segunda-feira, 30 de abril de 2018

O puto de vale dos amieiros





Por

ANTÓNIO BRAZ PEREIRA

1.ª parte
Tanto quanto me é permitido recordar, através dos cinquenta e nove invernos passados, dezassete dos quais permanentemente naquela aldeia, pacata como muitos lhe chamariam, para mim maravilhosa terra, Rebordainhos, ou idealizei, ou então sonhei, é um mundo lindo no interior dos seres e das coisas, pacífico, íntegro, com a sua movimentação natural virada quase sempre para o sentido da alegria e respeito.

Desejava poder evitar a narração da parte negativa pela qual milhares de famílias passaram, e passam ainda no século em que vivemos, para não ser julgado como infeliz, coitadinho, ou simplesmente desprezado, sendo a descriminação uma deficiência mental das mais defeituosas da nossa existência. Contudo, eu vivi assim.

Vale dos Amieiros fica distanciado da aldeia uns três ou quatro quilómetros, mas não era a distância que me metia medo quando tinha os meus seis anos. Enfiado nos socos de amieiro, feitos pelo tio Grilo, com terra já calcada no interior, lá ia eu e meu pai, atrás de um burro velho e ruço, lavrar um cantinho que possuíamos, ou seria baldio, no topo da grande encosta, quase na Malhada Velha onde o povo se revoltou contra a plantação dos pinheiros nas terras que alimentavam numerosas famílias. O Sol era abrasador, a poeira entrava-me pelas narinas, água só na Ribeira e, para cúmulo do infortúnio, à nossa volta ouvia-se apenas o cuco cantar, sempre e sempre a mesma moda. E eu que gostava tanto de brincar no Prado ou na cerca da escola!...

Faltava ainda um ano para entrar na primária, e enquanto o tempo ia passando com aquela lentidão desconcertante, encontrávamo-nos, grandes e pequenos, nos tanques construídos para a rega - Vale da Frunha, Chãera e Covinha eram os mais frequentados - onde tomávamos banho, ou melhor, eram a nossa praia de nudismo, sendo poucos ou nenhum a possuir calções de banho. Ali permanecíamos horas a nadar, aqueles que já sabiam; os outros iam aprendendo à sua custa. Eram lançados pelos mais idosos para dentro do poço, sendo apenas socorridos quando já tinham engolido grande quantidade de água, como se deve compreender, “não potável”. É assim que se aprende a nadar – diziam eles, enquanto os pobres ainda sufocavam, tossindo, esperando que a água ingerida fosse ejectada.

Recordo-me também dos grandes nevões. Num deles, talvez o maior, o meu pai tentou abrir a porta da rua mas não conseguiu. Abriu a porta que dava para casa da tia Helena, e o espectáculo era digno de um filme de ficção científica. Para retirar água na fonte grande, os homens abriram um túnel, idêntico ao das galerias onde os franceses guardam preciosamente os vinhos millésimes, à temperatura desejada.

Finalmente abriu novo ano lectivo, o dos meus sete anos. Éramos seis rapazes e só duas ou três raparigas, a entrar para a primeira classe. Nesse dia, os pais faziam sempre um esforço pela boa apresentação dos filhos. Iam mais lavadinhos, penteados, com risca do lado esquerdo. Também ia assim, calças remendadas, socos, e uma camisa que alguém caridoso deu à minha mãe. Para mim o que levávamos vestido não tinha qualquer importância. Queria aprender a ler, escrever, contar, falar e conviver com gente da minha idade. Começava a dar os primeiros passos na vida. Marcou-me o facto de quase todos levarem uma “pedra” (ardósia) enquanto eu ia de mãos vazias. No dia seguinte minha mãe esclareceu-me: Ó meu filho! Custa uma coroa, e nós não a temos, para a comprar. Como quando se é pequeno não se liga muito às coisas insignificantes, desenrasquei-me, pedindo a uns e outros, sempre que necessitava, aliás também não tive qualquer livro, nem sequer na quarta classe, aprendendo nas aulas a gramática, os problemas, redacções e reduções, geografia, português e história, marcando-me o livro de terceira classe que me emprestava o Tarcísio para decorar a Barca BelaVozes dos Animais, não esquecendo aquele poema de que tanto gostava, a Balada da Neve de Augusto Gil:
Batem leve, levemente
Como quem chama por mim
Será chuva, será gente!
Gente não é certamente;
E a chuva não bate assim


Enquanto duraram os meus quatro anos escolares, e à medida que ia crescendo, tantas coisas passaram e voltaram a passar, na minha cabecita! Vivia alegre e feliz, quando jogávamos à pedrada, com os dos Pereiros, ou, mesmo, quando um dia ficámos presos; também ao saber que o Ferreira esteve caindo do forro do telhado da escola, deixando um grande buraco aberto, enquanto procurava uns pardalinhos - e não era tão fácil subir lá cima! O Ferreira foi sempre um quebra-cabeças, para os professores. Noutro dia, no adro da Igreja, enquanto decorria o terço, o Ferreira dava pontapés a um pau que ia embater com força na porta central. Saiu de repente o Sr. Professor, e desatou a correr atrás dele, enquanto ameaçava: olha que eu toso-te! Olha que eu toso-te! Já foi tempo... – respondia este, esquivando-se pelourinho a cima.

Um dia lindo de Primavera, por volta das nove horas, o Sr. Manuel do tio Amadeu dava de comer à sua torina, que tinha na loje junto da casa do Foguete; e como todos os dias, também o Gilberto, (Tição) à ida para a escola, passava por ali por junto da porta, para lançar para dentro: Ó barbas d’alho! O tio Manuel, por quem eu tinha grande respeito e admiração, com grandes dons para o teatro, apesar de eu só lhe ter visto encenar e realizar um, ou melhor uma mistura de “esterlóquio” lançando fogo pela boca e histórias diversas, mas também porque recebia, creio, de um irmão que tinha na Régua, material escolar que oferecia em troca de outros jeitos, naquele dia esperava de pé firme o gaiato. Mal se aproximou da porta, já estava colhido por um braço forte de homem. – Então sou barbas de alho? E pegando numa bosta de vaca, encheu-lhe a boca com ela, enquanto murmurava: para que não voltes a chamar-me isso. E o garoto lá foi lavar a cara ao tanque, enquanto os que presenciámos a cena desatávamos a rir, é claro, contando de seguida na escola.

Enquanto frequentava a 2ª classe, os mais velhos não nos ligavam. Mesmo assim, eu tinha os meus ídolos. O Amadeu, que faleceu em Angola desenhava tão bem, que enquanto vivi em Paris, exercendo a profissão de motorista de táxi, sempre que levava clientes à praça do Tèrtre, também conhecida, por Montmartre dos pintores, o recordava com saudades. O Pilatos e as asneiras que engendrava fumando o seu Kentucky; o Zequinhas, irmão da Teresa, a quem chamavam “burro” por ter passado da 2ª para a 1ª, e de quem se riam, mas a mim me revoltava por compreender que o rapaz teria, por força, outros valores que não os das letras; mas sobretudo a Albertina, uma inteligência rara, superdotada, direi mesmo. Quantas vezes nos ajudou!... Não havia exercício que lhe resistisse.

Aproximou-se o exame de quarta classe, só quatro dos oito fomos propostos: duas raparigas e dois rapazes. Devo dizer que o apoio de que falava a Albertina, uma das eleitas, nos ajudou bastante. Eu e o meu primo Tarcísio fizemos exame na Estacada, após oito dias de estadia em Bragança. Voltámos com aprovação, e as moças que também foram aprovadas, creio que ficaram, pelo menos uma delas, para fazer a admissão ao liceu, já que a outra tinha seguido para Lisboa, onde realizou a mesma prova.

Esta foi uma época em que grande parte dos rapazes era encaminhada a estudar para padre, excepto as famílias carentes, com poucos ou nenhuns meios, das quais eu fazia parte. Tinham já partido para Mogofores, ou Arouca, o António e o Zé Fernandes, seguidos do Filinto e Domingos Caixeiro, o Evaristo. Agora era a vez do Tarcísio, meu primo, enquanto eu meditava nos porquês da vida de uns e de outros. Gostava tanto de poder ir também! Mas como? Quem não pode comprar livros aos filhos vai poder enviá-los a estudar? Meio resignado, lembro-me de um dia, sentado no tanque do prado, tristonho, ver chegar a minha madrinha junto de mim e dizer: não posso mandar-vos aos dois!... Os miúdos compreendem logo tudo. Não tinha inveja, contudo, quando os via voltar, todos vestidos de azul, com sapatinho baixo engraxado, no tempo das férias, e ouvi-los contar, naquela linguagem já diferente da nossa, coisas lindas que por lá viviam… No ano seguinte foi a vez de o José Maria embarcar para lá.

Ressurgiu em mim a esperança de haver uma alma caridosa na Aldeia, que me mandasse também, e mais convencido fiquei quando, um dia, o Sr. Padre João me chamou à sacristia, querendo falar comigo. Tinha realmente uma proposta para mim, mas não era a que esperava. Contudo, dadas as circunstâncias de não poder ir para lado nenhum, aceitei vir para casa dele, ou melhor, ainda do Sr. Ernesto, uma casa nova e grande, onde vivia a Sra. D. Denérida, a Sra. Virgínia sua mãe, o Padre João, duas criadas e, é claro, o proprietário que viria a falecer pouco tempo depois, como rapaz de recados. Para os trabalhos agrícolas tinha um caseiro, o tio Guerra, homem vindo não se sabe ao certo de onde, já idoso, mas muito querido dos patrões, e que sempre me dizia: ainda um dia vais ser alguém!...


Foi nesta casa de acolhimento, perante uma família com numerosos e valiosos valores, que eu vivi cinco anos de felicidade indescritível. A Senhora Virgínia, que por certo está no céu, tão bondosa e carinhosa, na casa dos noventa anos, tantas vezes me convidou – como ela dizia – não só com carinhos, como com moedas que retirava da gaveta do quarto onde dormia o Sr. Padre, sobretudo na época de ofícios ou visita pascal, e o filho que sabia de tudo, nunca o deu a saber nem sequer entender, tal o respeito que tinha pela mãe. Vinha com um lenço atado nos quatro cantos, tilintando pelo longo corredor fora e dirigia-se a mim dizendo: se me fores buscar uma “gabela” de lenha convido-te. Outras vezes pedia: ó meu filho, vai buscar-me um cântaro de água, vais? É claro que ia, mesmo que não houvesse convite, bastava-me aquele lindo sorriso com o qual sempre agradecia. Nunca vi esta Senhora zangada. Era uma jóia de pessoa, que Deus lhe retribua os valores que me transmitiu.

A Sra. D. Denérida dava aulas em Espadanedo. Herdou da mãe tudo o que era de bom. Foi caridosa ao ponto de perdoar letras de empréstimos vindos do marido – que fazia no seu tempo como a banqueira do povo, emprestando a juros muito altos, fazendo assinar um fiador com meios, no caso de não pagarem. Havia no quarto do escritório, onde eu ia muitas vezes preencher os boletins com os nomes das pessoas carenciadas, para quem “a Cáritas” enviava géneros de alimentação, como queijo, leite, farinha etc., um cofre todo de ferro, enorme, ao qual davam o nome de burra. Era lá que o Sr. Ernesto metia a sua fortuna e a miséria dos outros.



A Sra. D. Denérida vinha passar todos os fins-de-semana a Rebordainhos, mais uma mocita que vivia com ela. Aos domingos à tarde, lá tinha que ir eu com elas, deixando a bola que tanto gostava jogar, montado numa mula grande e má, com uns alforges cheios de mantimentos para a semana. Um dia pensei bem pensado, como devia fazer para não perder a bola. Foi então que me ocorreu a ideia que a mula tinha medo de passar onde houvesse um charco de água, ainda que este fosse pequeno. Preparámos tudo como de costume, e lá íamos em direcção a Espadanedo, eu montado na mula e a Sra. mais a garota a pé. Quando chegámos a meio do caminho, entre Soutelo e Rebordainhos, havia ali uma nascente, por conseguinte tudo cheio de lama. É daqui que vou voltar para trás! – pensei. Comecei por apertar as rédeas que ligavam ao freio da mula, a qual recuava mal se aproximava da lama. Desce e pega-lhe na rédea, - dizia a Sra. Isso era pior! – Retorquia eu. Então dá a corda que traz ao pescoço à garota. A miúda pegou na corda, mas como eu em cima apertava o freio, a mula continuava a não querer passar. Andámos nesta jigajoga durante quinze minutos, até que a Sra. disse com ar desolado: agora já não dá para ires à volta, pelo caminho de cima! Voltas amanhã. Era o que queria ouvir. Dei meia volta, e toca a galopar com toda a força, batendo com os calcanhares dos pés no ventre da mula. Dentro dos alforges ia um garrafão de vinho, que se partiu, aleijando o pobre animal que fugia como selvagem. Chegados à estrebaria, como a porta estava aberta, entrou como um foguete tendo eu apenas tempo para deitar as mãos à parte superior da porta e deixar-me cair. No dia seguinte, entregaram-me um burro podre, do Malino, que mal podia com a carga, tendo eu que fazer todo o caminho a pé, para os dois lados.

Quanto ao Sr. Padre João, creio que merece uma homenagem digna do seu valor sacerdotal, pelos moradores de Rebordainhos, a quem baptizou, outros mais idosos casou, enfim, prestou valiosos serviços à Paróquia. Eu, que vivi com eles durante cinco anos, tinha uma relação, para além da religiosa porque ajudava à missa, de companheiro. Se saíamos juntos à caça, entregava-me o chamariz das perdizes, enquanto ele ia com a espingarda. Passávamos dias trepando pela Ladeira, Eiras, até à hora de comer a merenda, deveras desejada, e saboreada, porque me entristecia ver matar os pobres coelhos. Também saíamos a caçar no Inverno, desta vez com um furão, o qual, por vezes, esperávamos durante horas à saída dos buracos.



O Sr. Padre era diferente da mãe e da irmã. Forreta, – sai ao pai - dizia a Sra. Virgínia, enquanto me contava coisas fabulosas passadas com o marido - e quando lhe davam os “facanitos”!...

Um dia, quando o P. João estava montando para o cavalo, e como sempre, eu pegava no estribo com uma mão, para que o selim não vasculasse, enquanto com a outra segurava as rédeas, eu respondi-lhe de mau humor, com uma palavra que ele interpretou mal. Desceu, furioso, do cavalo e pegou a bater em mim, com tanta raiva, que partiu um guarda-chuva nas minhas costas. Passaram-se dias sem que falássemos um com o outro, e já não fui recitar uns versos que ele tinha escrito, e eu decorado, para uma festa qualquer.

Nutria, também, o meu orgulho e não era nenhum santo. Um dia de Inverno, com nevoeiro cerrado, mandaram-me levar um saco de centeio às pombas, ao pombal da Tempa. Cheio de medo, pois não via um palmo de caminho à minha frente, ao chegar ao tanque da Chave, peguei no saco e despejei-o no alcadute de maneira que ninguém visse. Por este e outros motivos não me confessava a ele, escolhia sempre outro Padre.

Tinha já quinze anos quando, num dia lindo de Verão, o Sr. Guerra veio procurar-me dizendo: eu sempre disse, ainda um dia serás alguém!... Andava atrás da casa, entretido no meio das flores, sem compreender o que significavam aquelas palavras. Virei-me para ele e perguntei: - O Senhor que diz?
-Vai rápido, à sala de jantar, ter com os senhores. Sem fazer mais perguntas, dirigi-me para o local onde, sentados e silenciosos, me esperavam o Sr. Padre, a Sra. D. Denérida e sua mãe sorridente, parecendo mesmo feliz, provavelmente sabendo já o que os filhos tinham para me dizer. De pé, calado, sem saber o que pensar, eu fixava-os com um ponto de interrogação no olhar. Foi o Sr. Padre João quem tomou a palavra, e indo directo ao assunto perguntou:
Tu gostavas ir a estudar?


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