quarta-feira, 18 de junho de 2014

O doce toque das trindades


Ó minha terra…
Mesmo não ouvindo já, aquele doce toque das trindades, o amor redobra. Ontem passei por lá… havia estrumeiras nas ruas lamacentas e cerejas no “cerdeiro” do tio Eurico da canada do Outeiro. Ouviu-se o comboio a vapor apitar entre Salsas e Rossas. O guarda da passagem de nível fechou os “cadeados” de ferro, e, de bandeira na mão ouvia os insultos dos motoristas apressados que circulavam pela estrada nacional com indiferença. Pelo carreirão da Tempa, já a descer para Arufe, um homem de “cajata” samarra e çocos brochados tentava apressar o passo vendo passar por ele, a correr, um rapaz que por certo também ia apanhar o comboio. –Diz ó tio Azevedo que me vá tirando o bilhete p’ra Bragança… - gritou o homem, mas o “lafrau” já não ouviu… andava a estudar na Escola Industrial e Comercial. Havia tantos “carreirões” na minha terra! “Canadas”, fragas, e neve… tanta neve no inverno! Lembro-me tão bem dos cinco bairros e da particularidade dos que lá viviam… filhos de pais incógnitos e de mães solteiras, criados com tantas dificuldades… nutrição precária, algum amor, porque sendo muitos teria de ser dividido, e um “cibinho” de carinho no meio da “fumarreira” que fazia vir as lágrimas aos olhos. Os dias passavam e as noites não traziam novas oportunidades… fatalidades malditas. Deixemos os lamurios para quem os viveu condignamente.
Passava no bairro das pedras, junto do palheiro do tio João Santo e da “loja” das vacas onde dormiam os criados que em noites medonhas eram visitados pelas bruxas… Uma cachopa cantarolava a viva voz: -Minha mãe case-me cedo… - Andava a varrer a casa… talvez a fazer as camas. Junto da grande fraga, monumento histórico, que servia de parede à velha querida forja, parei a observar o frenesi dos acontecimentos previstos para este dia. No Prado, debaixo do “negrilho” e do freixo um aglomerado de pessoas parecia esperar pelo evento do século… Aproximei-me de ouvido alerta enquanto os ânimos se exaltavam com os nervos à flor da pele, ao ponto de querelar-se. Apostavam pelo touro do chico porque era mais bravo, mais forte, e tinha uns cornos afiados que nem “navalhas”… -Quem ganha é o do Ramiro que sabe lutar como nenhum na redondeza – afirmavam outros de punhos cerrados.
Havia nesse dia, luta de touros lá para o lado do Lombo da Igreja, lugar apropriado, espaçoso, onde os dois rivais, (os proprietários) iriam definir qual deles o mais valente, poderoso, o campeão. Uma multidão inconsciente dos perigos eminentes, acorreu ao lugar marcado, e à tardinha começou o que alguns consideram ainda hoje de “espetáculo”.  Dois animais foram lançados para lutar até à morte, usando os seus donos todos os meios para chegar à vitória. Um deles foi obrigado a ingurgitar grande quantidade de vinho, o outro não saiu estripado por sorte. Triste espetáculo!
Ontem passei por lá. E fui ao cemitério visitar aqueles que já não encontrava pelas ruas empedradas…não encontrei as campas dos que poderiam ser meus avôs, nem vi as fotos dos que animavam os jogos de fito, relha, peso, ou ferro…vieram-me à memória nomes e “alcunhas” dos gloriosos heróis da minha terra, títulos de nobreza atribuídos a gente humilde, generosa e valente… valores que se perderam… princípios que desvaneceram. Diz o adágio: - quem lega o que tem, a pedir vem… Mas, quem sou eu para julgar? A taberna do Álvaro estava definitivamente trancada, e na do tio António (trocho) já não param os forasteiros para medir forças com a grande pedra redonda.

Fecharam-se os portões da vila, e os putos já não vão nadar ao poço do tio Herculano.

9 comentários:

Anónimo disse...

Mais um excelente texto, com um visualismo,um poder de descrição assombroso. Por momentos sentimo-nos transportados para aquele tempo de outrora. Quase conseguimos ouvir, cheirar, sentir toda aquela animação , num tempo em que parecia não existir morte ou desaparecimento.
Fico extremamente orgulhosa por esta pessoa tão talentosa,pertencer à minha família.
Todos temos talentos, o teu é sem dúvida para a escrita. Lurdes carlos

antonio disse...

Obrigado Lurdes pelas tuas amáveis frases que recebo de coração aberto com um sentimento carinhoso e uma abertura de franqueza considerada que sempre nos aliou em todas as circunstancias...tantos elogios fizeram-me corar, não sei se mereço realmente, mesmo com auto-estima a um nível superior.
Congratulo os dons e valores familiares os quais sempre valorizarei prioritariamente. Beijos

Fátima Pereira Stocker disse...

Tonho

Antes de mais, fiquei contente por verificar que a tua ausência não foi excessivamente longa. Ainda bem, para ti e para quem te lê.

Costumo gostar daquilo que escreves, sabe-lo bem, hoje ainda mais. Arrepiei-me com duas frases:

"não encontrei as campas dos que poderiam ser meus avós, nem vi as fotos dos que animavam os jogos..."

"vieram-me à memória nomes e “alcunhas” dos gloriosos heróis da minha terra, títulos de nobreza atribuídos a gente humilde..."

Em ambas encerras em palavras certas aquilo que me levou, e ao João, a criar o blog de Rebordaínhos: não permitir o esquecimento daqueles que nos antecederam e daquilo que foram capazes de construir. Gente grande a quem, em vez do "dom" tratamos pela nomeada (cuja recolha me trouxe alguns dissabores, mas isso são águas passadas). Este teu artigo é contributo importante para que essa memória não desapareça.

Agora outra coisa: é a segunda vez que ouço falar nas tais "bruxas" do palheiro do sr. João. Não queres contar melhor essas histórias?

Beijos

antonio disse...

Fátima: obrigado pela tua gentileza. Ainda não estou completamente recomposto, mas, isso vai com o tempo. Visitei o cemitério de Rebordainhos onde permaneci durante longas horas, verificando campa por campa, enquanto tentava extrair o que me ia minando a alma… não sei se consegui mas sinto-me aliviado. Na dos teus pais, vi a foto do teu marido, e mentalmente conversei com ele… creio que nos entenderíamos bem os dois!
O meu texto pode ser interpretado de diversas maneiras… fez-me bem escrevê-lo.
PS: vou tentar contactar-te por e-mail porque poderei confidenciar-te o que é sensato não escrever publicamente.
Beijos

Fátima Pereira Stocker disse...

Tonho

Na saúde, há coisas em que não podemos ter pressa sob pena de se tornarem mais demoradas. Tem paciência e dá tempo ao tempo. Sobretudo, não te isoles porque o convívio com as pessoas que nos estimam é muito importante.

Tenho a certeza de que te darias bem com o João: ambos pessoas honestas, batalhadoras, amigas do seu amigo e de Rebordaínhos. Obrigada por mo dizeres.

Sobre o teu PS gostaria muito de saber aquilo que tens para me dizer porque, de certeza, me virá a ser útil. Vou espreitando o e-mail.

Beijos

antonio disse...

Vou tentar seguir os teus conselhos Fátima. Bem-hajas por tudo.
beijos

Anónimo disse...

Ó minha terra, onde eu nasci
Quantas saudades eu tenho de ti
O amor redobra, com as saudades
Tu és para mim o doce toque das trindades

Ai,ai,ai...ai,ai,ai
Velhos caminhos como é bom voltar
Ai,ai,ai...ai,ai,ai
Doces caminhos deixai recordar

Eu quero ouvir os teus pardais ao desafio
Quero sentir a sombra amiga do Estio
Em teus folgedos reviver com emoção
Ó pião da minha infância
Vem de novo à minha mão

O seu texto está excelente! Mais uma vez, um muito obrigado por me reavivar a memória.

Cumprimentos..

antonio disse...

Anónimo: sou eu que agradeço os seus amáveis elogios, mas sobretudo a letra deste balada que tanta gente canta com tantas saudades!
Agradeço igualmente a sua prezada visita e o comentárioque me proporciona insentivos bem necessários neste momento.
Retribuo os cumprimentos: atenciosamente.

Anónimo disse...

Então! Que conversa é esta? Vamos lá a reaver as forças rapaz! Prá frente, é que é o caminho! Não alimente a satisfação daqueles que gostam ver-nos por baixo!
Bora lá
Um abraço