terça-feira, 14 de agosto de 2018

No cais...

No cais         Por António Braz 

 Um ego complexo e indefinido pode arrastar-nos por mutáveis suscetibilidades marcantes. À minha memória vulnerável afloram permanentemente pontos de interrogação mantendo-me preso a uma corda de nós-cegos, ultrajada, amputada, e ao mesmo tempo complacente com numerosas pontas soltas. – Nascer em qualquer lugar – Cantava Maxim le Forestier revoltado com a existência do racismo, xenofobismo e tantas outras injustiças propagadas e consumidas por esse mundo fora… e acrescentava: Não se escolhem os pais» Não se escolhe a família » Nem os passeios de Mallie » de Paris ou de Algés »para aprender a andar… Nêtre quelque par
Descalço, roto e com fome, percorria o puto aquelas ruas enlameadas, cobertas aqui ou além, por folhagens de carvalho, castanheiro, ou palha, radiante como se lhe estendessem o glorioso tapete vermelho, e no silêncio entranhado, surgia a perplexidade dos sonhos que tivera durante o tempo que dormiu tão profundamente: Tinha crescido; começava a ver as diferenças. Passava-lhe pelos lábios um sorriso lacónico, e de cabisbaixo saboreava o ruido das folhagens pontapeando-as; desejava tão profundamente que permanecessem no ar eternamente! Quem teria escolhido por ele para nascer naquele lugar sinuoso, sombrio,
 repleto de ceticismo? Como as noites lhe gelavam as entranhas e os dias afuguentavam o raquítico fragmentado na vã tentativa de agarrar com as duas mãos o que se esgueirava como enguias em ribeiras frias e cristalinas… Durante a escolaridade primária foi apenas dono e senhor de uma simples ardósia comprada por uma coroa na taberna do lugar. Porém, com a inteligência e boa vontade, foi lecionado, concluindo com distinção os quatro anos sem percalços nem interrupções. Temia o emergir futuro e revoltava-se contra a nebulosidade que emergia no horizonte. Brincava e jogava com os putos da sua geração; aprendera a nadar em pequenos tanques de água que servia para regadio tendo passado por múltiplas dificuldades impostas pelos mais idosos pouco complacentes. O nudismo chegara até eles pela força das circunstâncias, não havia fatos de banho… Presenciou e assistiu impotente, durante uma tarde de banhada, à violação de um puto mais novo que ele, obrigado e tão indignado que pela primeira vez na sua vida sentiu vontade de matar aqueles algozes que riam e troçavam, praticando este ato horrível um após outro enquanto outros neutralizavam a vítima.
Lutou intensamente contra a perspectiva  de ver os seus colegas voar para novos horizontes onde poderia morar a felicidade e a prosperidade, e ele continuava ali, naquele cais, hirto como uma estátua, a ver passar os comboios que não paravam para ele poder subir. E sentiu o peso da dor, mais pesado que a fome ou a sede, o desprezo e o abandono, pondo em causa os valores e princípios que tanto prezava, duvidando da doutrina que aprendera e dos ensinamentos dos quais apenas beneficiavam os privilegiados…Nascer em qualquer lugar 
Texto de António Braz e 1 fototo outra partilhada

Sem comentários: