terça-feira, 26 de maio de 2015

Um século

Um século!? Ser centenário é um privilégio reservado a uma pequena percentagem de humanos que vivem em comunhão com diversas gerações, evoluindo tal como os tempos, passando por dias felizes, mas também por momentos de extrema dificuldade, cogitar numa marcha lenta, obscura com abertura de perspetivas otimistas, que alimentam a alma e tendem a repercutir no corpo sinais visíveis com sequelas que jamais sararão.
Há já 17 anos que partiste pai… mais de um século – e, recordo-me tão bem, dos teus gestos, apesar de pouco afetuosos! Não te ensinaram a dar carinho, porque também o não terás tido? Conheci o avô, um homem rude que temia sendo criança, quando me assentava naquela grande cozinha à fogueira, e com a sua bengala de ferragem na ponta, apontava para a cabeça dos seus netos, jogando o: “rectamol”.Terá sido a casa Grande da terra… em tempos remotos. Porém, nunca cheguei a saber exatamente porque se afundou, empenhando a maioria dos melhores prédios rústicos, os quais nunca foram desempenhados, por razões evidentes que todos os falidos conhecem. A escada que nos ergue desce-se mais depressa de que se sobe… e as consequências são por vezes catastróficas para os descendentes. Aquelas juntas de touros que faziam murmurarem os espetadores, e o boieiro orgulhoso levantava a cabeça, transformaram-se em jericos a cair de velhos, cansados, comprados ao barato numa das feiras dos chãos, nos dias 7 ou vinte, datas em que estas se realizavam.
Numa parte da grande casa construída em granito, apenas com duas divisões, conheci a violência doméstica, quando embriagado voltavas a casa alta noite, e a tua mulher com lágrimas nos olhos te tratava de desgraçado… e nós, teus filhos, já deitados, puxávamos da manta de farrapos para cima da cabeça, para atenuar o medo, que os gritos da pancadaria, provocavam, e trémulos, íamos pedir socorro. Perdoei, mais tarde, quando compreendi, que era com o efeito do álcool, e a impotência de não poderes dar à tua família a dignidade reivindicada com toda a justiça. No fundo, foste um bom pai, apesar de um mau marido… diriam os teólogos ser obra do destino… eu direi ser obra de um poder maquiavélico. As circunstâncias não podem abstrair as obrigações que o raciocínio justiceiro impõe.
Falaste-me do Sr. Cidões de Murçós, quando soubeste que ia casar nesta terra, dizendo terem sido vossos amigos e convidados para eventos familiares… quando ainda a vossa casa era um lar abastado. Segundo me consta, era uma família respeitada e considerada desta terra, e que grande coincidência, também eu vivo numa das casas que foi sua.

Tenho muitas saudades tuas meu pai, apesar de tudo… o teu sofrimento na última década de vida, que aquele estúpido acidente provocou na tua perna esquerda ainda jovem, e que em todos os invernos voltava, quando dormias em pé encostado às tuas “muletas”. Aos gritos sem que ninguém pudesse vir atenuar o teu sofrer, rosto martirizado pela dor, já com poucos cabelos, de olhar fixo no além, como a pedir alivio… tudo remói no meu pensamento de pai. Apesar de ter tentado ser um bom pai também falhei… ainda não sei onde, nem por que razão, mas limito-me a não julgar como poderei ser julgado.

“Socorro! Trás-os-Montes está a morrer!” - Noticias do Nordeste

“Socorro! Trás-os-Montes está a morrer!” - Noticias do Nordeste

domingo, 10 de maio de 2015

Concerto especial

Apareceu, em Murçós, junto do café "sequinha", montado numa velha zundap, de bandoleira às costas, que supostamente dento da capa trazia um instrumrnto musical; derigiu-se a passos lentos e insseguros para dentro do café, com ar taciturno, tal um extraterrestre caído da nave Russa abandonada na amplitude da atmosfera. Cá fora, assentados, estavamos uns sete ou oito: Vitor (poulo) Manuel Adelino, Reis, Miguel o Lagarteiro, talvez o que o conhecia melhor e com ele tinha afinidades contrárias ao sentido do termo... chamou-o pelo nome e pergutou: - que andas a fazer ó...? n'um me digas que bens dar um concerto aqui?! O outro não respondeu. Entrou no café, sempre com o mesmo ar, enquanto nós os que o não conheciamos nos interrogavamos sobre a identidade do sujeito. O Miguel, já com umas cubas no bico, começou a troçar humoristicamente do individuo, e com ar de brincadeira chamou-nos para dentro dizendo: - Se quereis ver um verdadeiro concerto de musica e canto andai lá para dentro!
Entramos de rompante para não perder uma nesga do espetáculo prometedor.. O forasteiro assentou-se a uma mesa com altivez e cerimónia encostando o instrumento à perna esquerda como quem receia o roubo de uma preciosidade, e pede uma bebita,  assediado pelas numerosas perguntas, às quais ainda não tinha aberto a boca para responder. Pouco a pouco foram-se desliniando casos que metiam cachopas, bailes e outas peripécias enquanto o homem se mantinha mudo como um túmulo.- Quem é perguntei, já enfadado com o assédio do Miguel ao rapaz, humilhando-o? Ninguém me respondeu. O Reis, e o Vitor riam às gargalhadas enquanto nós os outros continuavamos na espetativa do mistério daquele sujeito que apareceu como por magia para animar ainda mais o ambiente que onde se encontra o lagarteiro, só por si, já dá espetáculo...  - Bah, toca lá e canta uns fados dedicados a esta gente - incentivava o Reis já velho conhecido seu.
Finalmente, com uma lentidão cerimonial, puxou o fecho  da capa, e extraiu uma viola, aparentemente em bom estado de conservação. Passou os dedos pelas cordas da viola, e logo nos primeiros acordes me começou a cheirar a esturro... - mais um zé cabra à solta - pensei para comigo. Os outros continuavam a soltar gargalhadas, e quando o seu tom de voz se ouviu desafinado que nem uma cassarola velha, compreendi que o forrasteiro não teria os 5L bem aferidos... improvisava no canto, sem rima nem alma, que faria levantar um morto com o enchente de rir.Era do serro de penhas juntas, e às suas custa, divertiam-se novos e velhos em abuso da sua deficiência. O moço continuava a arranhar na viola e cantava... viva á... esta é prós de Murçós,,, boa gente que nós bem sabemos... na ponta da lingua eu tenho... também o miguel é um bom c... o concerto durou talvez uma hora durante a qual morremos de rir. Infelizmente o Miguel com um copito exagera, e após uma discusão com o músico que metia porrada, este pega nos trouxos, e tal como tinha chegado assim partiu, sem um até sempre. Ficamos com a sensação de sabor a pouco, mas que animou a tarde, lá isso animou. Xau Pantin.

quinta-feira, 7 de maio de 2015

Ribeira

Ao passar na ribeirinha
Pus o pé molhei a meia (+3)
Não casei na minha terra
Fui casar a terra alheia

Era assim a cantilena da minha infância, da qual me ria, ingenuamente, talvez? E que hoje, lá para os lados da ribeira, luzio ou escairo, Reboreda,onde a paisagem saudável e maravilhosa nos transportam para sonhos longínquos que se perderam na civilização em detrimento da felicidade que a mãe natureza nos aponta e nós cegos e surdos, não vemos nem ouvimos, talvez embalados por um único objetivo, ser o maior; ambição que nos traz durante anos, abstraídos do circulo doirado, o qual só com a idade conciliamos e admitimos não valer a pena guerras, discórdias, ignominias, enfim, tudo quanto é mau, que nos mina e nos conduz, ao dia final, com ou sem reconhecimento ficando para a posteridade bem depressa esquecida.
A paisagem toda de verde vestida, e perfumada de flores campestres, únicos espetadores ao longo dos tempos, da ribeira de água cristalina, que corre desenfreadamente, por entre arbustos, árvores centenárias, amieiros que noutros tempos fizeram a felicidade do calçado (socos), pedras lisas, algas, e trutas que a contracorrente sobem pelas águas frias a fim de se reproduzirem. De tempos a tempos ouve-se um passarinho cantar, um dos resistentes, que não abandonaram o seu sítio, à procura de riquezas e vaidades, contentando-se com o que as suas raízes lhe deixaram como herança. -  Noutros tempos -  dizia-me a minha companheira de passeio – enquanto trabalhávamos estes terrenos quebrados, e limpávamos o suor da fronte, erguíamos a cabeça e ouvíamos cantar como rouxinóis pássaros lindos que nos acompanhavam no dia-a-dia com dificuldades para realizar trabalhos quase impossíveis, e,
 que, com a vontade corajosa, transformávamos em alimentos. Também as milhares  espécies de flores campestres tem bem gravada na memória de quem andou por estes maravilhosos lugares, a sua história e o nome correspondente, que até pode não ser o verdadeiro nome, mas era assim que eram identificadas, pelos que com elas conviviam. Foram muitos e variados os exemplos dados entre flores idênticas, mas não iguais. As marias, ou malmequeres, as da esteva com suas chagas e outra que não possui, as do linho selvagem e as daquelas que lhe chamavam “ de sabão”. – tentem identificá-las aqueles que as reconhecem.
Tudo me parecia mágico, hoje, junto da ribeira, onde o balão de oxigénio chega no momento oportuno, e as pernas pediam para ir cada vez mais longe, deste mundo ingrato e cínico, com aparência de cordeirinho manso. Aflorou-me a vontade de ficar ali para sempre… onde
 ninguém me julga, pelo que fui nem pelo que sou… onde a pureza dos seres vivos se curva á admiração de quem sente com o coração… naquele lugar sagrado e bendito, nobre e puro… belo, atraente, o céu na terra!
Os moinhos, dos” ferreiros” e do povo, jazem em ruinas no meio de tanta grandeza! Daqui saíram centenas de sacos de farinha, moídos pela grande “mó”, pedra granítica de grande dimensão que se deve ter admirado com a visita de alguém. Noutros tempos em que elas trabalhavam, entravam uns e saiam outros; hoje, infelizmente, tudo o que é natural, foi


 substituído pelas novas tecnologias, que diga-se de passagem, bastante úteis, mas, como é dolorosa a nostalgia!
O tempo parecia ter parado, proporcionando-me um sentimento de ligeireza felicíssima… olho mais uma vez à minha volta e o paraíso terrestre deslumbra-me… não tenho vontade de voltar para o ninho apodrecido e abandonado pelos ocupantes dos tempos felizes, que se transformou num exilo maquiavélico… Como seria lindo partir rodeado por tanta beleza que a mãe natureza pariu! – sem murmúrios fictícios, lágrimas forçadas, gestos hipócritas, e um ramo de flores compradas na florista e criadas nas estufas, artificiais, sem perfume, apenas um bilhetinho indicando o nome da pessoa que ofereceu para camuflar as aparências.
Não casei na minha terra, mas peço para ser levado para lá, quando um fia partir
Deixo a ligação para mais fotos aqui