sexta-feira, 24 de julho de 2020

CSPSL Murçós: O puto de Vale dos amieiros

CSPSL Murçós: O puto de Vale dos amieiros: Finalmente terminei a minha leitura do livro do António Brás, "O puto do Vale de Amieiros". Embora já conhecesse muitas partes q...

A Deusa da minha infância


A Deusa da minha infância
Tivemos uma infância conturbada, mas ao mesmo tempo folgazã, repartindo os infortúnios, e partilhando os bons e alegres momentos, com simplicidade e ternura, como se tivéssemos nascido da mesma mãe, um gemelar sem grupo sanguíneo, sem ADN, sem promessas nem juramentos, seguíamos ao ritmo do dia-a-dia, que se transformavam na doçura de um mel só nosso, ou num fel de todos, que o vento veloz se encarregava de varrer para longe, para de novo podermos poisar os pés, naqueles lugares sagrados, lavar as escórias na água cristalina que jorrava da nascente da fonte grande, ou da do espinheiro, ainda muito antes de passarem por lá os demolidores de sonhos, a crueldade humana, os filhos do demónio.
Tinha um nome engraçado, caminhava pausadamente, de cabeça erguida, que enaltecia o seu penteado moderno, copiado numa revista já sem cor, que algum passante extraviado teria deixado cair por despeito, ou lançara fora como lixo… Do seu rosto de uma brancura singular, arredondado e fino, surgia uma protuberância sorridente, e uns sons meigos, delicados e suaves ecoavam, “como mimos” de criança embalada pelo desejo de mulher, uma sofreguidão que antecipava a puberdade, o desejo incontrolável de apanhar o comboio ainda que fosse o derradeiro, que a conduzisse ao êxtase…
Vivia numa casa modesta, construída pelo pai, em granito fragmentado e azulado, soalho de madeira que todos os sábados esfregava tão intensamente que até mudava de cor. Com a higiene não se brincava, e também os potes de ferro fundido brilhavam no alto do “lançador” ornamentado com rufos de jornais antigos, mas que lhe dava um ar de arrebica. Era cautelosa e seletiva, porém, não desdenhava quem quer que fosse, e a sua singular beleza, trazia ao baile pretendentes de todos os meios sociais, embora tivesse as suas preferências, e daí fizesse as suas escolhas.
Naquela deliciosa noite de verão quente, a lua iluminava as ruas desertas, as estrelas contemplavam o céu de um azul incandescente, os habitantes da pacata Aldeia dormitavam no desassossego do calor tórrido, desnudados até às partes íntimas, e nós dançamos, unidos e apertados, como se não houvesse mais ninguém no mundo, como se os restantes dançarinos fossem meros figurinos de uma peça que tornamos só nossa…ma o baile acabou, e sentimos de novo o distanciamento ao qual nos obrigavam, porque os sentimentos não mandam, e os corações sofrem as injustiças mundanas, e nós eramos ainda tão novos! Encostamo-nos discretamente a um canto, mas nem sequer nos podemos beijar, porque os cães de guarda vigiavam-nos constantemente… passamos cada um de nós a sua mão direita por detrás dos nossos corpos, e num aperto cerrado, ficamos tempos indefinidos, como ligados para sempre, à espera que decidissem por nós separar-nos para sempre.

domingo, 19 de julho de 2020

O puto de Vale dos amieiros

Finalmente terminei a minha leitura do livro do António Brás, "O puto do Vale de Amieiros". Embora já conhecesse muitas partes que tinham sido anteriormente publicadas, foi uma sensação diferente . Sentir que finalmente foi concluído um projeto e que se materializou em papel. Para mim, o verdadeiro livro tem que ser mesmo em papel. Mais uma vez me emocionei com a capacidade do meu tio de transcrever de forma tão real e intensa os seus pensamentos e sentimentos. Todos. Mesmo aqueles da infância que ficaram gravados na sua mente a "ferro e fogo". É uma escrita muito genuína e autêntica que prende, do princípio ao fim. A mim ainda mais porque já conhecia muitas partes e porque vivi muito daquilo que é relatado lá. As gralhas são pouco relevantes porque o conteúdo vale por tudo. Aconselho muito a leitura. Para os mais velhos, será uma recordação daqueles tempos acres e doces, ao mesmo tempo. Para os mais novos, um aviso. Nada está garantido nesta vida. Já existiram tempos imensamente difíceis, que não sabemos ainda se se repetirão ou não.

Cronica do pescador da marginal


bo 
Guimarães da Costa a crônica completa, e um abraço pelo interesse na literatura dum dos melhores da nossa literatura.
Que história é essa de quereres ser feliz comigo, ninguém é feliz comigo, sou um chato. Não gosto de conviver, não gosto de sair, não gosto de cinema, não gosto de praia, nem sequer gosto de jantar fora, gosto de estar no meu canto e que não falem comigo. Que raio de felicidade te podia dar? Ficares num canto também, a aborreceres-te? Além disso não reparo nas datas: nos teus anos, nos meus, no dia em que nos conhecemos e portanto não ofereço flores, não dou beijinhos, não abraço, não comemoro, não te deixo de lágrima no olho, comovida, a pôr rosas nas jarras. Gosto de pescar. À sexta-feira à noite saio com a tralha para a marginal e fico ali até de madrugada. E ao sábado. E ao domingo. Não dou pelos faróis dos carros. Não dou pelo cheiro do rio. Acho que não dou pelos peixes. Calculando bem talvez nem goste de pescar: gosto de me sentar na muralha e ver as luzes de Almada reflectidas na água preta, a tremerem. Isto sem pensar em nada. Apenas sentado na muralha a ver as luzes de Almada a tremerem. Como podiam interessar-te as luzes de Almada a tremerem? Fazem-me lembrar olhos exactamente no instante das lágrimas, que vacilam. Se calhar as luzes interessam-me porque nunca choro. E não percebo que história é essa de quereres ser feliz comigo. Trabalhamos no mesmo sítio. Vês-me todos os dias. Almoçamos com os colegas na cantina. Quase nunca falo. Digo:-Pois é de vez em quando para que não julguem que sou malcriado. O jantar é em casa com o meu pai. O meu pai também quase nunca fala: se o silêncio se prolonga demasiado tempo dizemos:-Pois é um ao outro e continuamos a descascar a fruta. O meu pai não tira o cachimbo mesmo quando mastiga: mete a comida pelo outro canto da boca, soltando argolinhas de tabaco. Se por acaso faleceu aposto que não conseguem arrancar aquela coisa do queixo. Disse-lhe:-Não há quem feche a urna com você assimele achou que um buraquito na tampa, ao pé do crucifixo, resolvia a questão, e de tempos a tempos uma argolinha de tabaco subiria da lápide. Só tenho que lhe deixar dois ou três pacotes nos bolsos para quando o fornilho não tiver mais que cinza dentro. De qualquer maneira, na data em que isso acontecer o reflexo das luzes de Almada vai tremer na água.
Para ser sincero acho que é por causa do reflexo que não quero ser feliz contigo. Imagina, se tu te fores embora, eu sentado na muralha com os olhos exactamente no instante das lágrimas, a vacilarem: mil vezes estar num canto e que não falem comigo, mil vezes o cachimbo do meu pai
-Pois é
e eu
-Pois é
de volta. Há coisas que a partir de uma certa idade a gente não aguenta e fiz quarenta e três anos em Março. Quarenta e três, mesmo que a gente o negue, é uma porção deles. Foi-se a minha mãe, foi-se a minha tia do lado da minha mãe que morava connosco, o meu irmão na semana seguinte à esposa deixá-lo, abraçou-se a um comboio em Algés: sobrou um sapato, um bocadinho de calça, a camisola com sangue a vinte metros da linha, uma das hastes dos óculos. (Era míope, esbarrava na mobília sem querer.) Ter-se-á abraçado de propósito ao comboio? Durante semanas, depois disso, o cachimbo do meu pai mais rápido e nenhum de nós
-Pois é
a descascarmos a fruta mudos, com a maldita da faca a falhar, a falhar. Demorou a conseguir cortar o pêssego de novo. Temos a haste dos óculos na gaveta das lâmpadas fundidas e das chaves antigas, que serviam ignoro em que portas. Talvez que se pudesse abrir o
-Pois é
com elas e dentro
-Pois é
o meu irmão a sair para o comboio explicando
-Já venho
e veio em pedaços (alguns pedaços) como um modeo de armar a que faltavam metade das peças, á medida que o cachimbo ia soltando argolinhas. Foi o único momento em que me apeteceu fumar. A minha cunhada refez a vida, desapareceu. Mora em Espanha, contaram-me, com um caixa de banco. Ao regressar da pesca não trago peixe na cesta, deito-o de regresso ao Tejo. Isto antes da manhã, minutos antes da manhã, no receio que as luzes de Almada se apaguem. Não me abraço ao comboio para Lisboa, venho dentro dele com a tralha ao meu lado. Nem um cão na rua excepto um desses cachorros vadios que se não interessam por mim, de focinho rente ao passeio, a murmurar. Percebo que o meu pai se volta na cama. Que a torneira de um primeiro vizinho principia a verter, o que acorda mais cedo para correr no parque numa expressão á beira do enfarte ou do orgasmo. Ao ver-me no espelho a minha expressão muda num estalinho como os números dos relógios digitais onde sou um monte de zeros. Não acredito que tu feliz com um monte de zeros, a aborreceres-te num canto também. Se me perguntares se gosto de ti digo que sim. Ou seja diria que sim no caso de a haste dos óculos não estar na gaveta das lâmpadas fundidas e das chaves antigas. Mas está. Portanto o mais que posso é declarar
-Pois é
e pensar noutra coisa. Tenho pena. Palavra de honra que tenho imensa pena e a faca volta a falhar o pêssego, desajeitada. Apetece-me, calcula, oferecer-te flores. Não ofereço. Abraçar-te. Não abraço. Reparar nas datas. Não reparo. Fico para aqui de mãos nos joelhos. E, como não gosto de sair, se me convidares para o teu casamento desculpa mas não vou. Contribuo para a prenda dos colegas de trabalho
-Falta você, ó Guedes
e fico reflectido no tampo de água preta da secretária, a tremer.

Crônica do pescador da marginal.

domingo, 12 de julho de 2020

CSPSL Murçós: CSPSL Murçós: CSPSL Murçós: O Meu livro

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Envelhecer

 O envelhecimento é um dos fardos mais pesado que a vida legou, aos que não tiveram percalços, na diversidade dos caminhos pelos quais enveredaram, até chegarem à encruzilhada final. O tempo, que sempre os acompanhou, deixou marcas estampadas nos rostos achavascados pelas rusgas, sinais de tempestivas passagens, em dias de calor tórrido, ou em noites cortantes pela aragem glacial, que passava e barria, sem dó nem piedade, tudo o que lhe aparecia pela frente, deixando impregnadas e bem visíveis, marcas que os acompanharão até à última morada. Os cabelos foram caindo pelo a pelo, tão numerosas foram as dores de cabeça, para trazer o “cibaco” aos filhotes, que de bico aberto, esperavam esfomeados… E, quando o brilho daqueles complacentes olhares surgia timidamente como reflexo de felicidade, abandonavam o ninho, sem se voltarem para trás, esquecendo tudo, mesmo heranças materiais e sentimentais, cujo valor só lhes acarretava problemas e dificuldades. Como pode um coração, que outrora bateu ao ritmo do amor estagnar? Os seus batimentos têm hoje o sentido das contas bancárias, levando ao limite do imaginário, ações indignas, comportamentos descabidos, atos ignóbeis, que mais tarde pagarão, quando já estiverem arrependidos, sendo tarde demais.
Contava-me a tia Alice, saboreando a sombra das parreiras junto à sua humilde casinha, já caminhando para os noventa anos, cravada de doenças, algumas delas talvez imaginárias, mas que a apoquentam e combate com veemência e coragem dia após dia.
Situando-se na sua juventude, elogiava os preceitos de alguns rapazes, mais ou menos da sua idade, como sendo os melhores dançarinos da terra adotiva, porque ele era natural de Podence. - O Toninho dançava bem, e o Isaías era um as, assim como o Feliz (nomeada) mas, esse tinha uns pés muito grandes, e abalroava as raparigas e também era muito gordo…
- Um dia fomos todos à festa de Pombares. Eramos uns doze ou mais. A pés, subimos até Espadanedo, Bousende; atravessamos a serra, e há hora da chegada da banda de Pinela já lá estávamos. Tínhamos lá família, tanto é que os de Podence também vieram. O santo que se festejava, (creio ser o São Cristóvão,) um santo que não olha para a frente, porque era marinheiro pescador, e Deus deu-lhe a função junto de uma ponte para passar às costa, os homens para o outro lado. Já tinha passado dois , três, até que lhe apareceu um que ele já não queria passar, pois já tinha passado dois e três e agora ia só com um? Contudo carregou o sujeito, franzelinho, mas que pesava que nem mil diabos. Era Deus e como castigo da sua recusa recebeu a obrigação de olhar sempre para o lado
- Comemos e bebemos todos os convidados, eu, a Maria Madalena, o Toninho, Isaías, e os Torres mais os de Podence, fomos para o arraial. Aí gerou-se uma confusão com os melhores dançarinos, até que se desafiaram o Isaías e um de Podence que escolheu dançar com a irmã que dançava maravilhosamente. No final ganhou o de Podence, mas o Isaías também merecia só que não tinha um par à altura. Aí dormimos numa sala grande com um cobertor por cima, e no dia seguinte cá voltamos contentes e satisfeitos.
Eis a história de tempos idos contado com a maior das simplicidades, que traz de volta nostálgicas recordações, que a juventude nem sempre tem tempo para ouvir, porque sem interesse para eles, mas será que vão pensar sempre e só neles?
Pombares é uma pequena aldeia no cimo da serra, que sempre pertenceu à paróquia de Rebordainhos, pelo que o Pe. João todos os fins-de-semana
mandava-me preparar o cavalo com o qual fez centenas de vezes o percurso com chuva neve ou sol dormindo na casa do Sr. Brinço para no dia seguinte celebrar. Eram grandes amigos, e muitas foram as vezes em que comemos na sua casa e ele na do Pe. João. Gentes simpáticas e humildes, que vivia exclusivamente da agricultura, nuns cantinhos férteis que os dignificavam.
Hoje pertence à união de freguesias de Rebordainhos, terra pela qual tiveram sempre grande estima e consideração, e reciprocamente. Também eu alimento um grande carinho por esta terá e suas gentes por diversa e variadas razões.




quarta-feira, 8 de julho de 2020

CSPSL Murçós: CSPSL Murçós: O Meu livro

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Dia de sorte II parte

 Dia de sorte II parte (Ficção)
O Alfredo trabalhava, desde pequeno no campo. Estudar não era o seu incito predileto. Tendencialmente virado para engenhos, sempre com dedicação e empenho, vivia feliz, naquele mundo aprazível onde podia manifestar o seu interesse incondicional, uma libertinagem saudável, e um desejo profundo que lhe trazia alegria e felicidade. Foi contratado para trabalhar na herdade dos avós de José, uma grande quinta, lá para os lados de Chaves. Natural de Marco de Canaveses, onde residiam ainda seus pais e mais cinco irmãos, adorava a sua terra de beleza singular e costumes que trazia bem guardados no coração. Porém, encontrar trabalho na região tornou-se complicado e quando viu aquele anúncio no jornal, encheu-se de coragem, mas de coração apertado, por ter que deixar para trás momentos inesquecíveis da sua infância, a família que tanto amava, os amigos com quem cresceu, resolveu num impulso apresentar-se à entrevista marcada para sexta-feira 13 de agosto. Entrou para o seu velho carro, um Opel corsa com mais de vinte anos de existência, pôs o velho ponto azul a funcionar, e quando tinha já percorrido uns setenta kms, a velha máquina começou a soluçar, não porque tivesse também pena de deixar a terra, mas por supostamente uma avaria qualquer.
-Mau, Maria… murmurava o Alfredo, enquanto descia para ir ao motor ver o que se passava
O fumo saía como de uma cheminé de um comboio a carvão, o que era mau presságio, mas como era engenhocas, verificou que lhe faltava água, por conseguinte só lhe restava ir à procura, naquele ermo perdido. Andou cerca de cinquenta metros a sul por mato denso, e de repente chegou-lhe aos ouvidos o som de um ribeiro não muito longe, Encheu um garrafão plástico que andava solitário pela mala, voltou e refrescou o motor da velha carcaça, a qual precisou de várias tentativas para começar a trabalhar. – Bonito! Exclamava enquanto seguia viagem. Tinha percorrido poucos kms quando se depara com uma enorme vara de javalis que ocupavam toda a estrada. – Olha estes! Saiam daí que tenho pressa…
Só uma hora depois os animais, talvez já esfomeados resolveram, deixar a estrada mediante a satisfação do automobilista.
- Já não era sem tempo! Olha o relógio e reparou que estava atrasado para entrevista. Contudo acelerou para ganhar uns minutos, e numa curva mais apertada, encontrou-se com uma máquina agrícola de grandes dimensões que o obrigou a sair da estrada para evitar o embate frontal. Saiu ileso do acidente mas o automóvel teve de ser rebocado para chaves e o pobre Alfredo acompanhou-o- Porra!.. – Gritou ao lembrar-se – hoje é dia de azar…
Chegou à entrevista já passava das 15 h o que deixou mal dispostos os Avós de José, que por acaso também se encontrava na herdade de visita. Após numerosas e detalhadas perguntas, com uma ajudinha do neto, chegaram a um consenso, que se efetivou naquele dia mesmo, já que o rapaz tinha contado as suas aventuras para chegar até ali, e não tinha carro para voltar a casa. Foram-lhe mostrados os aposentos nuns anexos junto da herdade, com cozinha, sala de banho, quarto mobilado e o mais necessário para as suas comodidades.
Os dois rapazes simpatizaram um com o outro logo nas primeiras aproximações, e sempre que José tinha uns dias de férias, vinha visitar os avós, os quais repararam que o fazia mais frequentemente que de costume. Não se iam queixar, pois adoravam o neto e era recíproco o afeto.
Um dia, na casa dos seus pais, encontrando-se só com a mãe, aproveitou para lhe revelar que simpatizara com uma rapariga na faculdade, que saiam, e até já se tinham beijado.
- Isso é normal meu filho… quem é ela? Pertence a boa família?
Não sei. Nunca entramos em pormenores referentes aos familiares.
- Mas devias informar-te filho! Há por aí tanta gente a querer aproveitar-se…?
- Mas eu acho que gosto da Cindy…
- Gostar não basta… mas fica sossegado que eu vou tentar informar-me.
- Já nos beijámos, e…
- Também é normal. És um homem e como tal, não seria conveniente se fosses atirado por homens, para além da vergonha da família, e da necessidade de teres um herdeiro, que o Estado não se demora a levar o que lhe não pertence.
José ficou mergulhado em reflexões, pensamentos que o martirizavam, não conseguia encontrar a sua verdadeira identidade, e o que era mais conveniente, teria de ser posto em prática, independentemente dos custos futuros. Iria formar-se magistrado, e como tal, sacrificaria tudo quanto fosse necessário, mas jamais dececionaria a sua família, e uma profissão prestigiosa. (continua)




domingo, 5 de julho de 2020

CSPSL Murçós: O Meu livro

CSPSL Murçós: O Meu livro:  O meu livro

Dia de sorte


Dia de sorte: ficção

Era sexta-feira, dia treze de Agosto, para uns sinónimos de má sorte, para outros de boa sorte, mas não há boa nem má, assimilamos simplesmente os fatos aos acontecimentos, dos quais extraímos, convenientemente, desejos e vontades, que se enquadram nos caixilhos que previamente preparámos, ou a moldura é pequena demais…
O José, trabalhava numa fabriqueta de sonhos, daqueles que aparentam ser o que jamais serão, mas que cativam a juventude, como é costume dizer: “ nem tudo o que reluz é ouro”?
A sua infância foi dourada. Filho único, de uma família cujos progenitores, também eram filhos únicos, pai arquiteto e mãe médica, foi criado e embalado em berços de ouro, por um pai discreto, distante, frio, e uma mãe galinha cujo” slogan”: a distância é o fascínio do amor, de Corrado Alvaro, que é como quem diz: sempre por perto, sempre vigilante, fazendo por ele escolhas, opções, minando-lhe a autonomia desde a sua mais tenra idade, para o bem de não se sabe quem, consciente e convicta de que as vivências protocolares, trariam de volta o resultado esperado, como se o destino de um ser humano pudesse ser alterado, de uma barafunda medonha, um cortar de “voadouros “em tempo útil e necessário para deixar o ninho.
José nunca teve aqueles amigos que tanto desejava ter, nem na primária, nem na secundaria, e muito menos na faculdade, porque apenas contactava com eles nas aulas, acatado num canto discreto, sempre de olhar fixo no vazio à procura da sua verdadeira identidade… via os rapazes da sua idade jogar à bola, de mãos dadas com raparigas, ou em grupinhos dos quais ele se sentia excluído. A porta de sua casa esteve sempre fechada para os que tentaram aproximar-se dele, tornando as relações de amizade distantes daquilo que supostamente costuma acontecer, sobretudo na idade da adolescência… tinha já dezassete anos, e, as relações amorosas dos seus colegas deixavam-no apreensivo, com a pergunta que mentalmente se fazia todos os dias: Serei eu diferente? Mergulhava novamente em profundas reflecções e sentia o seu corpo arrepiar-se… um pequeno suor invadia-lhe o dorso, e aqueles olhos meigos e ternos, inundavam-se num silencio enternecedor. Naquele dia chegou a casa triste, o que não passou despercebido à sua mãe, que vigiava permanentemente todos os seus gestos e atitudes. Subiu ao seu quarto no andar de cima, e suavemente deu três pancadinhas na porta. – Entre – respondeu uma voz magoada do interior.
Que tens Zezinho – perguntou a mãe com certo enfado
Assentado na beira da cama, com uma das mãos segurava o queixo, cabisbaixo, apenas respondeu:
- Não é nada… coisas minhas, não se preocupe mamã.
- Como não me devo preocupar vendo-te entrar em casa triste e nem sequer me vieste dar o beijo de costume…
- Desculpe mas… tenho já dezassete anos, e vivo como um miúdo de onze… sem amigos nem amigas, não convivo com ninguém, passo o meu tempo daqui para a escola, e da escola para aqui, estudo, janto e deito-me. Acha que sou um rapaz normal?
- Claro que és. Anormais são aqueles que vadiam, não aprendem, e não tem educação nem notas para tirar um bom curso.
- Então para si a vida resume-se ao que acaba de citar?
- Claro que não. Mas… para o resto tens ainda a vida toda pela tua frente…
Mais uma vez a mãe arranjou argumentos para calarem o desespero de um jovem que não pensava por ele, que não decidia por ele, que não vivia no seu verdadeiro corpo, que sentia que alguma coisa diferente o habitava, mas não podia gritar o desconforto, nem mesmo confidenciar, com receio de chegar à conclusão que o martirizava, tantos eram os índices que apontavam na mesma direção.
Entrou na Universidade de direito, com aspirações de magistratura, proeza que orgulhava os progenitores, mais manifesta na mãe depois de tantos esforços. Mas a sua maneira de viver continuava a mesma. Tinha-se já conformado e acomodado com este in viver, tirara a carta de condução e os pais ofereceram-lhe um carro á sua escolha. Escolheu uma marca reputada estrangeira, topo de gama, de cor azul claro e uma potência que lhe trazia alguma adrenalina, e um pouco de liberdade nas suas deslocações.
Andava no terceiro ano, quando começou a simpatizar com uma rapariga que vinha assentar-se à sua mesa no restaurante da faculdade. Era uma rapariga jovial, e falava com frontalidade, e à força de tantas conversas, a rapariga começou a sentir um fraquinho pelo Zé pacato. Tomou as rédeas dos acontecimentos e chegaram ao primeiro beijo, ao escurecer de uma noite estrelada e céu limpo. Apercebeu-se do embaraço do rapaz por não saber beijar, mas, não manifestou qualquer desconforto tentando guiar ela que já tinha experiencia. O José sentiu pela primeira vez na sua vida o efeito de uma relação amorosa e apesar de não desgostar, algo ou alguém o puxava para as reticências, teria de falar com a mãe.
(continua)