Filhos do esquecimento, da vergonha do abandono…do destino
traiçoeiro, que acidentalmente foram concebidos e jamais desejados; esquecidos
no canto de uma aventura da qual nos lembramos como começou passando o resto da
vida fingindo ignorar ser o pai de uma criança que não pediu para vir ao mundo…
e a pobre da mãe, solteira, vulnerável, convicta de que as lindas frases se transformariam
em sonhos realizáveis, cai de joelhos na hora de dar à luz, carregando nos ombros
o peso de uma realidade desastrosa, humilhante, que a responsabiliza, inibida,
abandonada, só no mundo da injustiça humana, de homens inconscientes,
irresponsáveis, cruéis, de coração duro como pedra, cuja mentira provocou
agravantes consequências no seio do lar dos desprotegidos.
A natureza e a ginecologia encarregou-se de desvendar o
segredo que o meu pai levou consigo para a sepultura… nunca nos revelou ter um
filho com outra mulher que não fosse a nossa mãe… será que também ele não
sabia? Vou deixar-lhe o benefício da dúvida… porém, se hoje ainda vivesse,
veria o seu retrato naquele homem em quem fixo o meu olhar, e o vejo, de
cabelos brancos, olhos azuis, gestos similares aos seus que o caraterizavam
dando-lhe a força, a rudez, a coragem para enfrentar com tantas dificuldades a
vida predestinada… aquele sorriso carinhoso e ao mesmo tempo matreiro… a
franqueza e a honestidade que nos transmitiu. Não posso julgá-lo por não
possuir provas concretas, mas, pena-me imenso suspeitar, ter um irmão o qual
jamais considerei como tal, pelo contrário, enquanto puto, tinha um medo
tremendo dele; porque era corrécio… fazia fugir cão e gato que enxergasse nas
ruas… jogava o “bate-cu”com os putos da minha idade… fazia extravagâncias caricatas
de rebelião como se lhe tivesse faltado o que todos os seres humanos deveriam
possuir, mesmo os “bastardos”!
Vi-o hoje na igreja… a celebração era pelas intenções do nosso
pai, e ele veio! Por acaso? Talvez… mas, estava ali, mesmo à minha frente, e
eu, confuso, pensava, refletia e sentia-me impotente perante um caso abstrato.
Pela minha mente repassaram todas as cenas de um pai de filhos… o amor, carinho,
ternura, que talvez tivesse faltado a este homem, hoje de cabelos grisalhos,
também pai de filhos… como seria fixe que todos os que sofreram injustiças pudessem
perdoar os que erraram, voluntária ou involuntariamente!
Talvez amanhã me volte a cruzar com ele numa rua deserta, ao
abrigo dos ouvidos indiscretos, e tenha a coragem de lhe perguntar se existiria
qualquer probabilidade de sermos filhos do mesmo pai? Ou talvez não ouse com
receio de ferir a sua sensibilidade de pessoa que viveu toda a sua vida sem que
jamais alguém lhe fizesse esta estúpida pergunta?
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