Um século!? Ser centenário é um privilégio reservado a uma
pequena percentagem de humanos que vivem em comunhão com diversas gerações,
evoluindo tal como os tempos, passando por dias felizes, mas também por
momentos de extrema dificuldade, cogitar numa marcha lenta, obscura com
abertura de perspetivas otimistas, que alimentam a alma e tendem a repercutir
no corpo sinais visíveis com sequelas que jamais sararão.
Há já 17 anos que partiste pai… mais de um século – e,
recordo-me tão bem, dos teus gestos, apesar de pouco afetuosos! Não te
ensinaram a dar carinho, porque também o não terás tido? Conheci o avô, um
homem rude que temia sendo criança, quando me assentava naquela grande cozinha
à fogueira, e com a sua bengala de ferragem na ponta, apontava para a cabeça
dos seus netos, jogando o: “rectamol”.Terá sido a casa Grande da terra… em
tempos remotos. Porém, nunca cheguei a saber exatamente porque se afundou,
empenhando a maioria dos melhores prédios rústicos, os quais nunca foram
desempenhados, por razões evidentes que todos os falidos conhecem. A escada que
nos ergue desce-se mais depressa de que se sobe… e as consequências são por
vezes catastróficas para os descendentes. Aquelas juntas de touros que faziam
murmurarem os espetadores, e o boieiro orgulhoso levantava a cabeça,
transformaram-se em jericos a cair de velhos, cansados, comprados ao barato
numa das feiras dos chãos, nos dias 7 ou vinte, datas em que estas se
realizavam.
Numa parte da grande casa construída em granito, apenas com
duas divisões, conheci a violência doméstica, quando embriagado voltavas a casa
alta noite, e a tua mulher com lágrimas nos olhos te tratava de desgraçado… e
nós, teus filhos, já deitados, puxávamos da manta de farrapos para cima da
cabeça, para atenuar o medo, que os gritos da pancadaria, provocavam, e
trémulos, íamos pedir socorro. Perdoei, mais tarde, quando compreendi, que era
com o efeito do álcool, e a impotência de não poderes dar à tua família a
dignidade reivindicada com toda a justiça. No fundo, foste um bom pai, apesar
de um mau marido… diriam os teólogos ser obra do destino… eu direi ser obra de
um poder maquiavélico. As circunstâncias não podem abstrair as obrigações que o
raciocínio justiceiro impõe.
Falaste-me do Sr. Cidões de Murçós, quando soubeste que ia
casar nesta terra, dizendo terem sido vossos amigos e convidados para eventos
familiares… quando ainda a vossa casa era um lar abastado. Segundo me consta,
era uma família respeitada e considerada desta terra, e que grande coincidência,
também eu vivo numa das casas que foi sua.
Tenho muitas saudades tuas meu pai, apesar de tudo… o teu
sofrimento na última década de vida, que aquele estúpido acidente provocou na
tua perna esquerda ainda jovem, e que em todos os invernos voltava, quando
dormias em pé encostado às tuas “muletas”. Aos gritos sem que ninguém pudesse
vir atenuar o teu sofrer, rosto martirizado pela dor, já com poucos cabelos, de
olhar fixo no além, como a pedir alivio… tudo remói no meu pensamento de pai.
Apesar de ter tentado ser um bom pai também falhei… ainda não sei onde, nem por
que razão, mas limito-me a não julgar como poderei ser julgado.
7 comentários:
Tonho
O perdão liberta quem perdoa.
Esta espécie de carta aberta fala mais de ti - da pessoa boa que és - do que dos erros do teu pai. Ainda bem, porque esse é o sinal maior do teu perdão. Falhou muito convosco (fui-o percebendo de há uns tempos a esta parte) mas, quanto a mim, recordo-o sempre como o primo de minha mãe que nunca me falhou com um sorriso e uma saudação amável sempre que passava por mim. E vós todos soubestes acarinhá-lo, devolvendo em muito o pouco que recebestes. Ele há-de estar-vos grato.
Um grande beijo
António.
Gostei do teu desabafo, faz-nos falta, mas sabes:
Em tão pouco tempo tudo mudou.
A desumanização das relações tornou-nos invariavelmente mais sós;
A oferta e o deslumbramento corromperam-nos;
A modernização e a mecanização rasgaram as nossas fontes;
O equilíbrio tornou-se instável;
E o futuro, que antes preparávamos com pequenos objetivos, tornou-se muito escuro;
Nos ainda recordamos, mas lembra-te que hoje há gente que já não sonha.
Nós vivemos, recordamos e ainda sonhamos.
Já passámos grande parte da nossa vida, vamos gastar o que resta com alegria e a bem com nós próprios.
Um grande abraço
Orlando Martins
Fátima: Começo por agradecer as tuas sempre amáveis palavras as quais resumem parte do que tentei passar para os leitores. Os nossos pais serão sempre os melhores do mundo, independentemente do que o destino ditou no passado… vivi com eles no agregado familiar apenas doze anos, talvez os que marcam mais, antes da adolescência! As razões fundamentais, de vivências mais ou menos adequadas a cada um dos seres vivos, incentiva-nos a reconsiderar certos conceitos que o tempo amolece. O esclarecimento está no comentário do Orlando.
Bem hajas e beijos para vocês todos.
Orlando: tens razão a cem por cento… e, como dizes com mestria, vamos tentar viver o que nos resta da passagem por este vale de lágrimas, coadunando a “sagesse” com a displicência.
Quanto a nós, ajuda-nos, a suportar o peso da idade, a incompreensão, o cinismo e hipocrisia, valências que servem um mundo agreste, sem sentimentos. Restam-nos as belas recordações, essas ninguém vai poder retirar das nossas memórias. Obrigado pela visita; foi com imenso prazer que te recebi nos meus humildes rascunhos. Abraço enorme e saudoso.
Tonho,
Num jogo qualquer na nossa aldeia contra una equipa de fora (que não me lembro) recordo-me destas palavras que o teu pai me disse:
"Bô... Com o meu Tonho e o meu Carlos, eles estão fodidos."
E, garanto-te, era genuíno o orgulho que tinha em vós.
Um abraço
Orlando Martins
Sim Orlando; ele orgulhava-se de nós, assim como nós de ele. Foi um bom defesa esquerdo(beke) no seu tempo... e já com certa idade jogou a corrida com o Carlos do tio Francisco (chicheiro) do prado ao campo da bola da cabeça, ida e volta, dando-lhea partida do meu pai da eira do tio Zé Çuca que ele ganhou mesmo que o carlos vindo recentemente dos paraquedistas, ágil e preparado. Bom fim de semana. Abraço
Tonho
Que é feito de ti, caro primo?
Beijos
Enviar um comentário