoso e desenrascado homem com quem foram obrigados a partilhar o quinhão!

– Tende lá paciência, mas nem o pão posso trazer… não o tenho!

Só se almoçava depois de terminados todos os preparativos. Os cevados eram pendurados de cabeça para baixo, para que as geadas lhes dessem a forma adequada. Os muitos convivas sentavam-se à mesa repleta de chouriças, alheiras, presunto e pratos variados. O convívio prolongava-se por todo o dia e os mais idosos só voltavam para casa à noite e, por entre o pipo do vinho e o estômago bem recheado, vinham ao de cima discussões que, por vezes, aqueciam. Nesse dia não pude esperar pelo fim porque eu, o meu primo Tarcísio e o Pintassilgo fomos com as vacas para a Galiana, onde me pus a jogar à queda com o Pintassilgo. Resultou num braço deslocado e no pedido ao Sr. padre João que me levasse a Paçó onde havia um compodor de ossos.

É sempre agradável recordar o dia das alheiras que era um festim, o encher das chouriças (e os bocadinhos a assar e cair na cinza), dos palaiotos (impressionantes aquelas tripas do intestino grosso cheias de massa, e até a bexiga redondinha, fazendo inveja aos jogadores de futebol). Também havia os butelos, que os novos mal conhecem, enchidos com carne e ossos e, quando abertos, depois de cozidos e tostados na lareira, acompanhados com grelos, eram uma delícia por alturas do Entrudo.