Ao fundo da “rue trufault”, no último, andar do prédio, o 6º
sem elevador, que servia de hotel mobilado, vivia eu, num quarto minúsculo, onde
existia uma banca para cozinhar, um duche para me banhar, uma mesa duas
cadeiras, cama para uma só pessoa, e um pequeno guarda-roupa. Tinha uma vista
espantosa para a Cidade, sobretudo ao cair da noite, através de uma janela onde
permanecia por tempo indeterminado, naquelas noites de fim de verão, a
contemplar, admirativo, abstrato, como encantado, a beleza incomparável desta
maravilhosa e linda Cidade que é Paris. A um passo da “ Butte Montmartre” e do
requintado bairro onde se viam crescer as videiras com seus ricos cachos de
uvas, a subida até ao Sacré Coeur pelas ruas estreitas ladeadas por casas de
construção aldeã onde as pessoas vinham para a soleira conversar e davam as
boas horas a quem por lá passava e se dirigia para a Praça do Tertre onde os
pintores de renome executavam as suas proezas mediante numerosos espectadores
envolvidos na arte e na imaginação criativas, bebendo uma bebida fresca na
esplanada abarrotada de gente dos pequenos cafés circundantes, e os que iam
divertir-se nos cabarets, dos quais sobressaía o famoso “chez michou;” com os
seus emblemáticos óculos azuis, e extravagante vestimenta, o qual conheci mais
tarde pessoalmente, no exercício das minhas funções de : “táxi driver”.
Comecei a trabalhar na fábrica Citroên, em Levallois, no 1º
turno das 6h30 até às 15h. Pelas 5h30 da manhã tocava o despertador, levantar e
preparar para apanhar o 1º metro. Possuíamos um passe que mostrávamos à entrada
dos grandes portões onde quatro porteiros verificavam as entradas
minuciosamente. Pelas 10h da manhã fazíamos uma pausa para o café, e após o
termo deste tempo, ouvia-se o toque estrondoso para recomeçar o trabalho,
dirigindo-se todo pessoal cada um para o seu lugar previamente estabelecido.
Integrei-me bastante bem e rapidamente neste ambiente, e
apesar da dificuldade para me levantar cedo de manhã, tínhamos a vantagem de
dispor de bastante tempo livre da parte da tarde, que eu aproveitava para ir ao
cinema, ou à biblioteca onde podia pedir livros emprestados por 8 dias. Destas
frequentes idas ao cinema, surgiu a paixão pela comédia teatral, bichinho que
já vinha mordendo desde a minha adolescência, e da minha terra natal onde tinha
participado em marchas de rua, e algumas encenações e realizações de peças
simples tal como os meios. Um filme marcou-me particularmente: “Mourir d’Aimer”
onde Anie Girardo representou magistralmente o “rôle” de uma professora do
Liceu que se apaixonou loucamente por um dos seus alunos, amor proibido pela
hierarquia que rege as leis da Educação Nacional, e que a levou ao suicídio,
deixando dois filhos entregues ao marido e uma carta onde o suplicava de lhe
perdoar, e de velar pela felicidades deles visto ela o não poder fazer.
Esta fábrica tinha diversas sucursais onde trabalhavam
milhares de pessoas, às quais proporcionava, a prática de grande diversidade de
desportos inclusive o futebol. Foi nesta modalidade que me inscrevi fazendo os
testes necessários para ingressar na divisão ao meu nível. Treinávamos duas
vezes por semana, e jogávamos aos Domingos, com deslocações pagas, equipamentos
e fatos de treino, postos à nossa disposição, assim como os terrenos de jogo,
situando-se o nosso no Stade Francais em Bobigny.
Fiz aqui, neste ambiente desportivo, numerosos amigos, que
hoje recordo nostalgicamente, mas, que nunca mais vi. Pouco importava a cor da
pele, que viessem da antiga Jugoslávia, de Marrocos, de Portugal, Espanha,
Itália etc. Existia entre nós uma cumplicidade discreta, uma amizade sincera,
humilde, honesta que nos unia como irmãos, na partilha do entretenimento
apaixonante, no respeito mútuo de emigrantes e filhos da pátria que nos acolheu
de braços abertos fazendo de nós os homens que somos com princípios e valores,
sem reparar nas posições sociais, as quais tanto afligem os seres humanos hoje
em dia, cujos níveis académicos valem mais que tudo, como se os outros que por
razões diversas, fossem leprosos contagiantes. Concordo que se orgulhem, mas
não sejam cínicos nem desprezíveis, hipócritas nem amnésicos, pois grade parte
dos que assim se comportam esquecem de onde vem e por onde passaram seus pais…
Hoje, na solidão dos tempos e do lugar, pesam-me as
saudades, como os anos que passaram, esgueirando-se rapidamente, como um sopro,
como uma luz que brilhou e pouco a pouco se vai extinguindo com a aproximação
da noite. Longe para lá do imaginário, ficaram sepultadas não se sabe onde
horas de euforia de delírio de felicidade intensa, em gestos e factos simples tal
como sempre foi a simplicidade do meu ego.
Gostava deixar também um breve pensamento para as gentes de
Santulhão com os quais passei momentos inesquecíveis, ao Nelo e Américo de
Monção, ao pessoal de vinhas, ao Coelho e pessoal de Avintes, de Montalegre,
Caves e Porto, jamais vos esquecerei, MEUS GRANDES AMIGOS.