Encafuado entre o arvoredo, junto ao ribeiro, que ainda
corre, e ele desviou o seu trajeto intencionalmente, para regar a pouca cultura
que lá semeia, favas ervilhas e cabaças, mas que trabalheira que o homem teve
para cavar aquele terreno todo às “ganchas”, com oitenta e tantos anos, pequeno
gabarito, mas, rijo que nem aço… vive feliz assim; longe das más línguas, dos
maus olhares, da critica barata, enfim… julgo que se sente só no mundo, não por
lhe faltar carinho, conforto, alimentação, a sua casinha, e tudo o que os familiares
exemplares lhe proporcionam; acostumou-se ao silêncio da noite aos murmúrios surdos
das estrelas e à companhia do seu pequeno cão que o não larga e lhe transmite
fidelidade. Vejo-o quase todos os dias na minha caminhada cotidiana, mas ele
finge não me ver… tempos antes escondia-se cada vez que o sinal do cachorro lhe
chegava aos ouvidos, agora dá uma espreitadela, e continua na sua labuta sem se
sociar, assim como eu também passo, e não interrompo quem tem tanta garra,
energia e vontade de trabalhar com aquela idade?!
Também não aceita boleias a ninguém… com o seu saco às costas,
e um calor tórrido, atravessa a estrada de asfalte ( e, se por acaso passa um
carro ao mesmo momento, esconde-se, para depois seguir o seu caminho)
enveredando por um trajeto sinuoso, de elevação acentuada, mas, o mais discreto
que existe, que o conduzirá à sua casinha, longe dos olhares indiscretos e
bisbilhoteiros do povo. Conheço-o há vinte e poucos anos, e sei que foi mais
uma vítima da descolonização desordenada, injusta, e, como tantos outros, após
o 25 de Abril, foram forçados a deixar todos os bens materiais onde viveram
anos memoráveis de felicidade e alegria junto dos familiares. Recordo-me
perfeitamente por ter assentado praça nesse mesmo ano, e lembro-me como eram
tratados os chamados… “retornados” . O nosso governo provisório não soube lidar
com a situação, nem garantir a volta dos cidadãos e bens, o que ainda hoje
considero lamentável, e nada dignificante, independentemente das situações em
terras Africanas.
O meu homem invisível passou por algumas dificuldades tendo
uma família numerosa ao seu encargo, mas nunca baixou os braços e hoje pode
orgulhar-se dela! Voltou para a terra natal no período em que o minério afluía
com grande quantidade, e a exploração entregue a uma empresa Belga deu bons
resultados, tanto para os patrões como para os empregados a quem não faltava os
cinco reis para gastar no Torres e outros comerciantes improvisados que
agarraram a oportunidade: Foram os tempos gloriosos de Murçós, “el dorado” que
infelizmente duraria poucos anos, mas que ficaria nos anais daqueles que nostalgicamente,
ainda hoje relatam com um largo sorriso nos lábios, e revivem tradicionalmente.
O meu homem não era pacato, aliás bem pelo contrário, fora
um daqueles traquinas dispostos e voluntários, a alinhar sempre que houvesse
uma travessura que não prejudicasse ninguém, com humor negro à mistura. Também
alinhava nas refeições fora do comum com repteis ou aves juntamente com os “comparsas”
do mesmo nível social, e amigos das brincadeiras.
Aconteceu uma vez, quando de volta com o seu colega, de Ervedosa,
onde exploravam minério, e vinham passar o fim-de-semana a casa, a penáltis
como é óbvio. Chegados junto do moinho “chamado do borracho” lá para os lados
das pontes, numa propriedade agrícola, ainda de longe os dois comparsas avistaram
um rebanho de cabras pastando, e dois cães grandes brancos que as guardavam
juntamente com a pastora dos seus dezasseis anos: - Disse um para o outro: - põe
o capacete na cabeça que vamos multar aquela cabreira… o outro às gargalhadas
obedeceu, e quando se aproximaram da moça perguntaram:
- Os seus cães têm licenças?
- Não. – Respondeu.
- Nesse caso vamos ter que a multar… - e dizendo isto tirou
do farnel um lápis e um papel sujo escrevendo o que lhe apeteceu, ou apenas
rascunhos poe não saberem ler. Entregou-o à moça tremula, dizendo:
- Va pagar amanhã a Bragança… e começara a caminhar soltando
gargalhadas surdas para que a rapariga não se apercebesse.
No fim-de-semana seguinte, esperava-os o pai junto do moinho
e convidou-os a entrar para beber um copo. Desconfiados e temerosos, pareciam dois
cordeirinhos culpados, e estavam dispostos a sofrer as consequências dos seus
atos. Porém, já dentro, disse-lhe o interlocutor. Assentem-se que vou buscar
uma pinga e um naco de presunto…
Como o cigano desconfia da esmola quando esta é avultada
também eles, desconfiados olharam um para o outro, dispostos a fugir, mas já o
moleiro vinha com o presunto e a pinga e depositou em cima da mesa.
Ficaram todos em silêncio
durante uns instantes, e os guardas improvisados não ousavam pegar no presunto
embora lhe crescesse água na boca…
- Então não comem? Se é por causa da multa comam, que já foi
paga…
-Foi???
- Homens, a minha garota não é burra, e o papel limpou o c…
e ele…
- Então porque nos dás de comer e beber?
- Porque no papel vinha uma noticia que dizia assim: venha o
diabo e escolha!
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