segunda-feira, 30 de abril de 2018

O puto de vale dos amieiros





Por

ANTÓNIO BRAZ PEREIRA

1.ª parte
Tanto quanto me é permitido recordar, através dos cinquenta e nove invernos passados, dezassete dos quais permanentemente naquela aldeia, pacata como muitos lhe chamariam, para mim maravilhosa terra, Rebordainhos, ou idealizei, ou então sonhei, é um mundo lindo no interior dos seres e das coisas, pacífico, íntegro, com a sua movimentação natural virada quase sempre para o sentido da alegria e respeito.

Desejava poder evitar a narração da parte negativa pela qual milhares de famílias passaram, e passam ainda no século em que vivemos, para não ser julgado como infeliz, coitadinho, ou simplesmente desprezado, sendo a descriminação uma deficiência mental das mais defeituosas da nossa existência. Contudo, eu vivi assim.

Vale dos Amieiros fica distanciado da aldeia uns três ou quatro quilómetros, mas não era a distância que me metia medo quando tinha os meus seis anos. Enfiado nos socos de amieiro, feitos pelo tio Grilo, com terra já calcada no interior, lá ia eu e meu pai, atrás de um burro velho e ruço, lavrar um cantinho que possuíamos, ou seria baldio, no topo da grande encosta, quase na Malhada Velha onde o povo se revoltou contra a plantação dos pinheiros nas terras que alimentavam numerosas famílias. O Sol era abrasador, a poeira entrava-me pelas narinas, água só na Ribeira e, para cúmulo do infortúnio, à nossa volta ouvia-se apenas o cuco cantar, sempre e sempre a mesma moda. E eu que gostava tanto de brincar no Prado ou na cerca da escola!...

Faltava ainda um ano para entrar na primária, e enquanto o tempo ia passando com aquela lentidão desconcertante, encontrávamo-nos, grandes e pequenos, nos tanques construídos para a rega - Vale da Frunha, Chãera e Covinha eram os mais frequentados - onde tomávamos banho, ou melhor, eram a nossa praia de nudismo, sendo poucos ou nenhum a possuir calções de banho. Ali permanecíamos horas a nadar, aqueles que já sabiam; os outros iam aprendendo à sua custa. Eram lançados pelos mais idosos para dentro do poço, sendo apenas socorridos quando já tinham engolido grande quantidade de água, como se deve compreender, “não potável”. É assim que se aprende a nadar – diziam eles, enquanto os pobres ainda sufocavam, tossindo, esperando que a água ingerida fosse ejectada.

Recordo-me também dos grandes nevões. Num deles, talvez o maior, o meu pai tentou abrir a porta da rua mas não conseguiu. Abriu a porta que dava para casa da tia Helena, e o espectáculo era digno de um filme de ficção científica. Para retirar água na fonte grande, os homens abriram um túnel, idêntico ao das galerias onde os franceses guardam preciosamente os vinhos millésimes, à temperatura desejada.

Finalmente abriu novo ano lectivo, o dos meus sete anos. Éramos seis rapazes e só duas ou três raparigas, a entrar para a primeira classe. Nesse dia, os pais faziam sempre um esforço pela boa apresentação dos filhos. Iam mais lavadinhos, penteados, com risca do lado esquerdo. Também ia assim, calças remendadas, socos, e uma camisa que alguém caridoso deu à minha mãe. Para mim o que levávamos vestido não tinha qualquer importância. Queria aprender a ler, escrever, contar, falar e conviver com gente da minha idade. Começava a dar os primeiros passos na vida. Marcou-me o facto de quase todos levarem uma “pedra” (ardósia) enquanto eu ia de mãos vazias. No dia seguinte minha mãe esclareceu-me: Ó meu filho! Custa uma coroa, e nós não a temos, para a comprar. Como quando se é pequeno não se liga muito às coisas insignificantes, desenrasquei-me, pedindo a uns e outros, sempre que necessitava, aliás também não tive qualquer livro, nem sequer na quarta classe, aprendendo nas aulas a gramática, os problemas, redacções e reduções, geografia, português e história, marcando-me o livro de terceira classe que me emprestava o Tarcísio para decorar a Barca BelaVozes dos Animais, não esquecendo aquele poema de que tanto gostava, a Balada da Neve de Augusto Gil:
Batem leve, levemente
Como quem chama por mim
Será chuva, será gente!
Gente não é certamente;
E a chuva não bate assim


Enquanto duraram os meus quatro anos escolares, e à medida que ia crescendo, tantas coisas passaram e voltaram a passar, na minha cabecita! Vivia alegre e feliz, quando jogávamos à pedrada, com os dos Pereiros, ou, mesmo, quando um dia ficámos presos; também ao saber que o Ferreira esteve caindo do forro do telhado da escola, deixando um grande buraco aberto, enquanto procurava uns pardalinhos - e não era tão fácil subir lá cima! O Ferreira foi sempre um quebra-cabeças, para os professores. Noutro dia, no adro da Igreja, enquanto decorria o terço, o Ferreira dava pontapés a um pau que ia embater com força na porta central. Saiu de repente o Sr. Professor, e desatou a correr atrás dele, enquanto ameaçava: olha que eu toso-te! Olha que eu toso-te! Já foi tempo... – respondia este, esquivando-se pelourinho a cima.

Um dia lindo de Primavera, por volta das nove horas, o Sr. Manuel do tio Amadeu dava de comer à sua torina, que tinha na loje junto da casa do Foguete; e como todos os dias, também o Gilberto, (Tição) à ida para a escola, passava por ali por junto da porta, para lançar para dentro: Ó barbas d’alho! O tio Manuel, por quem eu tinha grande respeito e admiração, com grandes dons para o teatro, apesar de eu só lhe ter visto encenar e realizar um, ou melhor uma mistura de “esterlóquio” lançando fogo pela boca e histórias diversas, mas também porque recebia, creio, de um irmão que tinha na Régua, material escolar que oferecia em troca de outros jeitos, naquele dia esperava de pé firme o gaiato. Mal se aproximou da porta, já estava colhido por um braço forte de homem. – Então sou barbas de alho? E pegando numa bosta de vaca, encheu-lhe a boca com ela, enquanto murmurava: para que não voltes a chamar-me isso. E o garoto lá foi lavar a cara ao tanque, enquanto os que presenciámos a cena desatávamos a rir, é claro, contando de seguida na escola.

Enquanto frequentava a 2ª classe, os mais velhos não nos ligavam. Mesmo assim, eu tinha os meus ídolos. O Amadeu, que faleceu em Angola desenhava tão bem, que enquanto vivi em Paris, exercendo a profissão de motorista de táxi, sempre que levava clientes à praça do Tèrtre, também conhecida, por Montmartre dos pintores, o recordava com saudades. O Pilatos e as asneiras que engendrava fumando o seu Kentucky; o Zequinhas, irmão da Teresa, a quem chamavam “burro” por ter passado da 2ª para a 1ª, e de quem se riam, mas a mim me revoltava por compreender que o rapaz teria, por força, outros valores que não os das letras; mas sobretudo a Albertina, uma inteligência rara, superdotada, direi mesmo. Quantas vezes nos ajudou!... Não havia exercício que lhe resistisse.

Aproximou-se o exame de quarta classe, só quatro dos oito fomos propostos: duas raparigas e dois rapazes. Devo dizer que o apoio de que falava a Albertina, uma das eleitas, nos ajudou bastante. Eu e o meu primo Tarcísio fizemos exame na Estacada, após oito dias de estadia em Bragança. Voltámos com aprovação, e as moças que também foram aprovadas, creio que ficaram, pelo menos uma delas, para fazer a admissão ao liceu, já que a outra tinha seguido para Lisboa, onde realizou a mesma prova.

Esta foi uma época em que grande parte dos rapazes era encaminhada a estudar para padre, excepto as famílias carentes, com poucos ou nenhuns meios, das quais eu fazia parte. Tinham já partido para Mogofores, ou Arouca, o António e o Zé Fernandes, seguidos do Filinto e Domingos Caixeiro, o Evaristo. Agora era a vez do Tarcísio, meu primo, enquanto eu meditava nos porquês da vida de uns e de outros. Gostava tanto de poder ir também! Mas como? Quem não pode comprar livros aos filhos vai poder enviá-los a estudar? Meio resignado, lembro-me de um dia, sentado no tanque do prado, tristonho, ver chegar a minha madrinha junto de mim e dizer: não posso mandar-vos aos dois!... Os miúdos compreendem logo tudo. Não tinha inveja, contudo, quando os via voltar, todos vestidos de azul, com sapatinho baixo engraxado, no tempo das férias, e ouvi-los contar, naquela linguagem já diferente da nossa, coisas lindas que por lá viviam… No ano seguinte foi a vez de o José Maria embarcar para lá.

Ressurgiu em mim a esperança de haver uma alma caridosa na Aldeia, que me mandasse também, e mais convencido fiquei quando, um dia, o Sr. Padre João me chamou à sacristia, querendo falar comigo. Tinha realmente uma proposta para mim, mas não era a que esperava. Contudo, dadas as circunstâncias de não poder ir para lado nenhum, aceitei vir para casa dele, ou melhor, ainda do Sr. Ernesto, uma casa nova e grande, onde vivia a Sra. D. Denérida, a Sra. Virgínia sua mãe, o Padre João, duas criadas e, é claro, o proprietário que viria a falecer pouco tempo depois, como rapaz de recados. Para os trabalhos agrícolas tinha um caseiro, o tio Guerra, homem vindo não se sabe ao certo de onde, já idoso, mas muito querido dos patrões, e que sempre me dizia: ainda um dia vais ser alguém!...


Foi nesta casa de acolhimento, perante uma família com numerosos e valiosos valores, que eu vivi cinco anos de felicidade indescritível. A Senhora Virgínia, que por certo está no céu, tão bondosa e carinhosa, na casa dos noventa anos, tantas vezes me convidou – como ela dizia – não só com carinhos, como com moedas que retirava da gaveta do quarto onde dormia o Sr. Padre, sobretudo na época de ofícios ou visita pascal, e o filho que sabia de tudo, nunca o deu a saber nem sequer entender, tal o respeito que tinha pela mãe. Vinha com um lenço atado nos quatro cantos, tilintando pelo longo corredor fora e dirigia-se a mim dizendo: se me fores buscar uma “gabela” de lenha convido-te. Outras vezes pedia: ó meu filho, vai buscar-me um cântaro de água, vais? É claro que ia, mesmo que não houvesse convite, bastava-me aquele lindo sorriso com o qual sempre agradecia. Nunca vi esta Senhora zangada. Era uma jóia de pessoa, que Deus lhe retribua os valores que me transmitiu.

A Sra. D. Denérida dava aulas em Espadanedo. Herdou da mãe tudo o que era de bom. Foi caridosa ao ponto de perdoar letras de empréstimos vindos do marido – que fazia no seu tempo como a banqueira do povo, emprestando a juros muito altos, fazendo assinar um fiador com meios, no caso de não pagarem. Havia no quarto do escritório, onde eu ia muitas vezes preencher os boletins com os nomes das pessoas carenciadas, para quem “a Cáritas” enviava géneros de alimentação, como queijo, leite, farinha etc., um cofre todo de ferro, enorme, ao qual davam o nome de burra. Era lá que o Sr. Ernesto metia a sua fortuna e a miséria dos outros.



A Sra. D. Denérida vinha passar todos os fins-de-semana a Rebordainhos, mais uma mocita que vivia com ela. Aos domingos à tarde, lá tinha que ir eu com elas, deixando a bola que tanto gostava jogar, montado numa mula grande e má, com uns alforges cheios de mantimentos para a semana. Um dia pensei bem pensado, como devia fazer para não perder a bola. Foi então que me ocorreu a ideia que a mula tinha medo de passar onde houvesse um charco de água, ainda que este fosse pequeno. Preparámos tudo como de costume, e lá íamos em direcção a Espadanedo, eu montado na mula e a Sra. mais a garota a pé. Quando chegámos a meio do caminho, entre Soutelo e Rebordainhos, havia ali uma nascente, por conseguinte tudo cheio de lama. É daqui que vou voltar para trás! – pensei. Comecei por apertar as rédeas que ligavam ao freio da mula, a qual recuava mal se aproximava da lama. Desce e pega-lhe na rédea, - dizia a Sra. Isso era pior! – Retorquia eu. Então dá a corda que traz ao pescoço à garota. A miúda pegou na corda, mas como eu em cima apertava o freio, a mula continuava a não querer passar. Andámos nesta jigajoga durante quinze minutos, até que a Sra. disse com ar desolado: agora já não dá para ires à volta, pelo caminho de cima! Voltas amanhã. Era o que queria ouvir. Dei meia volta, e toca a galopar com toda a força, batendo com os calcanhares dos pés no ventre da mula. Dentro dos alforges ia um garrafão de vinho, que se partiu, aleijando o pobre animal que fugia como selvagem. Chegados à estrebaria, como a porta estava aberta, entrou como um foguete tendo eu apenas tempo para deitar as mãos à parte superior da porta e deixar-me cair. No dia seguinte, entregaram-me um burro podre, do Malino, que mal podia com a carga, tendo eu que fazer todo o caminho a pé, para os dois lados.

Quanto ao Sr. Padre João, creio que merece uma homenagem digna do seu valor sacerdotal, pelos moradores de Rebordainhos, a quem baptizou, outros mais idosos casou, enfim, prestou valiosos serviços à Paróquia. Eu, que vivi com eles durante cinco anos, tinha uma relação, para além da religiosa porque ajudava à missa, de companheiro. Se saíamos juntos à caça, entregava-me o chamariz das perdizes, enquanto ele ia com a espingarda. Passávamos dias trepando pela Ladeira, Eiras, até à hora de comer a merenda, deveras desejada, e saboreada, porque me entristecia ver matar os pobres coelhos. Também saíamos a caçar no Inverno, desta vez com um furão, o qual, por vezes, esperávamos durante horas à saída dos buracos.



O Sr. Padre era diferente da mãe e da irmã. Forreta, – sai ao pai - dizia a Sra. Virgínia, enquanto me contava coisas fabulosas passadas com o marido - e quando lhe davam os “facanitos”!...

Um dia, quando o P. João estava montando para o cavalo, e como sempre, eu pegava no estribo com uma mão, para que o selim não vasculasse, enquanto com a outra segurava as rédeas, eu respondi-lhe de mau humor, com uma palavra que ele interpretou mal. Desceu, furioso, do cavalo e pegou a bater em mim, com tanta raiva, que partiu um guarda-chuva nas minhas costas. Passaram-se dias sem que falássemos um com o outro, e já não fui recitar uns versos que ele tinha escrito, e eu decorado, para uma festa qualquer.

Nutria, também, o meu orgulho e não era nenhum santo. Um dia de Inverno, com nevoeiro cerrado, mandaram-me levar um saco de centeio às pombas, ao pombal da Tempa. Cheio de medo, pois não via um palmo de caminho à minha frente, ao chegar ao tanque da Chave, peguei no saco e despejei-o no alcadute de maneira que ninguém visse. Por este e outros motivos não me confessava a ele, escolhia sempre outro Padre.

Tinha já quinze anos quando, num dia lindo de Verão, o Sr. Guerra veio procurar-me dizendo: eu sempre disse, ainda um dia serás alguém!... Andava atrás da casa, entretido no meio das flores, sem compreender o que significavam aquelas palavras. Virei-me para ele e perguntei: - O Senhor que diz?
-Vai rápido, à sala de jantar, ter com os senhores. Sem fazer mais perguntas, dirigi-me para o local onde, sentados e silenciosos, me esperavam o Sr. Padre, a Sra. D. Denérida e sua mãe sorridente, parecendo mesmo feliz, provavelmente sabendo já o que os filhos tinham para me dizer. De pé, calado, sem saber o que pensar, eu fixava-os com um ponto de interrogação no olhar. Foi o Sr. Padre João quem tomou a palavra, e indo directo ao assunto perguntou:
Tu gostavas ir a estudar?


O PUTO DE VALE DOS AMIEIROS II




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                                                                        Por

                                                                         ANTÓNIO BRAZ PEREIRA

                                                                        2.ª parte


Tu gostavas ir a estudar?

Pela minha mente passaram tão rápidos sentimentos que não conseguia descortinar. Contudo, foi a Sra. D. Denérida quem quebrou o silêncio dizendo: Sabemos perfeitamente que és inteligente e...
A Sra. Virgínia não deixou a filha terminar a frase.
Ó rapaz dos diabos, diz que sim!
Continuava silencioso, confuso, sem saber que responder. Desejei tão profundamente que esta proposta me fosse feita, esperei por ela dia após dia, e ela nunca chegou; e agora que me davam a possibilidade de realizar sonhos já quase adormecidos, não conseguia balbuciar palavra. Vendo-me tão embaraçado, o Padre João apressou-se a dizer:

– Não é necessário dar já uma resposta. Contudo devo dizer-te que a minha irmã está disposta a pagar todas as despesas com a condição de seres Padre.
Retirei-me daquela sala tão baralhado, tão confuso, tão decepcionado, talvez, pelo facto de me ser imposto algo sem que as condições requeridas pudessem dar garantias absolutas… não sendo daqueles que não cumprem; também pelo peso da responsabilidade.

Andei vários dias a pensar. Se, por um lado, se me apresentava uma maravilhosa ocasião de realizar os meus sonhos de miúdo, por outro, achava que vinha demasiado tarde. Tinham já voltado dois seminaristas, abandonado, quaisquer que fossem as razões.

O tempo era de pressas, outro rapaz preparava-se também para ir, mas eu não conseguia tomar uma decisão. Cabisbaixo, procurava a resposta em tudo quanto era sagrado, mas a consciência ditava-me sempre e sempre, a mesma: é tarde demais. Aquele rapaz que toda a gente conhecia, alegre e cheio de vida, andou vários dias, tristonho. Não participava nos numerosos jogos ao fim da tarde, evitava falar com quem quer que fosse, isolava-se para melhor meditar, chegou a sonhar que tinha partido e nunca mais o deixaram voltar. Cada vez que se cruzava com o Sr. Padre, baixava a cabeça, enquanto este procurava, certamente, uma resposta no seu olhar. Também a D. Denérida esperava uma resposta urgente. As férias estavam a acabar, era necessário comprar tudo quanto necessitava para o colégio, e a resposta nunca mais chegava. Já tinha decidido, mas parecia-me que quanto mais tempo passasse menos sentida seria a sua resposta.

Para aliviar um pouco o meu cérebro baralhado, escolhi uma visita ao moinho de Teixedo, propriedade adquirida pelo Sr. Padre recentemente. Teixedo era um lugar paradisíaco, embora bastante distante, onde apenas se ouviam cantar os passarinhos e a água a correr lentamente ribeiro abaixo, sem pressas, rodeado de árvores selvagens e erva verdinha convidativa ao descanso e à reflexão, e a roda do moinho dando voltas sem fim enquanto a água corresse e lhe caísse em cima, provocando a sua rotação, contínua mas discreta. Sem ninguém saber para onde tinha ido, percorri aquele trajecto bastante longo, onde permaneci todo o dia, sentado, a olhar a água que caía sobre a grande roda de madeira. Quando voltei, já à noitinha, esperava-me o Sr. Guerra, tão inquieto que não conseguia perguntar nada. Olhei para ele com olhar triste, denunciando certos remorsos, e disse: não posso, é tarde de mais...

– Enlouqueceste rapaz! Nunca é tarde demais. Põe pés a caminho; ou queres acabar como o velho Guerra sem eira nem beira?...
– Só eu compreendo as verdadeiras razões.

E foi assim que respondi a quem queria fazer de mim um Padre. Eu limitei-me a fazer o que me ditou a consciência. Ficar-lhes-ei grato para o resto do meu viver, que Deus lhes pague, lá onde se encontram. Quando passo junto daquela casa grande e branca, no largo do Prado, recordo com nostalgia aqueles bons tempos, mas entristece-me constatar que já não existe ali vida. Vou visitá-los ao cemitério, e a Sra. Virgínia continua a sorrir-me e a convidar-me com favores do Céu. Permaneci naquela casa por mais algum tempo, mas tinha crescido demais para os recados.

Entretanto, esquecera este episódio, e dedicava-me a muitas outras coisas que gostava de fazer, na minha terra amada. Marchas no Carnaval, vestido de marafono, cantigas populares e danças na segunda de Páscoa, e até teatro improvisado, ou ensaiado e representado no Prado, na Escola e também na casa do povo do Outeiro. Participava na “Serra das Velhas” e casava as novas no meio da Quaresma. Ia aos bailes, tão populares nessa altura, feitos com os primeiros gira-discos vindos de França. A Mavilde, irmã do Ferreira, era a que mais vezes organizava.

Recordo-me de um dia ter ido, mais o José Maria, visitar uma prima que residia em Pombares, vinda de Espanha, trazendo com ela um gravador, coisa rara nesse tempo. Pelas duas da manhã, voltávamos os dois para casa trazendo connosco o ditoso gravador. Parámos entre Teixedo e os Pereiros, sentados junto de uma parede: eu cantava “O xaile de minha mãe” de Isabel de Oliveira e a “Carmencita” a viva voz, enquanto o amigo gravava.

De França, voltava também o Artur da tia Teresa, de férias. Lembro-me de um pequeno aparelho que ele trouxera onde se viam slides com os lindos monumentos de Paris. Foi com estes slides que começou a nascer o meu desejo de ir para o estrangeiro.





Tinha quase dezoito anos quando dei, também, o salto para Paris. Empreguei-me durante seis meses na construção civil, a fim de obter papeis de permanência no País, mas brevemente compreendi que não era a profissão que desejava para o meu futuro. Fui, então, bater à porta de uma reputada fábrica de automóveis, onde permaneci durante quatro anos. Entretanto, nos tempos Salazaristas, a PIDE colhia nas fronteiras aqueles que não cumpriam o serviço militar, e como eu não desejava embarcar para África e lá deixar os ossos, numa emboscada, tirava passaporte, mas não o utilizava na Fronteira de Portugal e Espanha, passando ao lado, a pé: a salto.

Um dia, vinha no carro do meu irmão, combinámos parar uns quinhentos metros antes da fronteira, para eu passar ao lado e ser recuperado depois da fronteira Portuguesa, cujos sinais eram ramalhos de carvalho na estrada. Mesmo sendo a primeira vez que passava sozinho, não tive medo de enfrentar o caminho acidentado e cheio de monte, não sabendo o que me esperava. Em baixo, o rio levava muita água e para atravessar, só a nado. Também não foi problema, aprendera a nadar no poço do tio Jaime, só que as roupas ficaram ensopadas e sujas ao passar pelo monte. Chegado à estrada esperei, como combinado, escondido nuns arbustos, mas o carro nunca mais chegava. Lembrei-me de que, naquele tempo, as fronteiras de Quintanilha fechavam à meia-noite, por conseguinte, o carro deve ter ficado do lado de lá

Como não podia esperar ali todo molhado até de manhã, resolvi ir andando estrada fora, na esperança de encontrar uma boleia e, ao fim e ao cabo, Bragança também não seria muito longe. Não sabia, deveras, o caminho que tinha pela frente! Trinta quilómetros separavam a cidade da fronteira pela estrada nacional! E que estrada! Mete medo de dia, quanto mais às três da manhã!... Nascia o Sol quando cheguei a Bragança, e como não levava um tostão comigo, esperei à entrada a chegada do carro. Quantos passavam, olhavam-me de soslaio, talvez pelo aspecto das roupas sujas, mas eu via em cada um que passava um agente da PIDE.

Era sempre tão emocionante e estimulante voltar àquela terra tão querida, onde gozava sempre um mês e dezasseis dias de férias: mesmo não sendo permitido, metia atestado médico e só voltava passada a festa do Chãos, que as peripécias passadas ficavam apenas para a história, a qual poucas vezes foi contada.





Passados três anos, sempre a dar o salto, comecei a ficar cansado e resolvi, talvez um pouco influenciado por alguém, ir à inspeção ao Porto. Tinha apenas chegado a Paris, recebi um telefonema onde meus pais me anunciavam o dever de me apresentar em Lamego o mais rapidamente possível. Poucos dias depois, voltava a passar a fronteira, desta vez legalmente, pois vinha cumprir o dever cívico, imposto pelo regime, embora já em condições de compelido. Aconselharam-me a ir ter com um sargento, filho do tio Amadeu, creio que se chama Eduardo, o qual tratou de tudo e mandaram-me para casa até ser chamado. Só demorou um ano e tal...

Como não gostava de estar quieto, resolvi ir para o Porto, onde fui alojado por familiares, e com uns tostões que trazia, inscrevi-me no Instituto Pedro Nunes, para estudar, e na “Tecla”, empresa que dava formação por detrás da Av. dos Aliados, onde tirei o curso de dactilografia e contabilidade. Podia não servir para nada, mas era sempre bom aprender.

Em Maio do ano seguinte, fui chamado para a tropa. Tinha-se dado o 25 de Abril, do qual me ficaram recordações de pessoas a correr por todos os lados, grupos de polícias refugiando-se como podiam nos quartéis, transportes parados, e o anúncio dos instrutores dizendo que fechavam pois havia uma grande revolução pelas ruas. Também a correr, passei a ponte em direcção a Gaia, junto da qual se situava o Quartel da Pesada, que os Soldados tentavam armadilhar.

Tinha cancelado os estudos, embora levasse comigo o Diploma do curso já referido. Obra do destino, dois meses depois voltava ao Porto, onde fui colocado no Quartel de Engenharia de Transmissões, para tirar a especialidade, durante um ano. Foi o ideal para voltar ao Pedro Nunes, passando o dia no quartel, estudando à noite. Perante aquela gente mais jovem, sentia-me um tanto ou quanto fora do meu lugar, mesmo assim fiz o segundo ciclo, embora me tenham surgido vários problemas, como por exemplo: tinha o exame de matemática marcado para um dia em que o quartel estava de prevenção. Fui pedir ao Comandante, explicando-lhe a situação, mas respondeu-me categoricamente: nem pense... Contudo, não deixei de o fazer, saltando o muro e escondendo-me de cada vez que enxergava a P.M.

Três anos de tropa é, realmente, muito tempo perdido, embora tentasse aproveitá-lo da melhor maneira, e concluído com propostas bastante interessantes, da Marconi, ou dos serviços aduaneiros. Precisava mexer. Cheguei a recear não poder sair do País durante cinco anos, como exigiam as leis antigas. Felizmente, o 25 de Abril aboliu tudo isso e voltei para tantos amigos que tinha deixado em Paris.



Voltei à fábrica, enquanto não tirava um Certificado de Aptidão Profissional para motorista de táxi, profissão a que dediquei 14 anos. Foram 14 anos vividos a fundo. Enquanto, durante a semana, transportava personagens mais ou menos importantes do cinema, da canção, do futebol e, até, o Abbé Pierre, ao Louvre, Montmartre, Notre Dame, Tour Eiffel, Champs Élisées, pensava na terra onde nasci e nas coisas tão simples mas adoráveis que lá vivi. Nos fins-de-semana, jogava futebol, saía com amigos de várias nacionalidades, sobretudo espanhóis e italianos, os quais me emprestavam livros na sua língua, para ler à noite, ou enquanto esperava pelos clientes. Li igualmente muitos livros Franceses: "Os Miseráveis", de Victor Hugo nos seus cinco volumes, e tantos outros que ia buscar à Biblioteca Municipal. Os livros Portugueses, comprava-os numa livraria Portuguesa junto do Consulado. Camilo Castelo Branco, Eça de Queirós e Manuel de Oliveira eram os meus autores preferidos. Gostei ler "Os Maias", "O Trigo e o Joio" e tantos outros. Tudo me encantava, nunca mais pensei em diferenças entre uns e outros. O meu maior fracasso julgo ter sido um curso de Inglês, mesmo assim, ficou bem assente na minha cabecita que querer é poder!

Passo hoje em Rebordainhos e, apesar de não ver parte daqueles seres queridos, recordo-os com muitas saudades, e alegro-me, pensando que onde quer que se encontrem, estimularam o meu crescimento e estimulam o meu viver, sabendo-os felizes junto dos entes mais queridos.