segunda-feira, 30 de abril de 2018

O PUTO DE VALE DOS AMIEIROS II




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                                                                        Por

                                                                         ANTÓNIO BRAZ PEREIRA

                                                                        2.ª parte


Tu gostavas ir a estudar?

Pela minha mente passaram tão rápidos sentimentos que não conseguia descortinar. Contudo, foi a Sra. D. Denérida quem quebrou o silêncio dizendo: Sabemos perfeitamente que és inteligente e...
A Sra. Virgínia não deixou a filha terminar a frase.
Ó rapaz dos diabos, diz que sim!
Continuava silencioso, confuso, sem saber que responder. Desejei tão profundamente que esta proposta me fosse feita, esperei por ela dia após dia, e ela nunca chegou; e agora que me davam a possibilidade de realizar sonhos já quase adormecidos, não conseguia balbuciar palavra. Vendo-me tão embaraçado, o Padre João apressou-se a dizer:

– Não é necessário dar já uma resposta. Contudo devo dizer-te que a minha irmã está disposta a pagar todas as despesas com a condição de seres Padre.
Retirei-me daquela sala tão baralhado, tão confuso, tão decepcionado, talvez, pelo facto de me ser imposto algo sem que as condições requeridas pudessem dar garantias absolutas… não sendo daqueles que não cumprem; também pelo peso da responsabilidade.

Andei vários dias a pensar. Se, por um lado, se me apresentava uma maravilhosa ocasião de realizar os meus sonhos de miúdo, por outro, achava que vinha demasiado tarde. Tinham já voltado dois seminaristas, abandonado, quaisquer que fossem as razões.

O tempo era de pressas, outro rapaz preparava-se também para ir, mas eu não conseguia tomar uma decisão. Cabisbaixo, procurava a resposta em tudo quanto era sagrado, mas a consciência ditava-me sempre e sempre, a mesma: é tarde demais. Aquele rapaz que toda a gente conhecia, alegre e cheio de vida, andou vários dias, tristonho. Não participava nos numerosos jogos ao fim da tarde, evitava falar com quem quer que fosse, isolava-se para melhor meditar, chegou a sonhar que tinha partido e nunca mais o deixaram voltar. Cada vez que se cruzava com o Sr. Padre, baixava a cabeça, enquanto este procurava, certamente, uma resposta no seu olhar. Também a D. Denérida esperava uma resposta urgente. As férias estavam a acabar, era necessário comprar tudo quanto necessitava para o colégio, e a resposta nunca mais chegava. Já tinha decidido, mas parecia-me que quanto mais tempo passasse menos sentida seria a sua resposta.

Para aliviar um pouco o meu cérebro baralhado, escolhi uma visita ao moinho de Teixedo, propriedade adquirida pelo Sr. Padre recentemente. Teixedo era um lugar paradisíaco, embora bastante distante, onde apenas se ouviam cantar os passarinhos e a água a correr lentamente ribeiro abaixo, sem pressas, rodeado de árvores selvagens e erva verdinha convidativa ao descanso e à reflexão, e a roda do moinho dando voltas sem fim enquanto a água corresse e lhe caísse em cima, provocando a sua rotação, contínua mas discreta. Sem ninguém saber para onde tinha ido, percorri aquele trajecto bastante longo, onde permaneci todo o dia, sentado, a olhar a água que caía sobre a grande roda de madeira. Quando voltei, já à noitinha, esperava-me o Sr. Guerra, tão inquieto que não conseguia perguntar nada. Olhei para ele com olhar triste, denunciando certos remorsos, e disse: não posso, é tarde de mais...

– Enlouqueceste rapaz! Nunca é tarde demais. Põe pés a caminho; ou queres acabar como o velho Guerra sem eira nem beira?...
– Só eu compreendo as verdadeiras razões.

E foi assim que respondi a quem queria fazer de mim um Padre. Eu limitei-me a fazer o que me ditou a consciência. Ficar-lhes-ei grato para o resto do meu viver, que Deus lhes pague, lá onde se encontram. Quando passo junto daquela casa grande e branca, no largo do Prado, recordo com nostalgia aqueles bons tempos, mas entristece-me constatar que já não existe ali vida. Vou visitá-los ao cemitério, e a Sra. Virgínia continua a sorrir-me e a convidar-me com favores do Céu. Permaneci naquela casa por mais algum tempo, mas tinha crescido demais para os recados.

Entretanto, esquecera este episódio, e dedicava-me a muitas outras coisas que gostava de fazer, na minha terra amada. Marchas no Carnaval, vestido de marafono, cantigas populares e danças na segunda de Páscoa, e até teatro improvisado, ou ensaiado e representado no Prado, na Escola e também na casa do povo do Outeiro. Participava na “Serra das Velhas” e casava as novas no meio da Quaresma. Ia aos bailes, tão populares nessa altura, feitos com os primeiros gira-discos vindos de França. A Mavilde, irmã do Ferreira, era a que mais vezes organizava.

Recordo-me de um dia ter ido, mais o José Maria, visitar uma prima que residia em Pombares, vinda de Espanha, trazendo com ela um gravador, coisa rara nesse tempo. Pelas duas da manhã, voltávamos os dois para casa trazendo connosco o ditoso gravador. Parámos entre Teixedo e os Pereiros, sentados junto de uma parede: eu cantava “O xaile de minha mãe” de Isabel de Oliveira e a “Carmencita” a viva voz, enquanto o amigo gravava.

De França, voltava também o Artur da tia Teresa, de férias. Lembro-me de um pequeno aparelho que ele trouxera onde se viam slides com os lindos monumentos de Paris. Foi com estes slides que começou a nascer o meu desejo de ir para o estrangeiro.





Tinha quase dezoito anos quando dei, também, o salto para Paris. Empreguei-me durante seis meses na construção civil, a fim de obter papeis de permanência no País, mas brevemente compreendi que não era a profissão que desejava para o meu futuro. Fui, então, bater à porta de uma reputada fábrica de automóveis, onde permaneci durante quatro anos. Entretanto, nos tempos Salazaristas, a PIDE colhia nas fronteiras aqueles que não cumpriam o serviço militar, e como eu não desejava embarcar para África e lá deixar os ossos, numa emboscada, tirava passaporte, mas não o utilizava na Fronteira de Portugal e Espanha, passando ao lado, a pé: a salto.

Um dia, vinha no carro do meu irmão, combinámos parar uns quinhentos metros antes da fronteira, para eu passar ao lado e ser recuperado depois da fronteira Portuguesa, cujos sinais eram ramalhos de carvalho na estrada. Mesmo sendo a primeira vez que passava sozinho, não tive medo de enfrentar o caminho acidentado e cheio de monte, não sabendo o que me esperava. Em baixo, o rio levava muita água e para atravessar, só a nado. Também não foi problema, aprendera a nadar no poço do tio Jaime, só que as roupas ficaram ensopadas e sujas ao passar pelo monte. Chegado à estrada esperei, como combinado, escondido nuns arbustos, mas o carro nunca mais chegava. Lembrei-me de que, naquele tempo, as fronteiras de Quintanilha fechavam à meia-noite, por conseguinte, o carro deve ter ficado do lado de lá

Como não podia esperar ali todo molhado até de manhã, resolvi ir andando estrada fora, na esperança de encontrar uma boleia e, ao fim e ao cabo, Bragança também não seria muito longe. Não sabia, deveras, o caminho que tinha pela frente! Trinta quilómetros separavam a cidade da fronteira pela estrada nacional! E que estrada! Mete medo de dia, quanto mais às três da manhã!... Nascia o Sol quando cheguei a Bragança, e como não levava um tostão comigo, esperei à entrada a chegada do carro. Quantos passavam, olhavam-me de soslaio, talvez pelo aspecto das roupas sujas, mas eu via em cada um que passava um agente da PIDE.

Era sempre tão emocionante e estimulante voltar àquela terra tão querida, onde gozava sempre um mês e dezasseis dias de férias: mesmo não sendo permitido, metia atestado médico e só voltava passada a festa do Chãos, que as peripécias passadas ficavam apenas para a história, a qual poucas vezes foi contada.





Passados três anos, sempre a dar o salto, comecei a ficar cansado e resolvi, talvez um pouco influenciado por alguém, ir à inspeção ao Porto. Tinha apenas chegado a Paris, recebi um telefonema onde meus pais me anunciavam o dever de me apresentar em Lamego o mais rapidamente possível. Poucos dias depois, voltava a passar a fronteira, desta vez legalmente, pois vinha cumprir o dever cívico, imposto pelo regime, embora já em condições de compelido. Aconselharam-me a ir ter com um sargento, filho do tio Amadeu, creio que se chama Eduardo, o qual tratou de tudo e mandaram-me para casa até ser chamado. Só demorou um ano e tal...

Como não gostava de estar quieto, resolvi ir para o Porto, onde fui alojado por familiares, e com uns tostões que trazia, inscrevi-me no Instituto Pedro Nunes, para estudar, e na “Tecla”, empresa que dava formação por detrás da Av. dos Aliados, onde tirei o curso de dactilografia e contabilidade. Podia não servir para nada, mas era sempre bom aprender.

Em Maio do ano seguinte, fui chamado para a tropa. Tinha-se dado o 25 de Abril, do qual me ficaram recordações de pessoas a correr por todos os lados, grupos de polícias refugiando-se como podiam nos quartéis, transportes parados, e o anúncio dos instrutores dizendo que fechavam pois havia uma grande revolução pelas ruas. Também a correr, passei a ponte em direcção a Gaia, junto da qual se situava o Quartel da Pesada, que os Soldados tentavam armadilhar.

Tinha cancelado os estudos, embora levasse comigo o Diploma do curso já referido. Obra do destino, dois meses depois voltava ao Porto, onde fui colocado no Quartel de Engenharia de Transmissões, para tirar a especialidade, durante um ano. Foi o ideal para voltar ao Pedro Nunes, passando o dia no quartel, estudando à noite. Perante aquela gente mais jovem, sentia-me um tanto ou quanto fora do meu lugar, mesmo assim fiz o segundo ciclo, embora me tenham surgido vários problemas, como por exemplo: tinha o exame de matemática marcado para um dia em que o quartel estava de prevenção. Fui pedir ao Comandante, explicando-lhe a situação, mas respondeu-me categoricamente: nem pense... Contudo, não deixei de o fazer, saltando o muro e escondendo-me de cada vez que enxergava a P.M.

Três anos de tropa é, realmente, muito tempo perdido, embora tentasse aproveitá-lo da melhor maneira, e concluído com propostas bastante interessantes, da Marconi, ou dos serviços aduaneiros. Precisava mexer. Cheguei a recear não poder sair do País durante cinco anos, como exigiam as leis antigas. Felizmente, o 25 de Abril aboliu tudo isso e voltei para tantos amigos que tinha deixado em Paris.



Voltei à fábrica, enquanto não tirava um Certificado de Aptidão Profissional para motorista de táxi, profissão a que dediquei 14 anos. Foram 14 anos vividos a fundo. Enquanto, durante a semana, transportava personagens mais ou menos importantes do cinema, da canção, do futebol e, até, o Abbé Pierre, ao Louvre, Montmartre, Notre Dame, Tour Eiffel, Champs Élisées, pensava na terra onde nasci e nas coisas tão simples mas adoráveis que lá vivi. Nos fins-de-semana, jogava futebol, saía com amigos de várias nacionalidades, sobretudo espanhóis e italianos, os quais me emprestavam livros na sua língua, para ler à noite, ou enquanto esperava pelos clientes. Li igualmente muitos livros Franceses: "Os Miseráveis", de Victor Hugo nos seus cinco volumes, e tantos outros que ia buscar à Biblioteca Municipal. Os livros Portugueses, comprava-os numa livraria Portuguesa junto do Consulado. Camilo Castelo Branco, Eça de Queirós e Manuel de Oliveira eram os meus autores preferidos. Gostei ler "Os Maias", "O Trigo e o Joio" e tantos outros. Tudo me encantava, nunca mais pensei em diferenças entre uns e outros. O meu maior fracasso julgo ter sido um curso de Inglês, mesmo assim, ficou bem assente na minha cabecita que querer é poder!

Passo hoje em Rebordainhos e, apesar de não ver parte daqueles seres queridos, recordo-os com muitas saudades, e alegro-me, pensando que onde quer que se encontrem, estimularam o meu crescimento e estimulam o meu viver, sabendo-os felizes junto dos entes mais queridos.


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