quinta-feira, 12 de junho de 2014

Capitulo XIV

— Escuta. E a rapariga, descartando-se de ti em obediências às instruções do
senhor padre fulano ou sicrano, comporta-se como uma boa católica. É o que te
digo. Toda a vida do bom católico, os seus pensamentos, as sua ideias, os seus
sentimentos, as suas palavras, o emprego dos seus dias e das suas noites, as sua
relações de família e de vizinhança, os pratos do seu jantar, o seu vestuário e os
seus divertimentos — tudo isto é regulado pela autoridade eclesiástica (abade, bispo
ou cônego), aprovado ou censurado pelo confessor, aconselhado e ordenado pelo
diretor da consciência. O bom católico, como a tua pequena, não se pertence; não
tem razão, nem vontade, nem arbítrio, nem sentir próprio; o seu cura pensa, quer,
determina, sente por ela. O seu único trabalho neste mundo, que é ao mesmo tempo
o seu único direito e o seu único dever, é aceitar esta direção; aceitá-la sem a
discutir; obedecer-lhe, dê por onde der; se ela contraria as suas ideias, deve pensar
que as suas ideias são falsas; se ela fere as suas afeições, deve pensar que as suas
afeições são culpadas. Dado isto, se o padre disse à pequena que não devia nem
casar, nem sequer falar contigo, a criatura prova, obedecendo-lhe, que é uma boa
católica, uma devota consequente, e que segue na vida, logicamente, a regra moral
que escolheu. Aqui está, e desculpa o sermão.

—Eu compreenderia, disse, se fosse um homem [326] de maus costumes, senhor
doutor. Mas eu porto-me bem; eu não faço senão trabalhar; eu não frequento tabernas
nem troças; eu não bebo, eu não jogo; as minhas noites passo-as na rua da Misericórdia,
ou em casa a fazer serão para o cartório...

—Meu rapaz, tu podes ter socialmente todas as virtudes; mas, segundo a religião de
nossos pais, todas as virtudes que não são católicas são inúteis e perniciosas. Ser
trabalhador, casto, honrado, justo, verdadeiro, são grandes virtudes; mas para os padres
e para a Igreja não contam. Se tu fores um modelo de bondade mas não fores á missa,
não jejuares, não te confessares, não te desbarretares para o senhor cura—és
simplesmente um maroto. Outros personagens maiores que tu, cuja alma foi perfeita e
cuja regra de vida foi impecável, têm sido julgados verdadeiros canalhas porque não
foram batizados antes de ter sido perfeitos. Hás de ter ouvido falar de Sócrates, d'um
outro chamado Platão, de Catão, etc. Foram sujeitos famosos pelas suas virtudes. Pois
um certo Bossuet, que é o grande chavão da doutrina, disse que das virtudes d'esses
homens estava cheio o inferno... Isto prova que a moral católica é diferente da moral
natural e da moral social... Mas são coisas que tu compreendes mal... Queres tu um
exemplo? Eu sou, segundo a doutrina católica, um dos grandes desavergonhados que
passeiam as ruas da cidade; e o meu vizinho Peixoto, que matou a mulher com pancadas
e que vai dando cabo pelo mesmo processo de uma [327] filhita de dez anos, é entre o
clero um homem excelente porque cumpre os seus deveres de devoto e toca figle nas
missas cantadas. Enfim, amigo, estas coisas são assim. E parece que são boas, porque
há milhares de pessoas respeitáveis que as consideram boas, o Estado mante-as, gasta
até um dinheirão para as manter, obriga-nos mesmo a respeita-las—e eu, que estou aqui
a falar, pago todos os anos um quartinho para que elas continuem a ser assim. Tu


naturalmente pagas menos...

voltando à leitura e aos meus autores preferidos, escolhi para partilhar convosco o relato (resposta) de uma participação dada pela autoridade ao queixoso... só mudaram os tempos!

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