quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

Mártires

O vento, que passa silenciosamente ou veloz como um furacão, não apaga as memórias nem atenua o que foi gravado na dor e no sofrimento que o nosso cérebro nos lembra vezes sem fim, mesmo que não haja remédio para a cura, quando podia ter havido, se os seres não fizessem vista grossa à humanidade, caraterística dum cristianismo que pende sempre na balança para o lado dos que tem tudo, de onde se podem extrair interesses particulares, protegidos por tretas baratas, que iludem e captam haveres e sentimentos. Era um garoto como outro qualquer, com um lindo nome, uns olhos que brilhavam em noites sem estrelas, um sorriso manifestamente atraente e jubiloso: De pés descalços, e vestimenta roída pelo uso, corria e saltava feliz por ter vindo ao mundo juntamente com mais seis irmãos, que amava á sua maneira, sem manifestações recorrentes, porque aos humildes não lhes são conferidos os mesmos direitos, apenas os deveres, que jamais recusamos, por medo e não com receio de represálias, até que um dia uma doença infeciosa lhe bateu à porta, e sem licença entrou instalando-se nos seus frágeis brônquios, martirizando-o lentamente durante meses, dias e horas, combalido, desesperado, deitado naquela suposta cama, a berrar nos poucos intervalas que a tosse lhe deixava livres, implorando socorro, mas só eu o ouvia, e junto á lareira chorava silenciosamente, arrancava os cabelos com as minhas próprias unhas, por que não podia fazer nada, apenas apertar-lhe as mãozinhas nas minhas quentes, e ele piedosamente olhava-me como quem suplica que o tirem daquele inferno, que pouco a pouco lhe ia roubando o alento. Aquecia água na lareira e levava-a como se fosse o remédio de que ele precisava. Como a ignorância serve tantas vezes para justificar a malvadez! Hipocrisia sem coração, gente gelada que não quer ver nem ouvir…. Havia um hospital em Bragança de acesso restrito aos ricos. Uma injeção de penicilina teria bastado para salvar um inocente que veio ao mundo sem pedir… mas, custava vinte escudos, e na terra não se prestavam socorros aos pobres. Já sem forças para tossir, e alento para respirar, ouviam-se agora os gemidos agonizantes que o levariam à grande viagem sem volta. Pese na consciência daqueles que ainda vivem, porque eu nunca os perdoarei. Foi naquela casa imensa, onde o meu amigo vivia com a esposa e três filhos de tenra idade, que lhe foi diagnosticada aquela doença incurável. Despedido dos médicos e dos hospitais, foi para ali enviado aos cuidados, dia e noite da esposa, uma guerreira, onde desesperadamente gritava com as dores, sem que lhe fossem administras substâncias que pudessem atenuar tão grande sofrimento. Abria a janela da minha humilde casinha, e aqueles gritos de dor penetravam nos meus ouvidos como laminas que cortam a sangue frio. Impotente, caiam-me a lagrimas pelo rosto, e o coração apertava como se fosse explodir. Era um homem exemplar e um amigo incontestável que jamais esquecerei. Imagino que filhos e esposa tenham guardado sequelas daquele drama que a lotaria escolheu para vítima, e tão atrozmente martirizou. Por talvez ainda não existir a morfina que ajuda a partir com dignidade. Hoje em dia fala-se em eutanásia, palavra forte que não dignifica uma morte assistida, quando já não há vida nem esperanças, todo ser humano deveria poder decidir conscientemente

Sem comentários: