segunda-feira, 9 de julho de 2018

A Matança

por

ANTÓNIO BRAZ PEREIRA

O acto da matança será barbaresco para os defensores dos animais, mas era útil e necessário para a sobrevivência nos meios rurais, sobretudo quando o talho mais próximo se localizava na capital de distrito, a uma distância de vinte e seis quilómetros, quatro deles percorridos a pé, por carreiros de terra batida, até chegar à estação de caminhos de ferro onde o Sr. Azevedo, por duas coroas, passava o bilhete que dava acesso ao comboio a carvão, (mais tarde automotora) que demorava mais ou menos uma hora para chegar à cidade. Tempo e dinheiro gastos para comprar carnes que, ao fim e ao cabo, também eram abatidas por alguém, não justificavam que se não fizesse a matança.

Enquanto puto, a matança do porco, em Rebordainhos, era, para mim, um dia de alegria, abundância e harmonia. Em se aproximando o Natal, o porco entrava na engorda e passava a ser mais mimado com castanhas descascadas, batatas e centeio granulado, cozidos num grande caldeiro posto sobre a lareira que também era aproveitada para encostar os pés molhados e, até, as roupas vestidas que fumegavam como quando se cozia pão! Nesta altura, porque o frio apertava mais e as geadas deixavam vestígios nas poças e tanques de água, o tempo adequava-se à conservação e, por isso, marcava-se uma data, quase sempre aos domingos, para o dia fatal do animal.

A diferença que existia entre as famílias remediadas e as pobres, como noutros aspectos, também se notava neste. Primeiro, pelo número de convidados e, depois, pelo número de animais: de nenhum a três.

Certo Janeiro fomos convidados para casa do tio João Santo que matava os seus três porcos. Saí de casa bem cedo e nem esperei pelos demais familiares – eles sabiam o caminho e, além disso, mal tinha cerrado olho durante a noite

ansioso pelo amanhecer. O dia estava frio e gelado e, de noite, tinha caído uma camadita de neve. Passei diante das poças da Fonte Grande e do Espinheiro cujo gelo, apesar de convidar à patinagem, me deixou indiferente, tal era a apressa de chegar. Mais adiante, perto do pelourinho, dirigi-me para a rua que dava acesso à casa do Bagueixe, com a intenção de passar pelo atalho que desembocava, direitinho, nas escadas do lado da adega, as quais me levariam directamente ao destino. Ia avançando lentamente, escorregando aqui e ali, quando, da Casa do tio Leque, que mantinha a porta fechada, ouvi chamar:

Ó Bagueixe, tens muitas mulheres?...

Como não obtivesse resposta do vizinho cujas paredes eram meeiras (e a comunicação se fazia através dos buracos que nelas havia ou, então, pelas janelas que eram próxima uma da outra), repetiu a mesma pergunta, levantando ainda mais a voz. Do outro lado, em resposta, ouviu-se uma blasfémia acompanhada da seguinte frase:

– Tenho as mulheres no…
– Pois olha, diz o Leque, cornos não te faltam!
– Raios partam o homem que é maluco como os carros!... Não se pode estar sossegado na cama!

Levantando-se em ceroulas e camisola de flanela, o Bagueixe foi direitinho à janela e, mal a abriu, viu à sua esquerda o outro, debruçado sobre a sua, a rir às gargalhadas enquanto apontava para as telhas das quais caíam, longos e cristalinos, muitos candeolos de gelo. Ficaram os dois tagarelando por mais algum tempo, enquanto eu, receoso de perder o mata-bicho da matança, corria para a grande cozinha do tio João Santo.


A mesa enorme estava repleta de presunto, bacalhau passado por ovos, figos e nozes secos. Também não faltava a garrafa de aguardente, queijo e café migado. Alguns convidados esperavam, já, sentados no escano. Junto da 
grande lareira estavam dois potes grandes, um destinado à canja onde uma galinha velha cozia durante horas; o outro, para o arroz do almoço. Todas estas tarefas caseiras eram entregues às mulheres que iam buscar o fígado fresco para refogá-lo. Outras três ou quatro, porque era necessária água corredia, iam lavar as tripas lá para as Ribas, Fonte da Vila, ou mesmo à Ribeira. Voltavam geladas dos pés à cabeça.
Os homens, após o mata-bicho, preparavam-se para enfrentar os bichos. Alguns eram grandes e fortes que nem toiros, razão pela qual eram os mais jovens com “cabedal” e os trintões pujantes os primeiros a ter que arregaçar as mangas. Não podendo deixar transparecer o receio que lhes ia na alma, um após outro, lentamente, com alguma apreensão, iam-se aproximando da porta, por detrás da qual, o manso animal se transformava em fera brava, como que adivinhando as intenções daquela quantidade de homens. O Matador, com grande experiência, visto serem raros a possuírem coragem e saber, entrava na loje logo depois do primeiro homem, que levava uma corda na qual fizera um laço. Logo atrás vinham os mais corajosos: dois deles deitavam as mãos às orelhas do animal, para este abrir a boca onde era introduzido o laço da corda que lhe prendia o focinho, fixando-a nos caninos do animal. Conduziam-no assim para a rua e, a partir daqui, numerosas, engraçadas e verdadeiras passagens podiam ser contadas. Nesse dia da matança do tio João Santo apenas aconteceu que, enquanto alguns agarravam o terceiro porco (pesava duzentos quilos, limpo), parte dos homens preparavam-se para a chamusca do segundo que… pega a correr pela canada da casa do Ferreira e só parou no lameiro do tio António Trocho, perante a estupefacção dos que presenciaram a cena, mais o gozo do tio Leque que gritava às gargalhadas:
– Agarrai-o! Agarrai-o!... Ó Bagueixe, o Santo só chama gente fraca para a matança! …
– Chegavam-lhe os dois que ficaram; a esse fazíamos-lhe nós o fado, respondeu o outro.

Enquanto se fazia a preparação dos cevados sobre bancos largos e resistentes, os garotos costumavam cortar o rabo, prepará-lo e assá-lo nas brasas com duas areias de sal.

A quem não passava despercebida qualquer matança, era ao Hermínio Russo nem ao seu colega, o Carlos Chiote. Começavam por rondar o local quando os animais estavam em fim de preparação e, aproveitando qualquer distracção dos matanceiros, puxavam da peliqueira afiada e cortavam um pedaço magro, junto da espádua e iam, depressa, assá-lo. Nesse dia, era em casa do Bagueixe, de mecha com eles.

De porta fechada, os três comparsas preparavam-se para petiscar, assando o isco nas brasas, com sal e um pedaço de malagueta. Mas o tio Leque, malandro como as raposas, tinha farejado já qualquer coisa, para além do fumo que lhe entrava pelas narinas. O Bagueixe saíra com uma garrafa de quartilho e meio, vazia, nas mãos e voltara momentos depois com ela cheia…

– Cheira-me a comeninzana! … Mas introduzir-se em casa do Bagueixe não era tarefa fácil, sobretudo porque não devia estar só. O Leque precisava de arranjar uma artimanha!… De repente, lembrou-se das bombas que sempre guardava em casa: – E vai ser uma dos foguetes que bota muito fumo e eles são obrigados a abrir. Meu dito meu feito: um grande estrondo, fumo a sair pelo buraco do gato… e os três perto da porta aberta, tossindo, enquanto rogavam pragas ao engenhoso e desenrascado homem com quem foram obrigados a partilhar o quinhão!

– Tende lá paciência, mas nem o pão posso trazer… não o tenho!

Só se almoçava depois de terminados todos os preparativos. Os cevados eram pendurados de cabeça para baixo, para que as geadas lhes dessem a forma adequada. Os muitos convivas sentavam-se à mesa repleta de chouriças, alheiras, presunto e pratos variados. O convívio prolongava-se por todo o dia e os mais idosos só voltavam para casa à noite e, por entre o pipo do vinho e o estômago bem recheado, vinham ao de cima discussões que, por vezes, aqueciam. Nesse dia não pude esperar pelo fim porque eu, o meu primo Tarcísio e o Pintassilgo fomos com as vacas para a Galiana, onde me pus a jogar à queda com o Pintassilgo. Resultou num braço deslocado e no pedido ao Sr. padre João que me levasse a Paçó onde havia um compodor de ossos.

É sempre agradável recordar o dia das alheiras que era um festim, o encher das chouriças (e os bocadinhos a assar e cair na cinza), dos palaiotos (impressionantes aquelas tripas do intestino grosso cheias de massa, e até a bexiga redondinha, fazendo inveja aos jogadores de futebol). Também havia os butelos, que os novos mal conhecem, enchidos com carne e ossos e, quando abertos, depois de cozidos e tostados na lareira, acompanhados com grelos, eram uma delícia por alturas do Entrudo.



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