domingo, 31 de outubro de 2021

Á procura da dor

ANTÓNIO LOBO ANTUNES António Gregório · 23 h · Hoje, depois de escrever dez horas seguidas e sentindo-me cansado demais para continuar, levantei-me da mesa e tirei um livro da estante do corredor. Calhou ser Dickens, numa edição barata da Wordsworth. Tempos Difíceis. Abri-o onde resolveu abrir-se e apareceram quatro linhas mágicas: um filho visita a mãe, velha e muito doente. Pergunta – Sente dores, mãezinha? e ela responde – Tenho ideia que anda uma dor por aí mas não estou certa de me pertencer e fiquei parvo com isto. Entre parênteses adoro ficar parvo com o que os outros escrevem: só costumo ficar parvo comigo, a interrogar-me de onde é que é aquilo saiu, porque não foi de mim com certeza, de maneira que penso que a mão de um anjo substituiu a minha. Tenho ideia que anda uma dor por aí mas não estou certa de me pertencer é uma pérola única. Igual à vida: quantas vezes senti isto, sinto isto, sem ser capaz de o exprimir. As dores que me pertencem são fáceis, as que não estou certo de me pertencerem custam tanto. Viro-as para um lado e para o outro, estudo-as contra a luz, experimento-lhes o cheiro, a consistência, a cor e a dúvida perpétua – Pertence-me? a perplexidade, a hesitação, enquanto a dor dói e me faz sofrer para burro. Estamos muito bem na sala e aí anda ela pelos cantos, fazendo de conta que não existe e no entanto a arranhar, a arranhar, ou antes a lacerar-nos todos, a gente para a dor – És tu? e não responde, finge que se vai embora e fica, que não nos liga e insiste, que não quer saber de nós e não desanima. Até no meio do prazer, até no meio da alegria permanece, alarga-se, entra mais fundo, com um arzinho distraído, não nos deixa em paz. Para quê falar nisto, o que interessam as minhas dores, de resto? É agosto e se fosse pequeno estava a caminho de Nelas com a família, não, Nelas em setembro, em agosto a praia, o raio de uma praia sem sol, nevoeiro e frio, a vendedora de bolos a passar com o cesto, as ondas cinzentas. Uma casa pequenina, alugada, a gente ao monte lá dentro. Eu lia, comprava o jornal desportivo, compunha versos que deviam ser frescos. E, toda a noite, o cordeiro do mar a balir. A minha mãe em fato de banho, o meu pai aos fins de semana, a cheirar a cachimbo, comigo na cama, de tábua nos joelhos, a aperfeiçoar redondilhas. Que diabo de texto é este em que comecei em Dickens e já vou nas redondilhas? A culpa é da esferográfica que vagabundeia sozinha. Nos livros sou disciplinado, nestas prositas divago. A dor, que não estou certo de me pertencer, abranda e depois volta, digo-lhe – Olá, dor e não lhe dou confiança. Não se deve dar confiança nem a nós, há que nos pôr em ordem. Põe-te na ordem, António, tu que durante a vida inteira detestaste obedecer. Aliás não te podes queixar, passaste o tempo a fazer o que querias. Agora, sei lá porquê, veio-me à ideia o meu irmão Pedro, o silêncio dele. Gosto de silêncio, de escutar palavras não ditas. Também gosto de pessoas que falam porque me permitem ir embora continuando ali. Elas falam, digo que sim com a cabeça e não estou. Estou onde? Na varanda da Beira a olhar a serra, por exemplo. Ou em parte nenhuma, num esconso interior, sentado no chão, de joelhos na boca, escutando o que não há. Desde que me lembro escuto o que não há, deixo que as coisas se inventem cá dentro, a minha cabeça é uma praia que a água invade e esquece. Neste momento, por exemplo, invadiram-me os travestis do meu bairro, com o seu único par de sandálias, heróicos no passeio, um movimento para diante quando se aproxima um carro, um movimento para trás quando o carro se afasta. Conquistaram duramente o quarteirão às mulheres pagas, após brigas de alto lá com o charuto entre os rapazes que protegem os dois negócios, um ganha-pão (agrada-me o termo ganha-pão) trabalhoso porque implica vigilância constante e bofetada fácil, para além dos quilos suficientes para se darem ao respeito. Lá voltam os Tempos Difíceis (dar-se ao respeito também me agrada) – Sente dores, mãezinha? e no caso de se interessarem por mim o que responderia? Talvez, lá no fundo, mas disfarço, garanto. É que existem coisas que não sararam na alma, não hão-de sarar nunca: as árvores de um cemitério de província a tremerem, algumas mortes, a minha violência tantas vezes injusta, patetices, indelicadezas, faltas de atenção com quem o não merecia. Espero ter melhorado, acho que melhorei mas continuo sem me perdoar o egoísmo necessário à escrita que me obrigou a cortar tantos pescoços que se interpunham entre eu e ela. No entanto, aprecio o António: comove-me a sua feroz guerra civil interior, a vulnerabilidade escondida, a compaixão que não mostra. O imenso orgulho que tem nos seus poucos amigos, a admiração por eles, o respeito. Dois homens, quando são homens, estão condenados a entender-se, não é? Agosto e o bairro deserto. Sobro eu, o senhor Cardoso da mercearia, o senhor Miguel do café, pouco mais. Ah, o senhor Varela a quem todos os dias pergunto pela diabetes. Até os pombos se foram, os restaurantes fechados. O senhor Cardoso viaja para a Beira Alta, perto de Seia, perto de mim. Fala da terra numa exaltação que me toca, mostra fotografias de casas e ruas, enquanto a esposa aprova. E o ar, senhor doutor? E a beleza daquilo? Alimento-me dos iogurtes que lhe compro, recebem o meu correio – Uma encomendazinha do estrangeiro de que a dona Irene corta as guitas com a faca: livros – Muito livro há-de ter você acha o senhor Cardoso, cujo filho, ao que parece, lê que se desunha: – Lê tudo, o meu filho e a dor que anda por aí e não estou certo de me pertencer amaina. Se a Joana – Sente dores, paizinho? afiançava-lhe logo que não, quais dores, que tolice. Dúzias de lugares para automóveis na rua, um casal na esplanada do senhor Miguel, um compincha drogado que a cocaína electriza. Mostra-me as tatuagens das cadeias (Vale de Judeus, Pinheiro da Cruz) onde passa temporadas a banhos por assaltar pessoas com um canivete. Garante – Se fosse preciso matava por si e desaparece num salto, pobre esqueleto desfeito. Dor nenhuma claro, Joana. Só que de tempos a tempos, mas isso não te digo, o coração num pingo. Não tarda nada passa, julgo eu. Julgo não, tenho a certeza: mais um minuto ou dois e há-de passar. António Lobo Antunes, in 'Visão' (2009-09-03)

Um dia diferente

Dia dos fiéis defuntos Avós, pais filhos e netos, que partistes, há horas dias ou anos, como estava predestinado, e que para nós fostes carinho amor, o abrigo das tempestades que só nos vossos braços encontrávamos o sossego, deixávamos de soluçar e as lágrimas caiam com menos frequência, com menos amargura, o coração batia num ritmo cardíaco quase normalizado, bastando um olhar brilhante, um sorriso meigo, uma palavra amiga, porque a vossa amizade será para sempre infinita nas nossas memórias, algumas delas também já cansadas preparando a viagem do reencontro; ornamentámos as vossas campas com umas simples flores, como se fosse vésperas de festa, mas merecias muito mais. Lutastes pela nossa vida e sobrevivência, nos sacrifícios e adversidades, privando-vos tantas vezes da vossa felicidade, retirando da boca o pão que saciou as nossas, defendendo-nos com garras de leões, amando e acariciando a carne da vossa carne, enquanto em noites de desespero choravas silenciosamente num canto da casa, procurando a solução para todos os nossos problemas,
angústias que vos roubavam o sono, que vos minavam por dentro deixando transparecer por fora, umas mãos calejadas um rosto enrugado, coxeando, sujos, encharcados, as dores penetravam no corpo e na alma, famintos e com sede, marchando como na guerra enquanto o alento permitisse. Esta flores representam simbolicamente apenas um sentimento de amor, porque jamais poderíamos recompensar o que vós fizestes gratuitamente. Fomos tantas vezes ingratos para convosco, esquecemos os nossos deveres, por ganância, por ingratidão ou hipocrisia, mas, hoje lembramo-nos por uns momentos, com vaidade propaganda dos nossos esquecimentos durante tantos dias que o ano tem, porque quem partiu não volta e quem está tem ocupações que não lhes permitem pensar a não ser no dinheiro, no ser mais que os outros, na luxúria, esquecendo que um dia chegará para nós a partida, porque o vento não para de correr e nos levará a todos nus como viemos ao mundo. Descanem em paz todos os defuntos do mundo

quarta-feira, 20 de outubro de 2021

Noticias da terrinha

Por António Braz Os amantes incontestáveis da terrinha aguardam ansiosamente noticias sejam elas boas ou más. Lá longe, “onde o sol castiga mais, só se ouvem suspiros e ais” porque o tempo não passa, mesmo passando depressa demais, é mais um ano no envelhecer, mas que alegria meu deus, ao vislumbrar da placa onde se pode ler Portugal! Nasceram aqui e embalados ou não é uma paixão que veio para perdurar, ainda que seja só por umas horas, é o remédio que mata a saudade, que atenua o que noutros tempos foi precário e agora envaidece; filhos e netos com habilitações literárias que lhe permitem uma vida social muito diferente do que foi a deles, que viveram na opressão na miséria e numa luta constante de sobrevivência. Estendidos pelo mundo são formigas sacrificadas, e quando chegam os tempos de glória cantam como cigarras, mimando acariciando e amando a carne da sua carne o sangue do seu sangue. Tem orgulho? Tem sim senhor, e com justa razão. Por cá, as notícias escasseiam, o movimento das pessoas é lento como as idades, as ruas esperam as vossas vindas para rejuvenescer, os eventos já eram, apesar da grande caçada ao javali organizada domingo, pela associativa, do qual resultaram dezassete peças, para a alegria dos organizadores e dos amantes deste hobby. Os caçadores numerosos invadiram os espaços reservados ao silêncio, e os automóveis ocuparam os lugares vagos deixados no mês de agosto. Também foram calcetadas as bermas da rua direita no fundo do povo, talvez à caça dos votos, mas as obras ficam e as pessoas passam… Já começam a cair as brilhantes castanhas, não será um ano prospero, mas este fruto ainda é o único que traz lucros para o lavrador sem muitos custos. Também os olivais se vão ficar aquém de outros anos, mas os seus frutos são sempre bem-vindos. Esta pandemia afetou o nosso País como tantos outro pelo mundo fo
afetou o nosso País como tantos outro pelo mundo fora, e agora é tempo de erguer a cabeça e seguir em frente, (Um sincero pensamento de pêsames par as famílias vítimas deste vírus mortífero) Não tenho frequentado o Facebook por razões pessoais, mas ontem lembrei-me e entrei, mas fiquei desiludido com os comentários das pessoas que como no futebol se substituem ao treinador. Somos um pavo vaidoso e queremos tudo depressa, sem ponderação, queremos sempre mais mesmo que outros sejam lesados. E lá vem o Salazar e o 25 de Abril como exemplo, porque já não nos contentamos humildemente com os empregos que temos e nos dão o seguro de que outros cariciam, e nem ousam lamentar-se… a televisão anuncia empregos que recusam os empregados por terem habilitações superiores às requeridas. Os subornos estão no ADN dos portugueses, e a corrupção deixa obras de arte entregues à esposa dos corruptos para que as falsifiquem e as façam desaparecer. A legislação é adequada às pretensões dos poderosos, e os milhões fogem daqui e dali, assujeitando apenas os infratores a prisão domiciliária, na suas casas confortáveis, e… assim vai a vida

domingo, 10 de outubro de 2021

Ò vida Vida!

“Ó vida, vida” Foram tantas as vezes que ouvi dos lábios da minha mãe esta frase, simples, e eu como ingénuo atribuía-lhe um significado de ligeireza misturado com pudor. Era a juventude surda, liberta e alheia aos problemas dos mais idosos, eles que os resolvessem! Hoje durante a minha caminhada, não consegui focar—me em mais nada o que me levou a escrever este texto. Freud dizia: o impulso de vida e o impulso de morte habitam lado a lado dentro de nós. A morte é a companheira do amor. Juntos regem o mundo. O siclo da vida é uma caixinha que guarda as boas e as más surpresas. O que dizem os psicanalistas, os teólogos e os filósofos são teorias inverosímil. A vida, é uma passagem que se pode prolongar no tempo, nunca para lá do predestinado, ou terminar logo após o nascimento e muitas vezes em gestação voluntária ou não. A vida é uma luta constante, e todos nós lutamos pela sobrevivência. Porém, como não nascemos todos com as mesmas normas fisiológicas nem mentais vão surgindo pouco a pouco intervenientes preponderantes. Uns agarram-se ao pouco que possuem, levando a sua cruz de rastos, com doenças incuráveis, acidentes rodoviários e outros que atiram com eles para uma cama com paraplegia total, pedindo todos os dias para partir, mas ninguém os ouve, porque a lei está acima de tudo, mesmo do sofrimento de um ser irrecuperável… chamam-lhe eutanásia, mais uma teoria falhada. Outros, os privilegiados nascem em berços de ouro saltando para os lugares mais desonestos deste mundo, roubando fugindo e viverem em paraísos sem rei nem lei, e por muito que tentem não fazer parte dos mortais, no seu dia partirão também deixando para trás todos os bens e a vergonha que em poucos tempos se esquecerá. Dizia ainda Freud: Talvez os deuses sejam gentis connosco, tornando a vida mais desagradável à medida que envelhecemos. Por fim, a morte nos parece menos intolerável do que os fardos que carregamos. A morte prossegue-nos desde o nascimento, mas começamos a pensar mais nela com o envelhecer, e não serão as descobertas cientistas que nos libertarão do fardo de que fala Freud. São os destinos, somos os destinados. Por António Braz P.S fica ainda mais uma frase de Freud: De vez em quando tive uma mão amiga para apertar. Uma vez ou outra encontrei um ser humano que quase me compreendeu.