quarta-feira, 27 de agosto de 2014

O irmão desconhecido

Filhos do esquecimento, da vergonha do abandono…do destino traiçoeiro, que acidentalmente foram concebidos e jamais desejados; esquecidos no canto de uma aventura da qual nos lembramos como começou passando o resto da vida fingindo ignorar ser o pai de uma criança que não pediu para vir ao mundo… e a pobre da mãe, solteira, vulnerável, convicta de que as lindas frases se transformariam em sonhos realizáveis, cai de joelhos na hora de dar à luz, carregando nos ombros o peso de uma realidade desastrosa, humilhante, que a responsabiliza, inibida, abandonada, só no mundo da injustiça humana, de homens inconscientes, irresponsáveis, cruéis, de coração duro como pedra, cuja mentira provocou agravantes consequências no seio do lar dos desprotegidos.
A natureza e a ginecologia encarregou-se de desvendar o segredo que o meu pai levou consigo para a sepultura… nunca nos revelou ter um filho com outra mulher que não fosse a nossa mãe… será que também ele não sabia? Vou deixar-lhe o benefício da dúvida… porém, se hoje ainda vivesse, veria o seu retrato naquele homem em quem fixo o meu olhar, e o vejo, de cabelos brancos, olhos azuis, gestos similares aos seus que o caraterizavam dando-lhe a força, a rudez, a coragem para enfrentar com tantas dificuldades a vida predestinada… aquele sorriso carinhoso e ao mesmo tempo matreiro… a franqueza e a honestidade que nos transmitiu. Não posso julgá-lo por não possuir provas concretas, mas, pena-me imenso suspeitar, ter um irmão o qual jamais considerei como tal, pelo contrário, enquanto puto, tinha um medo tremendo dele; porque era corrécio… fazia fugir cão e gato que enxergasse nas ruas… jogava o “bate-cu”com os putos da minha idade… fazia extravagâncias caricatas de rebelião como se lhe tivesse faltado o que todos os seres humanos deveriam possuir, mesmo os “bastardos”!
Vi-o hoje na igreja… a celebração era pelas intenções do nosso pai, e ele veio! Por acaso? Talvez… mas, estava ali, mesmo à minha frente, e eu, confuso, pensava, refletia e sentia-me impotente perante um caso abstrato. Pela minha mente repassaram todas as cenas de um pai de filhos… o amor, carinho, ternura, que talvez tivesse faltado a este homem, hoje de cabelos grisalhos, também pai de filhos… como seria fixe que todos os que sofreram injustiças pudessem perdoar os que erraram, voluntária ou involuntariamente!

Talvez amanhã me volte a cruzar com ele numa rua deserta, ao abrigo dos ouvidos indiscretos, e tenha a coragem de lhe perguntar se existiria qualquer probabilidade de sermos filhos do mesmo pai? Ou talvez não ouse com receio de ferir a sua sensibilidade de pessoa que viveu toda a sua vida sem que jamais alguém lhe fizesse esta estúpida pergunta?

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