sexta-feira, 24 de agosto de 2018

O GRITO DO DESPREZO

                                                                           O grito do desprezo Por António Braz 
                                                                           
O egocentrismo adentrou um povo cuja prioridade, eram supostamente, os ensinamentos divinos resumidos ao: amar o próximo como a si mesmo. Somos uma população egoísta, suja que não presta, ainda que tentemos invariavelmente demonstrar, com cinismo, o oposto que é prosaicamente o que melhor se acomoda nestes corações de pedra fria sem respaldo.
Nasceu pobre, desamparado, fraco, vulnerável, escondendo-se para morrer como um cão abandonado, num recanto mórbido ao som das risadas traiçoeiras, recatado dos olhares que lhe penetravam a alma com julgamentos repulsivos, apenas e somente porque se refugiara no alcoolismo, quem sabe para esquecer o quê? Havia festividades na terra, alegria, mesas fartas, vestimentas novas, dançava-se e cantava-se bem perto de onde jazia o seu corpo estiraçado num miserável colchão. Quando mais precisou à sua porta ninguém bateu os vizinhos assavam os leitões, preparavam o festim enquanto o seu corpo arrefecia lentamente sem lamúrias, nem sequer uma lágrima perdida na solidão de um lenço de papel! A sua falta nos locais habituais não despertou a curiosidade de ninguém, porque para nós ele não era ninguém um vagabundo que não pediu para nascer, mas que nasceu num monte de palha, filho do (taleigo) que predestinado tão triste! Todo ser humano merece respeito, consideração, independentemente do que a vida lhe infringiu. Na nossa consciência pesam outros caso, um idêntico ao dele: 

Também a Judite ficará para sempre no meu pensamento como uma mulher que apesar de um pequeno grau de deficiência, e diabética, foi encontrada nas mesmas circunstancias,  morta  na sua casa esburacada, quase sem telhado, à fome, à mingua, perante os olhares de gente que não presta; São capazes de dar e mesmo levar a casa dos ricos em troca de favores, ficando indiferentes a casos carentes. Comungam todos os dias, fazem o que o Pe. diz mesmo que requeira os maiores sacrifícios, vão à missa vão ao terço, às novenas aos convívios da hipocrisia. Não, casos deste não existem apenas nas grandes cidades onde a maioria dos sem-abrigo se refugiam aqui, em Murçós, para aqueles que acredita, anda o demónio à solta. Somos nós.
Falei com o Zé pela última vez na quinta feira. Estava sentado junto de uma casa em ruinas, supostamente saboreando a sombra- Então Zé que tal?
- Olhe - respondeu-me com a dificuldade de expressão que lhe era peculiar. Hoje martirizo-me pelo facto de não ter aprofundado a conversa pois teria por certo chegado à conclusão de que tinha fome e cariciava ser visto por um médico? Só foi encontrado na Segunda feira sem vida e o corpo em decomposição avançada. Ninguém merece ter um fim tão triste e tão desprezado.
Chau Zé Foi para ti que a minha vela se manteve acesa durante a missa campal e até que a cera se esgotou

O funeral realiza-se hoje às 17 horas
Descansa em paz


terça-feira, 14 de agosto de 2018

No cais...

No cais         Por António Braz 

 Um ego complexo e indefinido pode arrastar-nos por mutáveis suscetibilidades marcantes. À minha memória vulnerável afloram permanentemente pontos de interrogação mantendo-me preso a uma corda de nós-cegos, ultrajada, amputada, e ao mesmo tempo complacente com numerosas pontas soltas. – Nascer em qualquer lugar – Cantava Maxim le Forestier revoltado com a existência do racismo, xenofobismo e tantas outras injustiças propagadas e consumidas por esse mundo fora… e acrescentava: Não se escolhem os pais» Não se escolhe a família » Nem os passeios de Mallie » de Paris ou de Algés »para aprender a andar… Nêtre quelque par
Descalço, roto e com fome, percorria o puto aquelas ruas enlameadas, cobertas aqui ou além, por folhagens de carvalho, castanheiro, ou palha, radiante como se lhe estendessem o glorioso tapete vermelho, e no silêncio entranhado, surgia a perplexidade dos sonhos que tivera durante o tempo que dormiu tão profundamente: Tinha crescido; começava a ver as diferenças. Passava-lhe pelos lábios um sorriso lacónico, e de cabisbaixo saboreava o ruido das folhagens pontapeando-as; desejava tão profundamente que permanecessem no ar eternamente! Quem teria escolhido por ele para nascer naquele lugar sinuoso, sombrio,
 repleto de ceticismo? Como as noites lhe gelavam as entranhas e os dias afuguentavam o raquítico fragmentado na vã tentativa de agarrar com as duas mãos o que se esgueirava como enguias em ribeiras frias e cristalinas… Durante a escolaridade primária foi apenas dono e senhor de uma simples ardósia comprada por uma coroa na taberna do lugar. Porém, com a inteligência e boa vontade, foi lecionado, concluindo com distinção os quatro anos sem percalços nem interrupções. Temia o emergir futuro e revoltava-se contra a nebulosidade que emergia no horizonte. Brincava e jogava com os putos da sua geração; aprendera a nadar em pequenos tanques de água que servia para regadio tendo passado por múltiplas dificuldades impostas pelos mais idosos pouco complacentes. O nudismo chegara até eles pela força das circunstâncias, não havia fatos de banho… Presenciou e assistiu impotente, durante uma tarde de banhada, à violação de um puto mais novo que ele, obrigado e tão indignado que pela primeira vez na sua vida sentiu vontade de matar aqueles algozes que riam e troçavam, praticando este ato horrível um após outro enquanto outros neutralizavam a vítima.
Lutou intensamente contra a perspectiva  de ver os seus colegas voar para novos horizontes onde poderia morar a felicidade e a prosperidade, e ele continuava ali, naquele cais, hirto como uma estátua, a ver passar os comboios que não paravam para ele poder subir. E sentiu o peso da dor, mais pesado que a fome ou a sede, o desprezo e o abandono, pondo em causa os valores e princípios que tanto prezava, duvidando da doutrina que aprendera e dos ensinamentos dos quais apenas beneficiavam os privilegiados…Nascer em qualquer lugar 
Texto de António Braz e 1 fototo outra partilhada

sexta-feira, 3 de agosto de 2018

Afetos


Afetos                                                                                Por António Braz Pereira
Maio desbotado desabrochava na vastidão de afetos lépidos e ao mesmo tempo indigentes enquanto a luminosidade de raios solares penetrava pelas paredes de granito esburacadas fixando-se no soalho roto, perante o deleite das ratazanas no recôndito predileto de uma casinha de dois compartimentos, um deles assoalhado e abastardado, o outro térreo manuseado ao jeito de cozinha onde o renomado “lançadouro”  pútrido pelo uso e pelo tempo, e enfeitado com jornais  rendilhados  magistralmente para dar um ar de alegria e felicidade inexistentes  ou talvez para engodar o ego? Uma lareira veemente acesa e rodeada pela filharada e alguns familiares, incluindo a parteira, que vieram para o nascimento. A grande porta de madeira corrompida abria-se e fechava-se dando passagem às velhas mulheres que ajudavam no parto num vaivém acentuado pelo trepar das “socas” e saias de cor preta carregadas até aos pés, e de rostos amarroados como se se tratasse de um enterro. Finalmente, na solidão do firmamento e no silêncio abstrato dos que dormitavam soergue-se um chorar infantil determinado e voraz, surpreendentemente como se ninguém o esperasse. Era um puto! Teria havido manifestamente alaridos e sorrisos largos por ser um macho depois de três fêmeas, supostamente; porque na realidade dos factos, era a quarta boca a comer numa casa onde faltava o pão para cada dia, e os dias eram tão longos! … E o puto dias depois decidiu adormecer, tal como num coma barbitúrico, durante mais de 48 horas, sendo chamado o padre para o sopear por não ter sido batizado, considerando a morte deatilada. Renasceu antes de fincar com um berro de revolta, e só onze anos depois foi registado como cidadão português e os nomes que lhe foram atribuídos tiveram recusa absoluta, sendo os progenitores obrigados a escolher outros que deveriam ter sido: o indesejado.