terça-feira, 28 de junho de 2022

Dia de sorte50+1

Dia de sorte 50+1 por António Braz Foram as férias de quem pensa estar a sonhar, e receia acordar envolvido em papeis, reuniões, e olhares suspeitos que nos contraem e avivam para uma realidade penosa onde os mistérios rivalizam e ganham sempre. Pareceu-lhe ouvir bater levemente à porta do seu quarto, vestiu o “robe de chambre” em seda azul turquesa, meteu os pés nos chinelos que o avô lhe emprestou, e a passos lentos foi abrir. Era o avô que encostado ao batente da porta fixando-o de olhos molhados, um sorriso meigo e terno, numa perplexidade hilariante sem que as palavras encontrassem o sujeito da sua visita, e o mágico encanto prendendo-o à felicidade que tanto desejava para o neto retinham-no num desejo eterno. -Então… avô? Não se sente bem? -Pelo contrário filho, é a felicidade que me retém e que gostaria que fosse eternamente. - Francisco emocionou-se, porém perguntou: Já são horas de tomar o pequeno almoço? Sim… não, os teus pais esperam-te na sala de visitas… Recuso ver uma mãe que já não tenho, assim como um pai do qual desisti, há já muito tempo. A minha família vive nesta casa, não preciso de outra. - Sabes quão ingrato é não saber perdoar. Não sabes? Também veio o teu filho, já quase um homem, que tem os teus atributos e não tem culpa de nada. Francisco reviveu em poucos minutos toda a sua vida; um viver que coroava de espinhos o que podia ter sido um mar de rosas. Não ousaria contrariar o avô, tanta estima e carinho lhe dedicava. Constrangia-o aquela situação que jamais pensou vir a acontecer. Pediu ao Avô que entrasse e se assentasse numa poltrona junto dele esperando chegar a um consenso. Já instalados, segurou-lhe as mãos tremulas, e num ímpeto de carência, de amor e carinho, segurou-as com tanta força, enlaçadas nas suas, como quem receia perder a única razão de viver, neste mundo de injustiças. Depois beijou-lhe carinhosamente aquele rosto enrugado, que o passar do tempo se encarregou de esbanjar, e os diversos problemas que foram surgindo acompanharam uma caminhada pesada, mas da qual se podia orgulhar. Finalmente foi quebrado o silencio, e Francisco disse: - O Avô sabe que eu nunca lhe desobedeceria, nem por tudo quanto há no mundo… Porém, após a conversa que vamos ter a meu respeito, a qual sei que o tem envelhecido, e provocado noites sem dormir, aceito que o meu filho me venha visitar ao quarto com o qual vou conversar de humano para humano. Quanto aos meus progenitores, diga-lhe apenas que nos perdemos para sempre. - Filho? Um dia vais ter de esquecer o passado e ponderar para voltares para o seio familiar, cuspindo esse rancor que não é propriamente teu. Não podemos viver eternamente sós, e perdoar é um gesto maravilhoso que só nos engrandece. - Talvez um dia avô…. Quando me sentir preparado. Tenho-os aos dois meus queridos avós, e no meu quarto, ajoelho diante de um retrato gigante, o vosso, para rezar, todas as noites antes de dormir. O avô não resistiu a tal revelação, uma dor sufocava-lhe o peito enquanto os olhos derramavam lágrimas que corriam a fio até se desfazeram nos cantos da boca trémulos e já quase sem elasticidade. - Avô. Avô, sente-se bem? - Já passa meu filho… os anos não perdoam. Dá-me só um copinho de água e vamos lá à conversa que ficou suspensa naquele dia no jardim. - Como deve ter compreendido, eu nasci diferente das outras pessoas. Foi talvez uma punição ou um erro de gestação, contudo, sacrificar-me-ei até ao fim da minha vida para salvar a reputação familiar. - Será que a reputação vale o teu sacrifício? Tu não tiveste culpa de nada, foi um dia de azar… milhares de pessoas lidam com situações idênticas, atirando para trás preceitos e complexos destrutivos, tu és tu e o resto que importa? - A minha luta foi severa, mas consegui superá-la. Fui obrigado a abandonar a casa que me acolheu e me deu tudo o que tenho hoje por razões que não vale a pena detalhar. Hoje vivo numa linda casa, não tanto como esta, com jardim, e uma empregada que vem todos os dias fazer limpeza, comida, compras e tudo o que necessito. Tenho um emprego maravilhoso que adoro, um automóvel na garagem de que preciso mais? - De convencer-te a ti próprio do que és e vales, e não deixar que os julgamentos alheios te afetem e apodreçam a vida. Promete-me que vais ponderar e tentar encontrar a felicidade que mereces, mesmo que pagues o preço dos julgados inocentes. Prometes? Sim Avô prometo. E agora por favor mande subir este rapazola que também está inocente do que lhe aconteceu. - E que digo aos teus pais? - Que aguardem que eu termine a conversa e podem partir descansados, estou bem. Aquele homem sage saiu de cabis-baixo e passos reticentes, e logo de seguida ouviram-se umas pancadas tímidas na porta do quarto de Francisco. - Entra respondeu este levantando-se para acolher pela primeira vez o seu filho que nunca desejou, mas o destino colocou no seu caminho e responsabilidade, dignamente. Tinha já quinze anos, era alto e de feições admiráveis, que o revia a si mesmo no espelho, uma certa timidez, e pouco à vontade dava-lhe um nervosismo aparente. - Assenta-te que precisamos conversar. O rapaz obedeceu, sem balbuciar palavra. -Sabes que és meu filho? O rapaz respondeu afirmativamente com um aceno de cabeça. - Quero que te sintas à vontade junto de mim e me fales do que tem sido o teu viver já que o resto suponho te tenha sido dito pele tua mãe. - De que resto? Francisco sentiu-se furioso e ao mesmo tempo piedoso com o filho que ignorava a história de princípio ao fim. - Que mesquinhez meu deus.

sábado, 25 de junho de 2022

Tapa massa enquanto o peneireiro passa

A estrada designada como:” estrada da vergonha” já foi remendada por mais uns tempos, talvez um mês? São os procedimentos de um País mal gerido e administrado, talvez o único da EU, que vende e aluga as dores de cabeça a prestadores de serviços, que espremem ao máximo os seus funcionários, enquanto eles, instalados em poltronas confortáveis como paxás esperam simplesmente a chegada do fim de mês para recolher frutos doirados, mas, envenenados, porque o que é lucrativo para uns também o seria para outros. No caso deste ramal de estrada camarária é simples contabilizar as despesas mensais, x 12 meses ou anuais x 3 que seria o valor de um tapete com espessura de 2cm multiplicado por 5m de largura e mais ou menos 2 km de distância. Mas não. Os fundos de financiamento autárquico enviam aquela verba, e não é assim tão pequena, trimestralmente ou mensal e os autarcas gerem tendencialmente segundo critérios repressivos, mesmo que os casos tenham passado na assembleia. Surge também um obstáculo que é a linha cartográfica que divide os concelhos. Lembro-me, quando ainda era um puto e cavalgava este trajeto em terra batida para levar os alimentos à D. Denérida que lecionava em Espadanedo, e já nesse tempo havia divergências, esperando sempre que o outro concelho desse o primeiro passo no asfalte, e nem um centímetro para lá do território marcado com tinta vermelha. Este procedimento é um doi que espanta, qualquer que seja o partido em funções. Sendo eu antagonista de Basta, Chega, Bloco, PPC, Ps e PSD, apenas um revolucionário solitário dos direitos humanos angustia-me ver e ouvir graxistas com vários empregos ou funções que toda a gente diz só servirem para matar a cabeça, mas que deixaram tudo por ela como canta o zé cabra. Quem por aqui mora paga o IMI nas datas marcadas, IVA, IRS e por aí fora, e os direitos encafuados em gavetas. Enquanto não chega o pai-natal para dar um abanão daqueles que fazem mossa, o que não aconteceu com os pinheiros que eu vi plantar, e foram vendidos enquanto o diabo esfrega um olho, , mesmo revertendo apenas 60%. Passar 2 anos e meio a servir a Pátria, uma Pátria onde cada um arrasta para o seu lado, valeu a pena?

terça-feira, 21 de junho de 2022

Não foi o que podia ter sido

Não me procures mais. Para quê? Já não sou, já não estou, já não serei. Fui o quê, aliás? Uma companhia agradável, uma pessoa com quem gostavas de estar: palavras tuas. Alguns beijos, algumas carícias, dedos que se encontravam, mas eu queria-te para além do corpo. Queria tudo e não podias dar-me tudo. Houve alturas em que te sentia hesitante, e depois a muralha de novo, os tijolos do teu medo, da tua falta de paixão, entre nós. Isso tenho que agradecer-te: foste sempre honesto comigo. Mas a tua divisão interior impedia-te de te aproximares. E não vieste, completamente, nunca, conforme nunca escutei de ti a palavra amor. Outras palavras que quase queriam dizer o mesmo porém não dizias. Não dizias, não dirás e, mesmo que o digas agora, não estarei lá para ouvir. Claro que vou ter saudades, claro que vou sentir muito a tua falta, muito e durante muito tempo. Mas quiseste assim e eu, que remédio, aceitei. O que podia fazer senão aceitar? Dei-te o melhor que tinha. Em vão. – Ajuda-me insistias tu, e tentei com todas as forças, e perdi. É difícil aceitar que perdi mas perdi. Agora? Durante uns tempos vou ficar assim, perdida. Depois não faço a menor ideia do que acontecerá. Está fora de questão voltar, fora de questão pedir ainda. Não se trata de orgulho sequer, trata-se de inutilidade. É preciso aceitar o fim das coisas e eu, que remédio, aceito. Aceito. Aceito. É pouco natural que um dia nos encontremos, as nossas vidas são tão diferentes, não acredito que nos cruzemos mais. Não te culpo seja do que for porque não tens culpa seja do que for. E só posso agradecer o que me deste. Uns meses felizes, ou quase felizes, ou com tudo para serem felizes é muito. Para mim é muito. E estou-te tão grata por isso e por ter acreditado numa vida inteira contigo. Não me dói que não seja: dói-me que tenhamos perdido, dói-me o gosto insuportável da derrota. Doem-me os sítios onde estivemos, dói-me a ausência do teu sorriso. Isso sei que me vai doer para sempre. Desejo, do coração, a tua felicidade. E que me esqueças, não é assim tão difícil, vais ver. Daqui a umas semanas estarás bem. Livre. Sem inquietações nem perguntas. E isso já vai ser tão bom. Eu fico por aí. Pode ser que de quando em quando oiças por acaso o meu nome e um estremecimentozinho qualquer numa qualquer parte de ti, que felizmente passará depressa. E, depois, mais nada. Ou esse sorriso passageiro que a gente dá às recordações defuntas. Porque não passarei de uma recordação defunta, cada vez mais pálida na tua memória até deixar de existir por fim. E, ao não existir, nunca existi. Se te perguntarem – Conheceste? a resposta sincera é – Não tenho a certeza mas creio que conheci e depois, é claro, pensa-se noutra coisa. Não temos assim tanto espaço cá dentro para o ocupar com recordações mortas. Há coisas muito mais importantes do que uma pobre sombra que tenta sorrir e não quiseste guardar. António Lobo Antunes
Saudades. Nas horas mortas da noite Como é doce o meditar Quando as estrelas cintilam Nas ondas quietas do mar; Quando a lua majestosa Surgindo linda e formosa, Como donzela vaidosa Nas águas se vai mirar! Nessas horas de silêncio, De tristezas e de amor, Eu gosto de ouvir ao longe, Cheio de mágoa e de dor, O sino do campanário Que fala tão solitário Com esse som mortuário Que nos enche de pavor. Então — proscrito e sozinho — Eu solto aos ecos da serra Suspiros dessa saudade Que no meu peito se encerra. Esses prantos de amargores São prantos cheios de dores: — Saudades — dos meus amores, — Saudades — da minha terra ! (Casimiro de Abreu---)

segunda-feira, 20 de junho de 2022

Murçós dia de S. António Uma pequena amostra do que foi um dia memorável para as numerosas pessoas vindas de Paços de Ferreira; Espanha, Bragança Macedo e freguesias limítrofes, estupefactas para as que era a 1ª vez, e de alegria num convívio fraternal com comes e bebes, cantares e danças não esquecendo os jogos tradicionais e o vasinho de manjerico acompanhado do pão cozido para a cerimónia. Missa campal e depois festa rija até de madrugada. Eu só me foi possível assistir a partir das 14h30 devido a compromissos no Porto, mas creio já não serem necessárias palavras cuja boa reputação está já estendida a vários continentes como sendo um dia inesquecível dedicado ao santinho que protege a Aldeia. Não faltou a boa sardinhada assada e com abundância, e carnes de toda a espécie. Gratidão para os mordomos, e também pela iniciativa de o peditório reverter para o Carlos Salsas e família que atravessam um momento difícil das suas vidas no Reino Unido. Que o S. António vele por todos nós

domingo, 12 de junho de 2022

Citações de Fernando Pessoa

O AMOR DA MINHA VIDA ❤ Ele tem oitenta e tantos anos e insiste em levar a sua esposa de mãos dadas para onde quer que eles vão. Quando perguntei por que a sua esposa anda distraída, como se não seguisse ninguém? Ele respondeu: Por que ela tem Alzheimer. Então eu perguntei: a sua esposa se preocupará se você a soltar ou simplesmente você se cansar? Ele respondeu: ′′ Ela não se lembra... Já não sabe quem sou eu, há alguns anos que já não me reconhece ". Surpreendido, eu disse: ′′ Que legal e mesmo assim continua de guia no caminho todos os dias apesar de ela não o reconhecer ". O idoso sorriu e olhou nos meus olhos. Então ele disse: ′′ Ela não sabe quem eu sou, mas eu sei quem ela é ". ′′ ELA É O AMOR DA MINHA VIDA ". ❤️ A.D

sexta-feira, 10 de junho de 2022

Dia de anos

Os aniversários por António Braz Supostamente dias de felicidade paz e amor, comemorando-os alegremente, entre familiares e amigos, numa mesa grande onde são servidos repastos congruentes e o ditoso bolo com as velas correspondentes. Ouvem-se os ruídos das rolhas a saltar, de garrafas de champanhe Francesa para os mais abastados, ou espumante, para dar mais ênfase ao acontecimento. N’um sopro apagam-se as luzes, e tudo o vento levou, durante mais 365 dias para os mais sortudos. Cantam-se os parabéns ao aniversariante, confusão que gera no meu cérebro bolinhas de sabão que se desfazem como diluídas junto de um iceberg poderoso e ficam invisíveis, ou talvez se escondam, por detrás de uma realidade, como uma bomba a conta-relógio, aguardando silenciosa o momento certo para rebentar, não havendo certezas absolutas de quem ordena ou programa. Gostava tanto de fazer anos! Era miúdo, sempre fui, até que chegou a reforma pela qual tanto ansiava. Despautério do trabalho onde me sentia como o peixe na água. Na minha imaginação, após 38 anos de descontos, merecia visitar lugares, mas sobretudo calar aquele despertador que me tirava do sério, mas a imaginação prega-nos destas partidas… raros são os que começam a pensar numa velhice que vem roubar-nos tudo dos pés à cabeça. O tempo que até então corria sem ser visto chega em pés de lã silencioso, matreiro requerendo os lugares para os recém-nascidos. O que muita gente chama viver, vai-se tornando num calvário que vamos subido de cruz às costas corrompidos por artroses, hérnias ou outras doenças oncológicas que nem escolhem idades, derrames cerebrais, ataques vasculares cerebrais, que nos atiram para uma cama ou cadeira de rodas. Feliz aniversário – Dizem por consideração e respeito muitos dos que não sabem que os vivos já há tanto tempo que morreram! Quando já não se pode comer de nada, nem beber, nem sair, e muito menos fazer amor com a companheira de uma vida que resta? Tomar de 10 a 20 comprimidos por dia para prolongar uma sobrevivência de atrocidades e mentiras, Para quê?

quinta-feira, 9 de junho de 2022

O AMOR É UM PAÍS DESCONHECIDO "Ela lutou pelos direitos das enfermeiras, ele pela liberdade. Casaram-se na prisão. A ditadura comeu-lhes nove anos de vida em comum. Mas Isaura Silva e António Borges Coelho vingaram-se. Foram inseparáveis A rua tem uma árvore centenária que, na primavera, exala um aroma perfumado. É uma das ruas centrais da Parede, em Cascais, a artéria onde tudo se passa. O prédio incaracterístico, branco, denota um resto de modernidade no visual simples, nas linhas retas. Um dia tudo isto foi novo e a árvore estreita, miúda. Desde o seu apartamento, António Borges Coelho ouve o comboio a passar, a cada 20 minutos certos, dia após dia. Ele, um historiador que já investigou a ocupação e a herança muçulmana na península, a Inquisição e a expansão portuguesa, a história do país desde a sua formação, nunca escreveu sobre si próprio, sobre os 93 anos do alto dos quais nos observa, com aquela boa vontade e simpatia de sempre, mas não sem algum cansaço. Nesta casa invadida por livros, fotografias e quadros, onde hoje vive sozinho, Borges Coelho viveu com Isaura Silva. Estiveram casados durante 60 anos, tiveram uma filha. A deles foi uma história de amor que, como todas, possui um lado épico, descomunal; que caiu, como todas caem, numa certa irrealidade, a memória a criar um revestimento fosco sobre as coisas. Porém, se todas as histórias merecem ser contadas, a de António e Isaura é daquelas que um bom livro deveria imortalizar. Porque foi quase impossível, quase uma miragem. Hoje certamente sê-lo-ia. Existem já poucos relatos assim, de clandestinidade e separação, de prisões e desencontros extremos, só passíveis de pertencerem a um tempo e a um lugar: Portugal antes de 1974. Nesse país não tão remoto assim, em que um vizinho podia ser delator, onde a fome grassava nas esquinas vigiadas pela polícia política à caça de opositores, e em que a mulher não tinha direitos, António e Isaura conheceram-se num café chamado Rialto, à Rua Luciano Cordeiro, em Lisboa. O encontro era secreto, entre um dirigente do MUD (Movimento de Unidade Democrática) Juvenil e uma enfermeira empenhada na luta por melhores condições de trabalho e pelo direito ao casamento. “Pareceu-me importante perceber essa luta e marcámos encontro no café, onde nos conhecemos. Só eu e ela. Talvez tivesse havido aí algum sinal”, recorda Borges Coelho. Na segunda vez que se viram, ele levava o livro “A Freira no Subterrâneo”, de Camilo Castelo Branco, o que levou Isaura a temer — e assim o confidenciou a uma amiga — que ele fosse um “beato”. Apesar de ter passado cinco anos no seminário franciscano de Montariol, em Braga, não o era. Há muito que se desencantara da religião, ocupado que estava no combate à ditadura. Quanto a ela, estava nos antípodas da posição que uma educação eminentemente patriarcal lhe reservava. Foi das primeiras mulheres a andar de bicicleta em Portimão, a terra natal. Salvara uma miúda de morrer afogada e ia levando um tiro, diz o marido. “Ela era este tipo de mulher: uma vez, vinha um comboio e na linha estavam um cavalo e uma carroça. Ela tirou a blusa e pôs-se à frente do comboio, para o obrigar a parar. E ainda foi multada.” Isaura morreu em 2019, “de velhice”. Era dois anos mais velha que António. Nos últimos tempos de vida, dedicou-se a escrever um diário de memórias para o único neto, Francisco. Para lhe contar, através da sua própria biografia, como era o país dela antes de a passagem para a democracia o transformar no país que ele reconhece. “Continuavam os nossos encontros amorosos, e também políticos”, vai narrando num desses papéis, que António lê sentado no escritório, interrompendo a história dela com pedaços da sua, pois ambas estão ligadas como as peças do mesmo puzzle. É preciso, por isso, explicar onde estava ele enquanto Isaura era a primeira a assinar corajosamente um abaixo assinado dirigido ao enfermeiro-mor, ao cardeal Cerejeira e ao mesmíssimo Salazar que, perante a PIDE, lhe valeria o epíteto de “casamenteira”. Ele tinha saído do seminário (implorou ao pai durante um ano que o fosse lá buscar, mas as suas cartas não lhe eram entregues), regressado a Murça e vindo logo para Lisboa, matriculado na Faculdade de Direito. Tinha passado três meses desempregado e alimentado a sandes pagas pelos estudantes de Medicina, um dos quais, de quem conserva a amizade, o inscreveu no curso de Histórico-Filosóficas dizendo-lhe: “Este é o teu curso.” Nesses três meses, “podia ter morrido de fome”, lembra o historiador. Por via de um “truque”, arranjou emprego como escriturário de 2ª classe pago a 1000 escudos por mês — “o que nem dava para o pequeno-almoço”. O ardil a que se refere foi o ter-se dirigido à Junta Autónoma de Estradas e perguntado a um contínuo quem era que mandava ali. Era o Sr. Esteves, de Trás-os-Montes, com quem pediu para falar, apresentando-se como “um conterrâneo”. Este foi sensível à sorte de um jovem da mesma terra que não tinha para comer e instou-o a concorrer ao posto; António ficou em primeiro lugar. Isaura não vivia melhor. Durante o curso na Escola de Enfermagem Artur Ravara aguentara condições “violentíssimas”, a trabalhar já nos hospitais apenas em troca de comida e dormida, dezenas de raparigas a dormirem “ao molho” num corredor. Uma vez graduada, foi colocada no Hospital dos Capuchos, 12 horas diárias sem ordenado, a pernoitar numa camarata sobrelotada e fardada como uma freira. A cada seis meses, passava um mês inteiro “de vela” (de banco), com uma folga semanal. E não podia casar-se. O abaixo-assinado para corrigir a exploração de que a sua classe era alvo levou-a a conhecer António, em 1952. “Começámos a viver juntos, embora separados. Eu vivia num quarto e ela na enfermaria”, diz ele que, entretanto, se viu forçado a abandonar o emprego porque a PIDE andava no seu encalço. Funcionário do MUD, não tinha casa nem salário certo, dormia aqui e ali, “muitas vezes em casa do [poeta Alexandre] O’Neill”. Umas pseudoeleições no país encorajam o movimento juvenil a abrir uma sede, nos Anjos, e Isaura, convidada a falar sobre a luta das enfermeiras num jantar ali organizado, quis conhecê-la. O companheiro avisa-a para não o fazer, que a sede iria ser “assaltada” pela PIDE. Mas ela vai lá na mesma e acaba presa junto a mais 15 jovens. É o dia 3 de novembro de 1953. “Ainda consegui mastigar a minha intervenção”, engolindo um a um os papéis, mas na mala apanharam-lhe o incriminador convite para o jantar. Agora é António quem lê o relato na primeira pessoa da chegada dela a Caxias, a pensar que no dia seguinte a libertariam. “A cela tinha só uma cama de ferro, uma caixa de madeira e um balde para as necessidades. Na manhã seguinte fui despejar o balde e vi que ao longo do corredor havia muitas portas de vidro fumado, de celas, e quando passei por elas vi mãos a acenarem-me. Fiquei muito comovida. Mas na última porta, olhando para cima, vi o retrato de um homem vestido de preto e com uma cara muito branca, que me assustou tanto que deixei cair o balde. O retrato era do Álvaro Cunhal.” Nesse primeiro dia de prisão cometeu a “façanha” de pintar, na casa de banho, com o nitrato de prata, “Viva a paz”. Os interrogatórios oscilavam entre agressões, humilhações, insultos e ameaças que se estendiam a toda a sua família. Pelo meio, conseguiu mandar um bilhete ao companheiro na gabardine branca que levava vestida quando a detiveram e que entregou à irmã numa visita: “Na parte de dentro do forro, ia uma mensagem de amor.” Um dia, relata Isaura pela voz de António, ouviu alguém a cantar numa cela próxima. Era a irmã Hortência, enfiada numa “cela entaipada”, com placas de madeira a tapar a porta e as janelas, presa por lhe apanharem um bilhete onde Isaura anunciava estar a escrever as memórias da enfermagem. “A PIDE fez uma busca para apanhar estes papéis. Fui posta numa cela vazia e queriam que tirasse a minha roupa do corpo, evidentemente que recusei. Fui chamada ao gabinete do diretor para ser revistada por duas apalpadeiras da cadeia do reduto sul, especificamente aos meus órgãos internos, fiquei louca de raiva e ameacei-as com um banco se me tocassem. Disse-lhes a razão da minha prisão, elas não me tocaram. Mas fui punida com 30 dias de cela disciplinar. Apanhei muitos castigos”, escreveu. DE PRISÃO EM PRISÃO Neste ponto, seria de esperar que a história estivesse a chegar ao fim — e a um fim feliz, à desejada vida com António. Porém, essa vida ficou novamente adiada. Porque, antes da libertação de Isaura, começaria a longa e acidentada prisão de António. Ele dispõe-se a contá-la, mas não sem fazer um parêntesis: “Quero dizer que Isaura, na altura, era uma espécie de grande personagem. Esteve internada em dois hospitais, o Santa Marta e o Santa Maria, porque desmaiou várias vezes de fraqueza. Quando a mandaram para o Santa Maria, ia um aparato enorme, carros dos pides à frente e atrás. No hospital estava completamente isolada e ninguém a podia visitar. Houve grandes movimentos cá fora pela libertação dela e das irmãs, de solidariedade pela causa dela, inscrições nas paredes, cartas à PIDE (que estão na Torre do Tombo). Houve um festival da juventude na margem sul com centenas de jovens, onde foi o António Sérgio e a Maria Lamas, e foi representada uma peça de teatro com a vida da Isaura Silva. Todo este movimento ajudou a mantê-la presa, pois a PIDE julgava que ela era um quadro superior do Partido Comunista.” Em Lisboa, uma tarde, o historiador viu na rua um homem de “mãos muito lavadas e macacão de operário” que lhe pareceu suspeito. Estava habitua­do à vigilância, mas há seis meses que era funcionário do PC e o cerco parecia estreitar-se. No dia seguinte, enquanto se dispunha a almoçar, as brigadas da PIDE entravam na casa da Rua dos Ferreiros, a Santa Catarina, levavam-lhe as coisas e encostavam-no à parede. Lembra-se do grito que deu — “o maior da minha vida” — quando o empurravam pelas escadas do prédio: “Viva a liberdade, viva a democracia, abaixo a PIDE”, disse a plenos pulmões, e muitos dos que lá fora ouviram o termo ‘PIDE’ deram meia volta e retrocederam nos passos, cedendo ao medo. Tinha sido delatado pelo senhorio. “Senti uma tranquilidade infinita. Podiam fazer-me tudo, matar-me, era igual”, diz hoje. Despediu-se “como quem já não volta”. Meteram-no como um saco dentro do carro, rumo à sede da PIDE, mas à noite mandaram-no para o Aljube. Passou lá 180 dias, seis meses, dentro da cela nº 1, “um buraco, cuja largura era a do corpo com um braço estendido e onde havia uma meia luz contínua”. Dava-se um passo à frente e outro atrás. E a cama, presa à parede, descia-se para dormir. “Havia um guarda no corredor a vigiar-nos. Estávamos permanentemente à espera do interrogatório ou da tortura. Para muitos, também para mim, isto era pior do que o espancamento.” Uma greve de fome ainda lhe valeu duas semanas numa cela sem luz. Depois do Aljube, Borges Coelho foi levado para Caxias. Sabendo que no andar de cima estavam as mulheres, entoou a canção ‘Paloma’, uma espécie de senha que Isaura, se a ouvisse, iria perceber. Ela percebeu. Mas não tardaria a ser libertada, em 1957, no âmbito de uma amnistia decretada por ocasião da visita da Rainha Isabel II a Portugal, mais ou menos na altura em que ele é levado para o Porto, para ser julgado no processo do MUD Juvenil ao lado de outros 51 réus. A consequência do julgamento não foi apenas ter sido condenado à pena máxima, de dois anos e nove meses de prisão. Foi ter visto a sua Isaura que, já em liberdade, mas há um ano desterrada em Portimão, decidiu ir vê-lo ao Porto. Sem dinheiro, ela conseguiu através da irmã acomodação numa casa de família, de cinco pessoas “num quarto dividido ao meio por uma cortina, de um lado dormia-se, do outro cozinhava-se”, como ela deixou escrito no seu diário. Cederam-lhe o quarto, deram-lhe de comer. E, no dia seguinte, levaram-na ao Tribunal. “Havia quatro anos que não nos víamos. As lágrimas corriam-me pela cara abaixo, e de tal forma que um dia o Óscar Lopes, que era um dos réus, disse que nunca tinha visto as lágrimas saltarem assim dos meus olhos, como se fossem cascatas”, relata Isaura. “Eu estava no tribunal separado, isolado, não sei se nos abraçámos ou não. Sei que nos vimos”, diz por sua vez António, que se lembra de se dirigir ao juiz na hora da sentença para lhe dizer que não, não compreendia que fosse condenado por defender a paz e os interesses dos jovens. “Aquilo provocou um escândalo e um homem, um matemático, rompeu o cerco e abraçou-se a mim a soluçar. Eu sentia a barriga dele na minha. Tive de fazer uma força doida para não soluçar com ele.” Os dois anos e nove meses transformaram-se em cinco. O prolongamento da pena teve a ver com a famosa fuga de Peniche, na qual dez detidos, entre os quais Álvaro Cunhal, se evadiram daquela prisão. Por ter ficado — “não queria voltar a ser funcionário do Partido” —, ele e mais três sofreram graves represálias. A António foi-lhe reservada a ‘estátua’ no Aljube, a tortura na qual o preso ficava de pé até cair e, se adormecesse, acordavam-no a reguadas. Após a fuga, Isaura temeu o pior, não sabia onde ele estava. Localizou-o no Aljube, enviando para lá um lanche, para testar se era ou não entregue — foi. Não a deixavam visitá-lo por não ser parente, pelo que decidiram casar-se. E assim teve início uma nova fase, a da luta por preencherem todos os requisitos e autorizações para o casamento, e de conseguirem que este fosse celebrado na cadeia. Só em 1959 tudo isso foi atingido, e num 3 de janeiro, a Isaura de fato cinzento claro e o António de fato escuro, composto pelo alfaiate da cela ao lado, deram o ‘sim’ perante o funcionário do Registo Civil, as testemunhas — Alexandre O’Neill e Maria Amélia Padez —, e os sogros, vindos de Portimão. Só faltavam os pais dele, que “não se opuseram, mas não foram”. A seguir, um almoço de duas horas comprado na vila selou o festejo, embora o sogro, “que era de gritos”, tivesse de levantar a voz e ameaçar com sair pela porta fora para que os noivos pudessem sentar-se lado a lado. No fim de tudo, ele voltou para a cela e fez um poema. Ela regressou a casa. Mas já podia visitá-lo. Eram marido e mulher. A DUREZA DA LIBERDADE Claro que esta não seria a vida deles se tudo ficasse por aqui. A distância impôs-se por mais dois anos, com ele a acabar a pena em Peniche e ela a tentar recomeçar em Lisboa. Viam-se a cada 15 dias, e isso “deu origem a um rosário de cartas”. Isaura teve de persistir para arranjar trabalho e o primeiro que surgiu foi na Liga de Amigos dos Hospitais, uma clínica privada — o sector público estava-lhe vedado — onde ninguém sabia nada do seu passado. O médico cirurgião, que segundo ela era bom quando estava embriagado, nomeou-a, em apenas seis meses, responsável pela área cirúrgica. Mas uma troca de palavras com outro médico simpatizante do regime acabou com as boas graças, e Isaura foi expulsa e proibida de entrar na clínica. “Dois anos mais tarde, a irmã foi ali operada e não a deixaram entrar. Imagine como é que eram!”, acrescenta Borges Coelho. A mulher pediu então uma entrevista com o Prof. Pulido Valente, a quem visitou no seu consultório, “uma sala imponente” com um senhor de “cabeleira solta, quase branca” à sua espera. Falou-lhe logo da situação de ex-presa política, e o médico disponibilizou-se para a ajudar. Um dia depois, recebeu um recado do Dr. Pedro Monjardino, genro de Pulido Valente, a convidá-la para trabalhar na clínica Pro-Mater — que iniciou o parto sem dor no país —, situada na Avenida da República. Ali ficaria por dez anos. E ali estava quando, em 20 de maio de 1962, seis anos e meio após ter sido apanhado, o marido saiu da prisão. “Hoje vai ser libertado.” O guarda teve de repetir a frase três vezes até António realmente a ouvir. Iam deixá-lo sair, mas queriam que lá deixasse tudo o que escrevera, os apontamentos de anos de estudo e reflexão. Ele vincou o pé, negou-se: “Então eu também não vou. Arranjem um novo processo.” Por fim cederam e ele encaminhou-se com duas malas para a saída da cadeia de Peniche. Os guardas da PIDE estavam à porta, e devem ter ficado surpreendidos quando, após a atravessar, uma mulher que por ali passava se aproximou dele e lhe deu um abraço. “Fiquei transtornado, comovidíssimo. Tinha tonturas, não estava habituado à liberdade, vinha de cinco anos metido numa cela”, diz Borges Coelho. Apanhou a camioneta, tinha de ver a Isaura, lembrou-se do café na Rua Duque de Ávila onde ela costumava almoçar, apareceu-lhe de rompante, nem tinha havido tempo de a prevenir. Ela estava lá acompanhada de uma amiga, olharam-se, uma ínfima hesitação fê-lo sair do café, e ela deu um grito, foi atrás. Abraçaram-se. Tinham estado nove anos separados, a manter-se unidos obstinadamente num parêntesis da duração da vida de uma criança, ou de todo o tempo em que Blimunda procurou Baltasar no “Memorial do Convento”, nove anos, nove longos anos. A CERTEZA DE UM DESTINO A DOIS Instalaram-se numa marquise em casa da irmã de Isaura, e depois numa casa que dava para as traseiras do cemitério de Benfica. Havia uma viagem há muito combinada, uma volta a Portugal que se apressaram a dar, com dinheiro poupado por Isaura. Foram ao Algarve, a terra dela, a Trás-os-Montes, a dele, passaram por Sagres, deram um salto a Espanha. Ele, desempregado, conta que depois teve uns 20 empregos — num deles, ia de porta em porta a perguntar “quantas pastas de dentes” aquela família gastava por mês. Deu explicações de história e de filosofia. E fez traduções. Até que começou a dar aulas num colégio e, logo no primeiro dia, uma brigada da PIDE aguardava-o à porta. “Eu estava proibido de tudo, até de dar aulas. Não tinha direitos políticos.” O segundo colégio que o aceitou tinha nome de poeta, Fernando Pessoa, e aí esteve vários anos, ao ponto de a responsável decidir pedir-lhe o diploma de ensino privado. Ele alertou que era inútil, e de facto foi. “Três meses depois chama-me ao gabinete a chorar, não lho tinham dado. Mas ela disse-me: ‘enquanto eu for diretora, dá as aulas que quiser’.” Assim fez. Com o 1º ano de Histórico-Filosóficas concluído antes de ser preso, matriculou-se no 2º ano. Em 1968 licenciou-se com uma tese sobre Leibniz. Mais tarde iria escolher a Inquisição de Évora como tema de doutoramento. Ainda foi um dos fundadores de “A Capital”, um jornal “preparado para quando Salazar morresse”. Era um repórter que ainda cumpria a obrigação de se apresentar na PIDE aquando do nascimento da filha Sónia, em 1969, e essa notícia tardia na vida de António e Isaura foi objeto de uma crónica da Isabel da Nóbrega. “Julgávamos que já não iríamos ter filhos, ela engravidou aos 42 anos. Tinha um medo terrível, porque trabalhava com prematuros. Mas veio bem e inteirinha, não houve complicações além de uma cesariana”, frisa ele. O 25 de Abril mudou a ambos as perspetivas. Ele pôde começar a carreira académica, chegando a professor catedrático de História e a presidente do Conselho Pedagógico da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, jubilando-se em 1988 — com a última lição dada a 11 de dezembro. Ela concorreu e foi reintegrada na Função Pública, recusando a recontagem dos anos de serviço, pois “não queria privilégios”. De enfermeira-chefe na Maternidade Alfredo da Costa passou a diretora da secção de prematuros, cargo que ocupou até à reforma. Apesar de todos os adiamentos e esperas, viveram as vidas que lhes estavam destinadas. Sabiam, diz António, que iam ficar juntos, que era uma questão de tempo. Há dois anos, em 2019, separaram-se. Isaura tinha 92 e já se debatia com quedas e perda de movimentos. “Mas era muito corajosa, imagine que uma vez teve um tumor e não disse a ninguém, coisa maluca, foi para o IPO sozinha ser operada.” Morreu um 11 de junho, a pouco dias de completar os 93 anos. “É uma falta muito grande, irreparável”, confessa António, que há dois meses publicou mais um livro de um catálogo que ultrapassa as duas dezenas. Mais um comboio passa, lá fora, a alertar para a hora do almoço, que o historiador tem de respeitar para a diabetes não lhe pregar das suas. Borges Coelho guarda os papéis escritos por Isaura e por si cuidadosamente sublinhados, e abre a porta que dá para a escada do prédio. À saída, a árvore centenária continua a exalar o perfume a que a obriga a primavera, e os carros passam apressados na rua mais concorrida da Parede. Um dia tudo isto foi novo e a árvore estreita, miúda. Um dia, alguém contará a sua história." Luciana Leiderfarb, Expresso, 4/06/2021

domingo, 5 de junho de 2022

Terras bravias

Terras bravias. Que o poder de uns braços franzinos e o suor de caras enrugadas, pelo calor abrasador de um vento gelado vindo dos lados de Espanha, tornaram lentamente num lugar sagrado onde se vivia com pouco pão, umas batatas salteadas, em casas de pedra cheias de buracos, hospedaria das ratazanas, passeando de um lado para o outro como quem passeia hoje na avenida da Liberdade, a ver saltitar as pulgas abrigadas com o calor humano em camas vetustas sem lençóis, uns virados para a cabeceira os outros para os pés, e quando raiava o sol nas varandas corrompidas, assentados em tripeças rengas que as brasas da lareira iam comendo sem mastigar, com os cabelos molhados, as mulheres passavam os pentes finos, extraindo dezenas de piolhos alojados confortavelmente até que fossem esmagados nas unhas sujas e negras dos dois polegares, o que de bem pouco servia, era apenas a ida para uns e a vinda de outros que em filas de espera aguardavam a oportunidade para se instalarem gratuitamente para sobreviver; como as malgas e talheres, oferta de quem já tinha melhor, mas que remediavam os outros, aqueles que herdaram vestígios, dos que em tempos eram vivendas honradas e consideradas, mas que por obra do destino se tornaram miseráveis. Gentes de raça que lá viveram na alegria dos cantares de verão sorvendo anseios, beliscando desejos, satisfazendo desígnios que a sociedade densa e parca urdia, tecendo-a em teares destituídos pelo tempo e pela prestabilidade compulsória que os mais opulentos decretavam ao abrigo das suas próprias leis, cujos direitos eram vetados e as palavras censuradas mesmo que a razão os acompanhasse durante os poucos passos que davam, terminando sempre em becos sem saída. Quem ignora vive uma alegria coagida, a felicidade esporádica de quem avança recuando, acomodando-se com coberturas que deixam os pés de fora, e a cabeça, essa passa horas e horas ao relento alimentando insónias que o desespero incentiva, deixando tantas pontas soltas que a imaginação impotente, tenta, mas sem sucesso unir num sonho maravilhoso, como nos contos de fadas, onde todos somos iguais, temos os mesmos prazeres, rimos, choramos e cantamos unidos pela essência. Já não reconheço essas terras, onde nasci e onde me abriguei, nem as pessoas que lá vivem. Outrora, cada vez que as percorria, sentia um acelerar de bater do coração, um prazer imenso que hoje me empurra para a aversão, indignado, ferido pelos que um dia considerei, respeitei e até travei aquilo que chamam grandes amizades e que eu, ingénuo, também pensei que fosse assim, confidenciando-lhes fatos importantes da minha vida, mas não era. Até os cães me ladram quando passo junto deles e os vejo com olhar desconfiado, os tais amigos, alguns deles, calam as palavras gastas pela hipocrisia, absortos na cupidez de quem corre em marcha atrás. Opina-se sobre o heroísmo de uns professores que exerceram uma profissão, bem, e que fora do local de trabalho nunca serviram o povo da Aldeia em nada. Também outros, segundo certas opiniões, também merecessem uma estátua, ou talvez levados para o Panteão, inclusive os destruidores do que era tradicional, e muitas aldeias conservaram. Os donos destas duas Aldeias, que tiveram que requerer a terceiros a entrada para congregações com o intuito de serem sacerdotes, e desertaram quando já tinham um bom nível académico, não suportam que aqueles que foram pobres nas suas infâncias, tenham hoje mais haveres, e os mostrem. Aqueles que fugiram de terras africanas onde exploraram os pobres indígenas, e se transformaram num beatismo aparente tentando ludibriar o mafarrico que os espera no inferno. Esta pessoas não davam, apenas trocavam por trabalhos árduos, mas que ninguém ousa denunciar. No Salazarismo, conheci agentes da PIDE que se esconderam após o 25 de Abril, e empinaram o nariz quando lhes foi atribuída uma reforma colossal com a qual tiveram a possibilidade de mandar os filhos estudar, que obtiveram os melhores empregos desdenhando as raízes, as quais estão presentes no conhecimento de pessoas com a doença de alzheimer.

quarta-feira, 1 de junho de 2022

Destinos

Destinos e destinados por António Braz Cinco anos tinham passado, e na casa de Júlia e Firmino, era assim que se chamava o seu marido, situada na periferia de Penafiel, com um grande terreno de cinco hectares, onde as árvores frutíferas, a verdura, por onde se passeavam duas éguas amarelas domesticadas, para os passeios frequentes de Fernandinho, sempre acompanhado pela mãe, e um riacho correndo até uma airosa cascata, que extasiava os olhares mais insensíveis do mundo, rodeada de flores campestres em tempos de primavera, propagando um perfume e a paz de espirito, que os passarinhos festejavam com seus cantares, suaves, meigos, atraentes, tal uma sinfonia de Beethoven, “claro de la Luna”, muitas e maravilhosas coisa se tinham passado. Tinha cerca de dois anos Fernandinho, quando a felicidade lhe bateu à porta, sem programação, surpreendentemente, com agrado incontestável, ia ser mãe pela segunda vez, de uma menina, cujo progenitor era o seu marido Firmino, que quando lhe foi dada a notícia subiu aos céus de contentamento e alegria. Chamava-se Luana, de olhos azuis, cabelo encaracolado de um castanho claro doirado, umas bochechas faciais de beleza singular, sorridente e ao mesmo tempo tímida com os estranhos, mas intensamente afetuosa do mano, que apesar do carinho, tentava incutir-lhe uma extroversão moderada, tendo ela um temperamento bastante diferente do seu. Foi um dom de Deus que caiu naquele casal, que vivia já num banho de felicidade, mas, esta menina, veio apagar um passado já meio desvanecido.