quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

Desenho de uma flor

            por António Brás
Para ti, que no pesado fardel transportas, a carestia do amor
Mendiga de desperdícios; da fome opaca e da dor
Abre os braços e voa; vai àquele lugar sagrado
Onde debaixo do arco-íris, ambos plantamos uma flor
De tão bela e perfumada que era, nasceu a grande paixão
Que noite e dia nos embalou, enquanto o galo cantou
Pela borrasca fomos levados, e pelo encandecer fomos banhados
Lá longe onde não havia galos, no meio da multidão
Quantas pétalas tinha ela, quais eram as suas cores
Esqueci-me ou não me lembro, desse tempo só sinto as dores
Que tão cruelmente nos separaram, e os nossos corações partiram
Hoje desenho uma flor, neste jardim de amores.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

Tatuagens


Gerações. ficção
Nasceram nos tempos onde o modernismo e as novas tecnologias são fatores essenciais para o desenvolvimento das atividades facultativas e prejudiciais em aspetos condicionados para a essência natural de congregar o egocentrismo.
 Ele chamava-se Agamenon, de origem grega que significa: persistente.
A ela chamemos-lhe ABRA; de origem hebraica que significa: mãe das multidões
Agamenon nasceu numa nobilita casa pecuniosa junto à margem do rio Mondego, onde viveu a sua infância de menino mimado cujos progenitores jamais deixaram que lhe faltasse o que quer que seja. Era filho único, uma mais-valia – dizia ele mais tarde – quando integrou a universidade em Coimbra – assim não tenho que dividir nada com ninguém. Desde a sua tenra idade, sobretudo quando jogava futebol e se banhava com os outros meninos, que começou a matutar no que o diferenciava dos outro rapazes esperando para ir banhar-se já quando todos os outros tinham saído, e só retirava as roupas íntimas quando verificava que já não havia ninguém nos vestiários. Os colegas chamavam-lhe o retardatário, considerado por ele inofensivo, sendo cada vez mais e mais acentuadas as diferenças entre eles. Os seus órgãos genitais não acompanhavam o crescimento natural do corpo, a timidez e a maneira como se sentia bem entre homens era agora para ele uma realidade que o martirizavam! Seus pais conservadores jamais aceitariam que aquele filho a quem tinham dado tudo, e agora fazia projetos a longo prazo, de ter netinhos que viessem alegrar aquela confortável casa, a qual com o envelhecimento dos proprietários se vinha tornando de uma pacatez desconfortante, fosse homossexual. Optou por guardar bem guardado o segredo que nem aos seus melhores amigos revelou, e com o decorrer do tempo se veria…


Ela, Abra, vivia em Viseu com os seus pais. Tinha dois irmãos mais velhos que já tinham “espolinhado”, um deles casado, outro vivia com uma catraia e por lá governavam a vida, com a ajudinha de vezes em quando da paternidade, porque nos tempos que correm o dinheiro não chega para limar as arestas dos magros salários, sobretudo no início das carreiras. Tinham formação superior, porém, os contratos temporários terminavam e o ciclo vicioso arrancava não podendo estabilizar ora ele ora ela. Abra estudava direito em Coimbra e foi lá que conheceu Agamenon, numa daquelas praxes idêntica à da praia do Meco onde o impetuoso sucumbiu ao dominador psicopata; ordena a jovens vulneráveis que vendem os olhos com uma lista preta, volta a ordenar que voltem as costas ao mar para serem engolidos pelas ondas, e foge como um ladrão, a quem não pesa na consciência, a terrível dor, daqueles pais amargurados, em condições diferentes, que os aproximaram de uma amizade terna, porque ambos tiveram a coragem de dizer não. Nós não alinhamos em disparates deste género.
Durante os cursos encontravam-se imensas vezes. Chegaram mesmo a alugar um pequeno apartamento só para os dois. As más-línguas chamavam-lhe o casalinho e eles apenas sorriam… confiavam cegamente um no outro, pelo que as confidencialidades surgiam enquanto estudavam no aconchego do sofá e na discrição daquelas paredes. Podiam dormir juntos na cama para se fazerem companhia, e, neste aconchego, os seus corpos tocavam-se sem que houvesse qualquer reação perversa. A pedofilia era, por vezes, tema de conversa, e lamentavam que tal como eles aqueles seres humanos tivessem nascido diferentes… não
julgavam receosos de serem julgados, eram quase felizes assim! Os familiares orgulhavam-se do aproveitamento e desempenho, e de tempos a tempos lá vinha a perguntinha: E, como vão esses namoricos? Agamenon respondia com um sorriso forçado: - Estudar não dá tempo para nada… enquanto Abra respondia com rebeldia: - Metam-se nas vossas vidas… -até que um dia, já depois da queima das fitas, enfiados no baú dos segredos chegaram a um acordo convencional: viveriam juntos como um casalinho, e ninguém precisava de se molestar. Adotariam um filho secretamente, e seriam felizes como as outras pessoas sem discriminações.
Tomaram as diligencias necessárias para a adoção normal, e esperaram, esperaram, até que por fim lhes foi entregue um cesto com um menino enrolado em roupa quente até às orelhas, todos os documentos legalmente emitidos e um adeus e sejam felizes…
Quando estavam sós, Abra pegou no menino e notou que não era como os outros meninos… retirou-lhe as roupinhas e tal uma salamandra o menino tinha tatuagens até às orelhas.


  

sábado, 19 de janeiro de 2019

Passagem de 2018/2019

 Merci Moíse fomos recebidos como (pachás)





Viveres

Por
ANTÓNIO BRAZ PEREIRA

Nota: este texto, escrito por mim, já foi publicado noutro blog que os gestores congelaram, sem qualquer referencia à minha colaboração, pelo que me sinto com o direito de voltar a publicar sem pedir o consentimento.

Rebordainhos foi, desde a minha lembrança, uma aldeia bastante populosa, apesar das grandes dificuldades socioeconómicas, inerentes parcialmente da posição geográfica e da adesão total ao Cristianismo, na imposição de valores e princípios morais e religiosos. Nas décadas 50/60, a emigração para o Brasil, África e Europa facilitou de alguma maneira a vida aos que ficaram. Contudo, a despedida era um calvário para os que partiam e para os que ficavam… havia acompanhamento geral até à saída da Aldeia, choros e gritos como se fosse um adeus para sempre.
As circunstâncias básicas, a carência de meios contracetivos, o magro conforto e outros componentes, tornavam a natalidade num fardo pesado e complexo para o agregado familiar. Houve mulheres que pariram mais de vinte filhos, ainda que só parte deles viesse a sobreviver! Treze, foi o número que superou a média geral de 7/8. Os partos eram domiciliares e as parteiras designadas para o ato aprenderam as técnicas, como os miúdos aprendem a andar ou a falar: pela força das circunstâncias. Contudo, dada a falta de meios, podiam ser consideradas geniais. Existiram casos onde a mãe biológica, por diversas razões, deixou de amamentar o bebé e outra mulher, em situação de pós-parto, substituiu-a no aleitamento.
Chegava o batizado, e os padrinhos, nobres e ricos de preferência, viriam a ser tratados por “compadres”. As minhas recordações infantis têm como ponto de referência os cinco anitos… capturando “azeiteiros” na poça da fonte grande.


A partir dos seis anos, a catequese, as catequistas, Lúcia, tia Ester e Aninhas da Eira, tiveram ações preponderantes e de grande eficácia na educação de cada um de nós, para além da formação teológica religiosa. A tia Lúcia, incansável desde sempre, na ajuda aos arranjos dos altares, cantares, lavagem das toalhas, enfim… merecia a medalha de fidelidade, desempenhando várias tarefas, na Igreja, benevolamente. A cruzada, desde sempre me fascinou… vestida de branco, com a cruz das caravelas, em fila de dois, direitinhos como fusos, orgulhosos e sorridente, saía nos eventos importantes, festas etc. O Luís, que na altura frequentava o seminário, e vinha passar férias a casa da tia Helena, iniciou-nos às primeiras notas musicais, e algum latim que decorávamos sem saber o que queria dizer, salvo uma frase aparentemente maliciosa, mas que queria apenas dizer: “ Os peixes romperam as redes”!?

Alguns de nós aprendemos a ajudar à missa, em latim… quase sempre a dois, e foi numa vinda oficial do Bispo, que uma “barracada” imprevista e incontrolável de riso surgiu, entre mim e o Pintassilgo, ajudantes designados pelo P.e João. Com antecedência de 15 dias, decorámos uns textos de boas-vindas, ensaiados ao pormenor para que nada falhasse naquele dia, juntamente com outras fantasias e cânticos religiosos. À saída dos ensaios, alguém nos contou uma história relacionada com a missa, os ajudantes,

alguém nos contou uma história relacionada com a missa, os ajudantes, e um ratito. Pelos vistos, o rato apareceu por baixo da lâmpada a azeite, no canto entre o granito e o altar-mor, e, com as suas idas e vindas, alheio aos olhares curiosos, despertou a atenção dos ajudantes. Parecia mesmo que se passeava com prazer, lentamente, como a saborear a sua timidez quebrada. De repente, o Sacerdote voltou-se para os presentes e, abrindo os braços, disse em voz alta: - “ Orate fratres”- O ratito desatou a correr, “enfusgando-se” no seu esconderijo, enquanto um dos ajudantes respondia em voz alta: “Porra que mo espantaste”!

Nesse dia, o da visita do Bispo, cujo cerimonial não podia falhar, aconteceu um caso similar: um ratito, como por magia, quis participar na festa. O primeiro a vê-lo foi o Moisés que, com um sinal discreto, nos apontou o animal descontraído a passear. Ainda estávamos no início da Eucaristia, mas já não conseguíamos conter o riso que, apesar de o tentarmos abafar, se ouvia por toda a Igreja. Outros galafates, conhecedores da história, entraram na sinfonia dos espirros, cada vez mais ruidosos. O Sr. P.e já se tinha voltado duas ou três vezes, com ar repreensivo, que pouco ou nada acalmou os entusiasmos. Chegou a frase fatídica (orate fratres), e desencadeou-se um alvoroço tão ruidoso, que o Sr P.e desceu as escadas, pegou-nos pelas orelhas, um de cada lado, e levou-nos para a Sacristia. Como não conseguíamos explicar os deploráveis acontecimentos, deu-nos um pontapé no rabo atirando connosco para o adro. Os ânimos nem por isso se acalmaram, porque na Igreja ficaram ainda o Moisés, o João cuco, o Pedro e outros que como nós conheciam a história, e cada vez que olhavam uns para os outros, recomeçavam a sinfonia de risos, enquanto ao fundo da Igreja a D. Graça e D. Maria murmuravam furiosas: “Que pouca vergonha!”

Fomos crescendo e a rebeldia acompanhava-nos humildemente, fiel como as conquistas amorosas. Nos amores, abordagem para dar o primeiro passo era um esforço colossal, invadidos que estávamos pela timidez e pelo receio de levar um “ chega para trás”. Na adolescência aprendíamos com os mais idosos, técnicas que, se podiam facilitar a tarefa, também podiam ajudar a distanciar a pretendida.

Um caso concreto aconteceu numa tarde, ao cair da noite, lá para os lados das Ribas, onde três “lafraus” nos deslocámos, a tornar a água no lameiro do tio João Santo. Ao fundo, havia outro que confrontava com este e pertencia ao pessoal dos Pereiros. Por coincidência, um rapaz mais velho que nós andava nas mesmas ocupações, e aproveitámos para lhe perguntar se sabia escrever cartas às “garinas”? Partiu-se em gabanços e, como tal, pedimos-lhe para nos escrever uma… que no dia seguinte nos entregaria. O envelope vinha colado! Manifestámos o desejo de ler o que vinha escrito, mas o sujeito justificou a negativa, como sendo um meio seguro para não aprendermos as suas técnicas. A carta foi entregue e mal interpretada, possivelmente por ignorância, e no primeiro encontro o rapaz recebeu como resposta uma grande bofetada.

A maioria dos casamentos era organizada segundo os haveres materiais de cada um, pelos pais e familiares próximos. Havia relativamente poucas possibilidades de casar fora da terra, pelo facto de não existirem transportes para os encontros e, namorar por correspondência era uma aventura incerta. O paga-vinho obrigatório para os forasteiros de outras terras era uma tradição temerária, embora engraçada para quem presenciava. As moças, que estavam limitadas a saídas com acompanhamento, aproveitavam a ida à fonte para trocar rápidos olhares, ou palavras fugitivas. Com todas estas restrições, ainda havia casos de resistência às imposições, à semelhança do que acontecia na literatura: “Rosa do Adro”, “Amor de Perdição” “Romeu e Julieta”.

Foi num caso similar que, um dia, fui abordado pelo meu melhor amigo que me pediu para o acompanhar a casa dos pais da namorada, a pedi-la em casamento. Sabia das divergências existentes mas, apesar de serem de maior idade, impunha-se o tradicional pedido. O meu amigo acabava de pôr à prova a minha amizade. Respondi afirmativamente, mas quando me disse que era para aquela noite, fiquei como paralisado… era principiante na matéria, e o pai da noiva não era de cócegas! Quando lhe entrámos em casa, já a noite caía, porém, talvez já sabedor da nossa visita, o chefe de família tinha-se ausentado. Sentámo-nos à lareira e esperamos. O meu coração batia a duzentos por hora, ansioso por que o homem chegasse, e receoso com a astúcia a adoptar. Para culminar o meu desespero, outra pessoa estava presente e, como é óbvio, adivinhou as razões da nossa visita, por isso não arredava pé. Já era alta noite quando apareceu o pai da moça. Sentou-se, mas o diálogo tornou-se num silêncio pesado, temeroso, indeciso. Tanto o rapaz como a rapariga olhavam-me vezes sem fim, como a implorar o meu pedido, mas a garganta apertava-se-me, e a língua bloqueada não balbuciava palavra. Impaciente, mas em vão, o meu amigo dava-me joelhadas em silêncio: da minha boca não saía palavra… Até que, por fim, já bastante tarde, enchi os pulmões de ar e, a gaguejar, consegui pedir a rapariga em casamento. Jurei a mim mesmo, nunca mais aceitar as funções de intermediário no que diz respeito a casamentos!


sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

Destinos e destinados

 Destinos e destinados
Por António Brás
Os tutoriais de um tempo revogado que infringiam, sobretudo às classes proletárias, preceitos conjunturais compulsórios diminuíam percentualmente a Acão reativa dos seres humanos submergidos pela soberania e pela fobia que os perseguia até aos sonhos maliciosos em noites de insonolência, triturados por deveres e obrigações, deitados em colchões de desconchego, uma simples manta de farrapos, em noites invernais, barriga a dar horas, e a responsabilidade de criar numerosos filhos martirizava-lhe o vulnerável cérebro.
Na casa que os pais de Carlitos compraram e ofereceram aos noivos, discretamente isolada, murada e com um lindo jardim, mobilada e recheada com o necessário para poderem viver despreocupadamente, não reinava grande euforia e muito menos felicidade como Paula sua esposa esperava. No início, quando voltava da faculdade de economia, encontrava o marido de péssimo humor, ou estava ausente até muito tarde, era já noite quando regressava com justificações esfarrapadas, ou que tinha estado em casa dos pais e se demorara sem ver o tempo passar. Numa dessas noites, Paula esperava-o radiante. Vestia um vestido decotado de cor azul céu, calçou os sapatos de salto alto, tinha ido ao cabeleireiro arranjar o cabelo com madeixas, e sorria como quem se sente felicíssima, o que deixou logo o marido de pé atrás.
Sem pronunciar uma única palavra esperava ali hirto, mas a esposa fez durar o suspense até que por fim: - Vais ser pai meu querido!
Não obteve do marido a reação que esperava, pelo contrário Carlos parecia petrificado.
- Não ficas feliz com tão linda noticia?
- Eu… Não será demasiado cedo… tínhamos a vida toda pela nossa frente…
- E temos para dar carinho, amor e uma educação como nos compete.
- E essa mascarada para que foi?
- Para ti meu amor… e se concordares íamos jantar fora para celebrar?
Carlos aquiesceu, para não levantar suspeitas sobre o adultério que consumava secretamente com Júlia, nos recantos mais escuros que ambos conheciam, enrolados como amantes sem se sociarem das consequências provenientes de atos irrefletidos, como dois adolescentes perdidos pela paixão. Durante a refeição esteve alheio às conversas da esposa que iam bater sempre no mesmo: a felicidade de estar gravida do homem que amava e com o qual queria formar uma família igual a tantas outras. Porém para Carlos era um fardo que até podia por em causa o seu amor secreto.
Voltaram para casa ainda cedo, a criada esperava na cozinha caso necessitassem de alguma coisa. – Vai-te deitar Gertrudes, que eu e o meu marido precisamos de privacidade, - disse Paula com voz apreensiva.
Quando estavam sós no salão deu-se a explosão esperada. – Carlos; disse Paula em tom suave. Conta-me tudo o que se está a passar contigo. Lembra-te que me prometeste lealdade e fidelidade há apenas um mês naquela igreja onde ambos fizemos o mesmo juramento… não eras assim antes de casarmos! Porque razões adventícias te tornaram um homem frio, insensível, distante, intangível, enfim vives como um robô manipulado e desinteressado de tudo e de todos. Nem o privilégio e a felicidade que Deus te concede poderes ser pai te faz reagir? Onde está o homem que eu conheci? Deitamo-nos na mesma cama, e pior que dois estranhos nem sequem fazemos amor! Tens sempre uma razão esfarrapada, e eu tolerante, aguardava na esperança de que fosse apenas uma passagem de estado de espirito, mas hoje deste-me razões suficientes para desconfiar da tua sinceridade para comigo. Por amor de Deus conta-me. Quero ajudar-te Carlos meu querido…
- Que ideias são essas que apodrecem essa cabecinha? Eu sou o mesmo. Tu também passas o teu tempo na faculdade… como queres que ocupe o meu tempo? Não é verdade que não fazemos amor, a prova está nesse bebé que vem aí…
- Oh Carlos! Se é só por isso posso congelar o meu curso?
- Não, isso não. Eu vou tentar estar mais presente e ser o marido ideal como tu gostas.



  

terça-feira, 8 de janeiro de 2019

Amor selvagem


 Quem sou eu? Não me deram um nome
Não tenho pai, não conheço a minha mãe
Sou uma flor
Sou uma planta
Ninguém me diz, ninguém me canta
Orfa de amor, de tudo que toda a gente tem
Sem perfume, sinta a dor
Entrançada até à garganta
Cor de vinho, cor do sangue
Cresço ao abandono de todos
Será que sou mesmo uma planta?
Quem me dera ter um dia
Tudo o que os outros têm
Ser amada ser beijada
Levada para as nobres casas
Morar em vasos de alegria.

            A Braz


















sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

O sem abrigo

 Sem abrigo:
Foi a denominação que ele se atribuiu, com a qual se apresentou, quando me pediu amizade numa rede social. Só ele sabia porquê, o verdadeiro significado, que jamais me revelará, e que me deixou perplexo, sobretudo nesta fase da vida, sabendo eu, que socialmente, se tinha afirmado com prestígio e lavor. Era feliz com a sua admirável família, a qual eu não conhecia, mas que tantas pessoas elogiavam. Vestia mal era a sua escolha, falava com peso no coração, como quem manifesta desagrado, um desalento inexplicável. Não reconhecia o primo Toninho! Porém todo ser humano pode mudar, tem esse direito, e não lhe fazia perguntas. Recordava-me dele enquanto puto, porque vivíamos em casas meeiras, propriedade do nosso avó Manuel, descalço e vestindo uns calções aos quadros, tal como o irmão que a fatalidade de um dia Negro lhe roubou a vida, num acidente estupido. Das dificuldades que a minha tia teve de enfrentar quando o pai os abandonou( mais tarde reconheceu o toninho como filho dando-lhe o seu apelido)da fome que juntos disfarçávamos junto da fonte grande, ou assentados no tanque que servia de bebedouro aos animais. Mas todos os pássaros aprendem a voar, uns pelos seus próprios meios outros ajudados. No decorrer da nossa juventude cada um de nós seguiu o caminho traçado pelo destino: eu emigrei para o estrangeiro, ele, mais novo de uns anitos, completou pelos seus próprios meios as habilitações requeridas para ingressar na polícia de intervenção. Ainda antes de imigrar para Lisboa Defendeu as cores da equipe de futebol de Rebordainhos, como guarda-redes, com brio, orgulho e paixão, em detrimento da sua integridade física, saboreando com vaidade os aplausos e olhares femininos que de longe o lisonjeavam. Recordo também com grande emoção um ato heroico que lhe podia ter custado a vida.

 Aconteceu na nossa casa de chave, quando a fuga de gaz de uma garrafa se incendiou e nos deixou a todos pétreos de pavor como estatuas. Ele que estava passando, sem hesitar, entrou pela porta dentro, com um pano qualquer desliga a botija do fogão, agarra nela às costas e sai para o meio da rua onde acabou por fechar e neutralizar as chamas, e consequentemente a explosão.
Hoje recebi a triste notícia da sua partida definitiva para o além, fulminado por um AVC. Tão jovem meu deus? Siderado passei a noite a ouvir aquele cântico: - Vale a pena viver e a interrogação martiriza-me o senso como um barco à deriva, procuro na terra, o que os marinheiros procuram no mar emprestam-nos uma vida a prazo, para alguns mais longo outros mais curto,
 , e dentro deste parâmetro, somos todos iguais e tão diferentes! Um Muçulmano tem como referencia, o ALCORÃO, os Budistas NIRVADA, os russos a ORTODOXA, NA China o Taoismo, e finalmente o ateísmo, testemunhas de jeová, reino de deus, todos partem na hora e dia previamente marcado seja qual seja a crença.
Hoje fui ao teu funeral, tinhas apenas 59 anos, e durante o trajeto que me conduziu àquela igreja onde jazia o teu corpo inerte coberto de flores, nos meus ouvidos ressoava interruptamente aquela frase: - Vale a pena viver, por ti só por amor...
Entrei com pezinhos de lã como quem tem receio de acordar uma pedra que dorme para sempre. Não te vi, ocultaram-te, mas os abutres não conseguiram levar a imagem que continua gravada no disco rígido do meu ego. Conheci a tua esposa e filha a quem chamavas princesa, e sensibilizaram-me as frases de agradecimento que ela em voz dolorosa foi prenunciando para os presentes de Parada, Rebordainhos e Amarante. A presença do teu pai e do teu filho humedeceram-me os olhos, mas não chorei por saber que não gostarias. Também estavam presentes quase todos os teus irmãos, que a tua rebeldia enfurecia e as ações amaciavam. Tiveste uma cerimónia digna e merecida, até os salmos foram cantados pela tua ex-cunhada como uma diva. Agora sei que valeu a pena teres vivido, tal como eras, um sem-abrigo.
Descansa agora em paz, Toninho meu primo.