domingo, 31 de maio de 2020

Destinos e Destinados


 Destinos e destinados  por António Braz
Cinco anos tinham passado, e na casa de Júlia e Firmino, era assim que se chamava o seu marido, situada na periferia de Penafiel, com um grande terreno de cinco hectares, onde as árvores frutíferas, a verdura, por onde se passeavam duas éguas amarelas domesticadas, para os passeios frequentes de Fernandinho, sempre acompanhado pela mãe, e um riacho correndo até uma airosa cascata, que extasiava os olhares mais insensíveis do mundo, rodeada de flores campestres em tempos de primavera, propagando um perfume e a paz de espirito, que os passarinhos festejavam com seus cantares, suaves, meigos, atraentes, tal uma sinfonia de Beethoven, “claro de la Luna”, muitas e maravilhosas coisa se tinham passado. Tinha cerca de dois anos Fernandinho, quando a felicidade lhe bateu à porta, sem programação, surpreendentemente, com agrado incontestável, ia ser mãe pela segunda vez, de uma menina, cujo progenitor era o seu marido Firmino, que quando lhe foi dada a notícia subiu aos céus de
 contentamento e alegria. Chamava-se Luana, de olhos azuis, cabelo encaracolado de um castanho claro doirado, umas bochechas faciais de beleza singular, sorridente e ao mesmo tempo tímida com os estranhos, mas intensamente afetuosa do mano, que apesar do carinho, tentava incutir-lhe uma extroversão moderada, tendo ela um temperamento bastante diferente do seu. Foi um dom de Deus que caiu naquele casal, que vivia já num banho de felicidade, mas, esta menina, veio apagar um passado já meio desvanecido.
Era o aniversário dos cinco aninhos de Fernando, cerimónia realizada na herdade, por onde os numerosos hospedes se espalharam, após o copioso repasto, encomendado e servido por um reputado restaurante da região. Vestido com calças casaco e colete pretos, camisa branca, e um lacinho ao pescoço, sapatos a condizer, parecia um senhor, e não contrariava o fotografo, manifestando satisfação e educação, sempre que um conviva lhe dava os parabéns, respondendo com um: - Muito obrigado
Firmino tinha-se esforçado muito para poder ter o conforto, que sempre sonhou oferecer à sua família. Dava aulas de dia e à noite, e fins-de-semana explicações, porque era o único salário do agregado familiar, visto que sua esposa não tinha podido trabalhar ocupando-se das tarefas da casa, e da educação dos filhos. Seus pais não eram ricos, porém, participaram com uma ajuda significante monetária para a compra a crédito da herdade que fazia a felicidade daquela briosa família. Fernandinho ia já ao infantário, e, as perspectivas eram gratificantes, inteligente, dedicado, e atencioso, diziam os professores, acrescentando: -  este menino é um superdotado!
Júlia não sabia como dizer-lhe que Firmino não era seu pai verdadeiro… já um dia lhe tinha sido perguntado pelo filho porque razão ele não tinha o apelido do pai… - quase todos os meus colegas falam dos nomes dos pais, mas o meu não é…
- Fernando: creio ter chegado a hora de te revelar um segredo, esperava ser mais tarde quando tivesses a compreensão necessária, mas vejo que já podes compreender…
-Compreender o quê mamã?
- É uma história longa e complicada de adultos que cometem erros enquanto são jovens… - e a palavras não saíam… Meu filho tu sabes o quanto eu e teu pai te amamos a ti e à tua irmã.
- Nós também vos amamos muito… desculpa se fazemos por vezes asneiras…
- Ó meu querido filho, as nossas asneiras são mais dolorosas… contudo temos de assumir os nossos atos, e antes que o venhas a saber por outros, vou contar-te: O Firmino não é o teu verdadeiro pai.
- Que dizes mãe?
- Tenho que te dizer a verdade, mesmo que me odeias. Foi há cinco anos, eu estava enamorada de um senhor, que casou com outra mulher.
- Abandonou-te?
Fui eu que desisti dele porque estava casado com outra mulher que não merecia a sua traição. Encontrei-me com o Firmino quando já te esperava, ele aceitou e até queria registar-te como filho seu mas eu recusei, porque eras meu e sempre serás.
- E do pai não posso ser?
- Claro que podes e deves porque ele ama-te tanto!


sábado, 23 de maio de 2020

António Lobo antunes



O MANUAL DOS INQUISIDORES
Publicado por António Lobo Antunes em 1996, fala-nos sobre o fascismo em dois momentos: antes e depois da Revolução dos Cravos, a narração é feita por personagens que se sucedem e se alternam. É um romance escrito pelos próprios personagens que se revezam em depoimentos e comentários. Centra-se nas relações de poder de um Ministro de Salazar à volta do qual girará a própria narração do livro- que possuía “poderosas credenciais”, condecorado com a ordem nacional do: “você sabe com quem está falando?”, um homem imoral, agressivo, machista, lascivo e autoritário enquanto está no poder, que contrasta drástica e dramaticamente com a figura decrépita e degradada em que vem a tornar-se depois, ficando sujeito à mesma sorte de sentimentos a que qualquer pessoa comum pode ser submetida. As restantes personagens são tipos sociais que não mostram nenhuma evolução com o passar dos anos, mesmos os pobres são conservadores, têm o ponto de vista dos dominadores, reproduzem o discurso da ignorância em que vivem, devido a uma acomodação adquirida com o passar dos anos. Como em outros livros de ALA embora sejam questionados alguns aspetos delicados, como família, política, religião, diferenças de classes sociais, o grande senso de humor e a espirituosidade criam uma leitura que não é penosa, nem entristeçe o leitor, fazendo com que assuntos dolorosos e trágicos acabem provocando o riso.
(...) o senhor doutor dobrou-me para a frente, encostou-me a uma viga em que dormiam rolas e as placas do telhado estremeceram, procurou-me no vestido achou-me perdeu-me tentou achar-me de novo, e eu esqueci-me dele e pensei nas laranjas a brilharem na paz de agosto (...) até que as laranjas se apagaram de súbito, a morte (e, pior que a morte, o tempo) tornava a existir, o cheiro do tabaco a desvanecer-se, e o senhor doutor a recuar um passo – Para te lembrares de mim comunista de merda.
– Xixi senhor doutor xixi então que é isso vamos lá bravo ótimo bravo hoje não nos vai sujar os lençozinhos lavados pois não seu maroto? o meu pai de queixo pendente, de nádegas bambas, a tentar limpar o nariz com a manga que treme, e elas solícitas – Tem o lencinho na algibeira não tem senhor doutor tem sim senhor cá está ele repare no lencinho e diga aqui à Fernanda para que lhe serve o lencinho o meu pai calado, submisso, inútil, sem cigarrilha, sem dentadura postiça, sem lábios, sem chapéu, estendido no colchão como um espantalho de cama (...)
(...) eu em Caxias a lutar pela família para que a minha mulher e as outras mulheres da tribo continuassem a gastar fortunas em cabeleireiros e terrinas e os idiotas dos meus filhos e dos filhos dos meus irmãos enfiassem no nariz a cocaína suficiente para não virem ao escritório aborrecer-me com idéias e projetos de empresas, nem desatarem a contar ações e a quererem tirar-me o lugar como eu fiz ao meu velho assim que me cansei de ser verbo de encher e de ver numa dor de alma o crédito a apodrecer parado, prometi isto e aquilo, acenei com umas poltronas no conselho fiscal, uns postos de administrador aqui e acolá, umas promoçõezitas discretas, umas garantias vagas, juntei cinquenta e dois por cento, convoquei uma assembléia-geral extraordinária (...)
(...) almocei com o médico do meu pai para saber se a diabetes, a tensão arterial e o coração do velho o aguentavam muito tempo, se não era aconselhável uma dessas intervenções cirúrgicas complicadas, para trocar artérias por próteses de borracha, que se demora meses a convalescer ligado a três dúzias de máquinas, com três dúzias de tubos nos orifícios do corpo, a comer à colher chávenas de caldo até uma pneumonia redentora salvar o desgraçado de máquinas, tubos e canjas (...)
(...) o professor Salazar que mandava no país inteiro, nos militares, na igreja, a fazer-me perguntas, a preocupar-se comigo, a achar-me graça, a oferecer-me torradas, refrescos, bolos de ovos, taças de morangos, o professor Salazar de perninhas magras juntas, com um guardanapo nos joelhos, a pedir-me que lhe falasse da praça do Chile, da minha mãe, da loja, o professor Salazar a tratar-me por minha senhora, a tratar-me por menina, as ondas recuando e avançando nos túneis do castelo, o farol a chorar lágrimas verdes não sei por quem, as palmeiras a gritarem lá fora, o professor Salazar que eu não acreditava que prendesse pessoas, as mandasse torturar, as embarcasse nos paquetes de África para morrerem de mordeduras de cobras venenosas, o professor Salazar tão prestável, tão delicado, tão atencioso, a pegar-me na mão com a mãozinha lenta, uma mãozinha insegura de menina, o professor Salazar, se eu me calava, a suplicar-me que continuasse, interessadíssimo (...)
– Caldinho senhor doutor um caldinho de legumes ótimo passado pelo passe-vite uma postazinha de pescada frita sem nenhuma espinha que gastei meia hora a tirá-las seu camelo uma perazinha cozida esta pelo papá toca andar esta pela mamã mais depressa esta por mim raios parta o velho que também mereço esta é pelo palerma do seu filho para o não achar mais magro no dia da visita não vamos assustar o seu filho com um rostozinho chupado das carochas não vamos assustar seu filho com um rostozinho de múmia vamos ser obedientezinhos senhor doutor engula sacrista do homem que me fecha os dentes engula engoles ou não engoles meu safado?
(...) como se eu fosse beijá-la senhores, como se quisesse beijá-la, como se me apetecesse beijar uma cadela esquelética, exausta, na agonia, sem forças para latir, rastejar, erguer o focinho sequer, como se me apetecesse beijar as formigas e as moscas que lhe passeavam no lombo sem que ela as sacudisse, como se me apetecesse beijar a baba de sangue do focinho, uma lata de conservas e um frasco de perfume vazio no parapeito, os pés descalços, pratos e talheres por limpar no lava-louças, uma criança lançando serpentinas de carnaval na varanda fronteira, como se ma apetecesse, imagine, beijar uma cadela usada, uma cadela repugnante, se eu tivesse a caçadeira, trazido os cartuchos, gritasse pela Titina para mos ir buscar, e a minha mulher no sofazito de vime – Não adianta chorar não chores não adianta chorar como se eu chorasse senhores, como se fosse homem de lágrimas, como se a minha vida não melhorasse sem ela (...) (...) por que motivo não vens comigo para casa, a Titina muda os lençóis da cama, muda as toalhas, põe o serviço das visitas, deita o pequeno para estarmos à vontade (...) precisas de engordar, ir à depilação, cuidar de ti, e que eu cuide de ti, precisas de ir à Baixa comprar roupa mas como se fala a uma bicho surdo atravessado numa calha de rega, a uma cadela enferma prestes a desaparecer debaixo da figueira, como se fala com pernas cruzadas e braços cruzados que me repelem, me recusam, se defendem de mim (...)
(...) entrar no palácio que me cabe de direito, terminar com os abusos, colocar o Exército em sentido, enfiar esta bodega na ordem, governar este esterco, uns tabefes por aqui e por ali, os semanários caladinhos, o povo caladinho que é aquilo que ele gosta, pode crer que é aquilo que ele gosta, caladinhos e toca a andar que há-de haver neste país quem me siga, quem se lembre de mim e me respeite (...)
(...) e fazia de conta ser a minha casa ser a minha casa como fazia de conta que a mulher que me recebia no capacho e se vestia como a Isabel, se penteava como a Isabel, usava o perfume da Isabel era de fato a Isabel, não a Isabel da altura da separação mas a Isabel do tempo em que nos conhecemos, uma mulher que aluguei e decorei e paguei exatamente como o apartamento, com a mesma minúcia de cenário de teatro e o mesmo cuidado de relojoeiro, um quarto igual ao nosso quarto, uma sala igual à nossa sala, os mesmos retratos, as mesmas flores, o mesmo espelho onde ela me aceitou e rejeitou, cortinas verdes que me davam a ilusão das faias das quintas, a ilusão dos pássaros, eu a afagar a Isabel através daquela a quem chamava Isabel e se vestia e penteava e cheirava como a Isabel – Gostas de mim?
Excertos de O MANUAL DOS INQUISIDORES

À descoberta II

Por terras de ninguém II
Chamava-se Francisco, de nacionalidade Espanhola, vivia e trabalhava nesta fábrica, desde há muito tempo, era mais um emigrante, vindo de terras Galegas, com certeza á procura de uma vida melhor. Como tantos outros, também ele foi forçado a deixar os filhos entregues a algum familiar que cuidou deles, enquanto amealhava uns tostões e os enviava para os sustentar e tentar dar-lhe uma educação no meio social que ele e sua esposa não tiveram…o mais velho também nomeado Francisco júnior, completou os seus estudos, veio ter com os pais, e arranjou um emprego na mesma fábrica, nos escritórios, era alto, e tal como o pai, este pequeno, tinha uma paixão pelo futebol… não foi difícil integrar-se na equipa que o pai dirigia, uma grupo de jovens, de pelo menos cinco ou seis nacionalidades, praticando este desporto sem preconceitos nem atitudes discriminatórias, era um “hobby”, que nos fazia esquecer os horários de trabalho, e os lugares, alguns deles complicados. O “ passageiro” sentia-se, bem no seio daquela família desportiva com os mesmos objetivos, gostava do ambiente, admirava a
paixão do “mister” francisco, quer ganhássemos ou perdêssemos, o orgulho dele, era jogar com equipamentos e todo o material fornecido pela fábrica, lavado e passado pela secção desportiva, onde existiam vários níveis de competição, Numerosas foram as vezes em que o “passageiro” foi convidado para o repasto, cofeccionado à espanhola, naquela casa pequenina em Levollois Perret. Pouco tempo depois, as coisa em Espanha, com a destituição de franco, tornaram-se agradáveis, e a maioria dos colegas Espanhóis regressaram definitivamente ao país de origem, e nunca mais tive notícias deles.
Também na vida do “passageiro” tinham surgido outros compromissos radicais, que o mantiveram distanciado, por obrigações de serviço militar, durante três anos. Voltou novamente à fábrica onde trabalhou mais seis meses, apesar de ter voltado para o lugar que ocupava quando partira, bastante agradável e cobiçado por numerosos trabalhadores. Entretanto tinha conseguido os exames do seu CAP (Certificado de Aptidão Professional) para conduzir um táxi em Paris, e como adorava os desafios, foi nesta profissão que se extasiou,
onde encontrou a adrenalina, a felicidade, e a liberdade. Amante dos desportos, da música, e do teatro, tentou ingressar neles todos, com poucos meios e frágeis conhecimentos que o pudessem ajudar. Praticou-os todos e mais alguns, como o ténis de mesa, natação e ciclismo, modalidades amadoras mas já com um nível bastante elevado. Porém, o mais apaixonante era o futebol. Foi convidado para integrar uma equipa, depois de ter sido presenciado pelos dirigentes, que se chamava “Amical 17em”. Tinha já jogado algum tempo na associação Santulhanence que competiam na Federação Francesa de Futebol. Mas a um nível que não lhe convinha, embora tivesse feito neste grupo numerosos amigos. Aceitou a proposta do Amical 17em, onde jogou alguns anos como ponta de lança, afirmando-se mais tarde como defesa central indiscutível apesar do seu metro e setenta de altura Esta equipa era sediada junto da praça de Clichy, cujo presidente era também proprietário de um café, mas quem mandava naquilo tudo era o “coelho” homem com os seus sessenta anos, natural de Avintes,
 desguedelhado e magro, apaixonado incondicional deste desporto que rivalizava com outras equipas Portuguesas no mesmo campeonato e ao mesmo nível, o último que não se podia subir mais devido às formalidades exigidas que eram de só poderem jogar três estrangeiros. Eramos todos portugueses, do Porto lisboa, Minho, Trás-os- Montes e outras. Foi neste contexto bem amigável, como o nome do clube que eu fiz numerosos e grandes amigos… o “passageiro e o seu R5 partiram de Vinhas onde recolheu o Antas, casado em  Ponte da Barca, e o Américo, pequeno mas reguila, natural de Podame concelho de Monção, com o qual fui passar oito dias de férias, na casa da sua mãe. Entretanto encontramos o Nelo em Monção onde havia festividades, o qual nos convidou para a noite com umas garinas e uns copos, mais copos do que garinas, mas passamos uma noite memorável. No dia seguinte tivemos o convite do Astor, que residia em Vila Nova de Cerveira, casado com duas filhas, e outro colega casado na Arrifana. Com o R5 atravessamos uma serra medonha, supostamente um atalho e ao mesmo tempo para me mostrar as paisagens Minhotas. Chegamos a Cerveira bebemos um copo e descemos para o lugar das festividades. As malgas de barro e o vinho churro verde, apareciam-me nas mãos vindas não se sabe de onde, e mesmo com pouca graduação, misturado com uns whiskies, quando regressamos a Podame, que ficava a uns 70km, por volta das duas horas da manhã, o Américo que conhecia o caminho adormeceu, e eu naquele estado, sempre em primeira, porque via várias estradas, consegui, com a ajuda do meu R5, levar o barco a bom porto, mas já cantavam os galos quando chegamos. No dia seguinte tínhamos encontro marcado, eu, o Nelo, o Astor, o Américo e o Antas para ir ter com o Mister Coelho ao Porto para assistir a um jogo de futebol, e no dia seguinte o jantar da queima das fitas do filho que se tinha formado em Engenharia. Na sua bonita casa de Avintes, á noite depois do jantar, mediante numerosos convivas, reparei que os olhos daquele senhor brilhavam como estrelas no céu… quanta felicidade meu Deus! Aproximei-me a sorrir e com o olhar fiz-lhe aquela pergunta: como é mister? Respondeu a gaguejar, porque as palavras não saiam, e o coração apertava, apenas compreendi: hoje foi o dia mais feliz da minha vida.




quinta-feira, 14 de maio de 2020

À descoberta

Por terras de ninguém
Poderiam chamar-lhe “ o passageiro da chuva” de René Clément, ou até o descobridor de terras já conhecidas, amadas e faladas, de onde se retiram pormenores que as tornam grandiosamente orgulhosas, pessoas que por lá nasceram, habitantes, e mesmo aqueles passageiros apressados, que não tem tempo nem sentimentos para desperdiçar, porque só se é jovem uma vez, e o tempo passa com uma rapidez medonha, deixando para trás um passado impresso em fotos pálidas, em notálgicas recordações desvanecidas, que ninguém quer ver nem ouvir contar, histórias que não embalam, poemas que não seduzem,” palavras, palavras, palavras” como cantava Dalida em dueto com Alain Delon.
Primeira visita a Lisboa para assistir ao casamento de um familiar, o “passageiro” tinha comprado, novinho “em folha”, aquele carro, verde-claro metalizado, pequeno, mas veloz, o que usavam as patrulhas de viação e transito, era um R5TS duplo carburador, que
 impressionava agarrando-se à estrada tal uma “caraça”, competindo com marcas de renome, e cilindradas superiores, era a sua pérola, a sua peça de estimação, que jamais o desiludiu. Chegados ao destino, em Benfica, por volta da uma hora da manhã, eram cinco os passageiros, acomodaram-se dentro para dormir, até que se fez dia, e o primo bateu nos vidros, com um sorriso matreiro nos lábios, e de uma voz terna brincalhona dizia: - “Ó ciganada, toca a levantar que o pequeno-almoço espera por vós”.  Não nos fizemos “rogados”, entramos para o apartamento de uma irmã, fomos ao quarto de banho lavar os olhos e mudar de “fatiota”, para assistir ao casamento, cerimónia que se realizou, se não estou em erro na Igreja de Nossa Senhora do Rosário, por volta do meio-dia. Viemos almoçar a Benfica num restaurante do conhecimento dos noivos, por volta das duas horas da tarde. Como é costume nestas circunstâncias, o repasto copioso foi demorado, e o convívio fraternal entre familiares e amigos, prolongou-se pela tarde fora, falando-se de coisas insignificantes, simplesmente para animar os ânimos e guardar nas memórias para a posteridade. Chegou a hora de regressar à pacatez da terra, e a discórdia instalou-se, querendo uns passar pelo Santuário de Fátima, e
outros que já tinham visitado, voltar diretamente para casa. Chegou-se a um consenso, um dos dois automóveis passava por lá, o outro regressava diretamente. Desagradado o passageiro, carregava no acelerador, e o R5 bateu mais um recorde efetuando o trajeto em pouco mais de quatro horas.
Segunda visita a Lisboa, no ano seguinte, uma viagem imprevista, insensata, fora do contexto alargado pelas festividades da Aldeia nesse mesmo fim-de-semana, evento que o “passageiro” jamais perderia, não fossem os incentivos dos amigos, aventureiros, obstinados, amantes da descoberta louca, do imprevisto.  À partida eram cinco, mas um deles foi obrigado pelos pais a desistir. Descíamos para o pocinho, no R5 como é óbvio, e vimos ao lado esquerdo uma vinha com uvas já a pedir para serem cortadas. – Que refresco “pá”, para… - mas ninguém se queria aventurar com receio de o dono se encontrar escondido, e quem sabe com uma arma de fogo apontada? Mas as uvas estavam ali, como a sorrir, pedindo que as comessem… finalmente dois mais corajosos saltaram a vedação e rapidamente colheram umas uvitas que mal davam para todos. Era já noite quando passamos Coimbra, mas a margem do rio expandia uma beleza singular, embora os passageiros não tivessem muito tempo para admirações. Já bastante tarde, na Nacional 1, seguíamos alegres fazendo gestos de adeus sempre que ultrapassávamos outro automóvel, quando outro R5 se colocou na segunda fila acompanhando-nos e
desafiando-nos. – Olha o pardal! – Disse um dos passageiros, parecendo incomodado com o automobilista que por certo se julgava imbatível com a sua máquina transformada. – Deixa que eu dou-lhe já uma lição disse o “passageiro” , começou acelerar para ver a reação do outro…acelerou mais um pouquinho e o outro ia ficando para trás mesmo na fila de esquerda. Este jogo durou durante algum tempo, passava ele, passava o “passageiro” , a uma velocidade que rondava os 165km até que por fim resolvemos deixá-lo para trás atingindo o R5 verde os 180km hora, e só quando estávamos chegando ouvimos o apito daquele que não compreendia como dois carros iguais atingiam velocidades diferentes.
Chegamos sexta-feira de madrugada, e mais uma vez dormimos dentro da viatura até que se fez dia. Quatro turistas improvisados dispostos a descobrir todos os cantos da capital. O R5 parecia conhecer a cidade como a aldeia de onde era oriundo. Também o condutor se sentiu como o peixe na água, transitando de Benfica ao largo do rato, onde se situava o guia um policia familiar, que nos acompanhou dia e noite, do Rossio, portas de santo antão, ao castelo de são Georges, praça de espanha, percorrendo a avenida da república até à Portugália onde saboreamos mariscos e acabamos a noite já bem animados. No dia seguinte, à noite fomos à festa do avante, de onde voltamos cerca das três horas da manhã, e como já não havia transportes, “encafuaram-se” 9 pessoas dentro e por cima do famoso R5, mala inclusive, de porta levantada , atravessamos o parque Monsanto e na descida para Benfica, os que iam assentados na frente, caíam e voltavam a subir, até que chegamos ao destino. Aventureiro o “passageiro” e o seu R5 não se ficaram por aqui nas aventuras pelo País fora…  (continua.)                                                                                                                                                    



quarta-feira, 6 de maio de 2020

Crônica inédita de António Lobo Antunes

Crônica inédita de António Lobo Antunes: Antônio Lobo Antunes é um dos maiores escritores vivos da língua portuguesa e o privilégio de poder ler uma crônica inédita dele não é um...

sexta-feira, 1 de maio de 2020

Viveres

 A outra parte
Foram concebidos e nasceram idênticos ou semelhantes ao próximo, segundo os ensinamentos, o fundamento do endoísmo, ou a luz do caminho que não esclarece causas nem motivações, alegadas premissas, eventualidades nem pressupostos, que certifiquem sem margem para dúvidas, a igualdade. Espalhados por esse mundo fora, são centenas de milhares, em situações inexplicáveis que aderem, voluntária ou involuntariamente, ao comodismo de situações amorosas, durante uma vida inteira, trabalhando como escravos, economizando cada centavo, vivendo em casas degradadas sem o mínimo conforto, para dormir uma cama a cair aos pedaços, sem quarto de banho para se lavar, uma côdea para se alimentarem, mal calçados e vestimentas pelas quais passaram tantos anos, mas orgulhosos com uma conta bancária avultada, que talvez pensem levar no caixão, mas na verdade fará o regozijo de quem pouco ou nada se lembrará, que a sua existência foi a maior das precaridades, e nem sequer terá uma palavra de agradecimento nos seus pesadelos noturnos.
Acostumaram-se a viver sós, como os sem-abrigo, aqueles que nunca amaram nem foram amados, marcados por um destino perverso, por uma humanidade indigente, condenados desde a nascença à abstenção de uma Eva de mão tendida, de um gesto afável, de um carinho fugitivo, ou simplesmente de um sorriso encantador, tal como o da mãe que os pariu, e no regaço embalou, quando eram seres humanos. Não os julgo, porque não sou juiz, nem os condeno porque também não sou tribunal. Será uma escolha, será uma imprecação? As verdadeiras razões, guarda-as o próprio secretamente como se fosse um tesouro.
Os seres humanos são imprevisíveis… tal como alguns rios, que nascem e desaguam não se sabe onde. Existe uma mística incondicional de fatores que nos conduzem à pragmática duvidosa de ser ou não ser o que somos ou o que queríamos ser, independentemente das travessias complexas para uns, facilitadas para outros, um homem uma mulher, formados com 
 sintomáticos universos onde tudo é relativo e pessoal, segundo a individualidade de cada um que a personalidade concretiza pelo devaneio tímido ou libertino, que nos diferencia com extroversão e a sociedade moderna carateriza como útil, prático eficaz. Será? Sem entrarmos em sistemas preconceituosos, pessoalmente não consigo discernir certos comportamentos em pessoas que publicitam a suposta felicidade onde o amor lhes enche o espirito vezes sem fim, como quem muda de sobremesa a cada refeição. Casar, divorciar, juntar os trapos e de um dia para o outro tudo se desvanece por razões fúteis, mas, o orgulho fala mais alto e tem mais poder que a irresponsabilidade, deixando filhos órfãos de pais vivos, desconectados por não saberem para que lado se virar, dividindo o tempo de afeição por lugares diversificados, sem que lhes seja facultado o direito de escolher. Chamam-lhe amor ao que eu considero ser afeição, atração e outros adjetivos menos o de amar. Amar profundamente é um enxerto que pegou e que enraizou com tanta consistência que venha o vento de onde vier, veloz, ciclónico ou suave, não consegue separar dois corpos que se tornaram geminados para sempre. Não há problemas que não se resolvam, mas há atitudes que destroem para sempre. 

Naquela casinha, pequena e sem divisões nem soalho, havia uma chaminé, por onde o fumo, que sobejava dos olhos a lacrimejar, saía vulcanicamente, sem direção nem destino, viviam três irmãos, dois homens e uma mulher, já de idade avançada, solteiros, até que a rapariga desencantou o chinelo para o seu pé, e casou numa aldeia vizinha, e por lá se ficou como quem renega o passado e com ele as suas raízes. O mais velho dos irmãos faleceu num acidente de viação, enquanto prestava serviços em troco da pequena” jeira”, num Domingo fatídico. A casinha que era pequena para os três tornou-se demasiado grande e silenciosa, para o outro irmão, solteirão, como tantos por esse mundo fora, não se compreendendo as verdadeiras razões, nem os porquês que os obrigavam a viver uma vida inteira, sós, solitários, sem uma família para acarinhar, um filho para “arrolar” ninguém com quem conversar nas noites longas e medonhas de inverno, fixando o vazio ao levantar e ao deitar, e adormecer ao som dos ruídos noturnos, ano após ano, enquanto se espera o envelhecimento e a morte, sem jamais experimentar o que a vida tem de bom, a felicidade.