Amaro II parte
Grande conhecedor das espécies animais, mais concretamente, da
passarada, com a qual conversava, na falta de humanos pelas redondezas,
enquanto guardava as vacas. Sabia ninhos de melrros, carriças, xedres, gaios
rolas, pintassilgos, etc. Conhecia todas estas aves, e muitas mais, pelo
cantar, e mesmo no ar, cujo prazer imenso manifestava ao vê-las ir de um lado
para outro, livremente, pousando para descansar ou bicar comida, mas sempre
livres de movimentos, era fascinante. Assentava-se, na parte mais alta do
lameiro, cruzava as pernas e ali permanecia horas, meditando, pensando, como
uma criaturazinha, mais ou menos nos seus nove ou dez anos, estrutura pequena
para a idade, não lhe faltando poder e força de vontade, para vencer o fardo
pesado que muitas vezes transportava, às costas ao ombro, ou apertando aquelas
mãozitas de ferro enquanto cerrava os dentes, de raiva, ou de coragem… Pela sua
cabecita passavam só Deus sabe que género de coisas; sorrindo de vezes em
quando, tornando-se melancólico momentos depois, ao ponto de lhe cair uma
lágrima pela face, talvez provocada, pelo vaguear de pensamentos, que o
projectavam para um mundo maravilhoso, onde os garotos são idênticos, possuem
as mesmas oportunidades, dispõem da equivalência de deveres e direitos, de
valores adquiridos com mérito, menosprezando actos meramente interessados, os
quais regem os adultos. De vez em quando, para libertar o formigueiro ressentido
nas pernas, dirigia-se a uma árvore bem definida, onde havia ovos num ninho, ou
filhotes já mais crescidos, e fazia-lhe uma festinha, acariciava-os, como
gostaria ser acariciado, pelos seus pais, a mãe, já que a vida lhe roubara o
pai, pouco dado a essas coisas intimas, mas úteis, necessárias, de rotina para
um cidadão residente em lugares muito diferentes dos das Aldeias.
Este ritmo, infernal, tanto em trabalho, como na falta de
divertimentos com garotos da sua idade ia tornando o Amaro cada vez mais
pacato, sofrendo silenciosamente, abrindo-lhe feridas cada vez mais profundas
no coração moribundo, ignorante, incompreensível, enfim…infeliz.
No dia catorze de Setembro daquele ano, pelas nove horas da
manhã, estava eu no café da Chave, a tomar o meu café, quando reparo e vejo, lançando
um rápido olhar na direcção da porta de entrada, o Amaro. Vinha entrando, vestido
e calçado decentemente, com um grande sorriso nos lábios.
- Ena! Vais à cidade puto? Com esse vestuário Domingueiro
pareces outro…
- Vou à festa! Dos chãos. E tu? Não vais?
- Claro que sim. Já viste passar alguma festa dos Chãos sem
que eu não estivesse lá?...
Pois. Então vemo-nos lá.
- Posso dar-te boleia…
- Não, obrigado. Vou a pé, para amaciar estes sapatos novos
que o Sr. Carlos me fez.
Desatou a correr pela canada de vale de espada, só, como
sempre, predestinado à solidão, ou escolha sua de preconceitos, ou
complexidade, tomando pelo “carreirão” da quinta, em direcção às Santas
Engrácias, onde fez uma pausa, voltado para a Capela, iniciou o sinal da cruz,
e rezou três ave-marias…Depois, a passo lento, porque os pés começavam a sentir
o cansaço, passou por outros peregrinos, alguns deles conhecidos, e já depois
de Vale de Nogueira, lançou um olhar ao céu, jubiloso, agradecido pela felicidade
ressentida naquele preciso momento. Sentiu-se como os passarinhos que tantas
vezes viu iniciar a primeira saída do ninho. Receosos, temerosos,
inexperientes, frágeis, tentando enfrentar a realidade da liberdade.
Depois da tradicional missa e procissão, hora em que se
comem as merendas, deparei com o Amaro encostado a uma parede da tasca, junto
da Igreja, olhar distante, meditando não sei em quê.
- Então rapaz, burras nos pés, não é? Bem feito…
Como não respondeu, fiz-lhe outra pergunta desta forma: trouxeste
merenda? Acenou negativamente com a cabeça. Então vamos fazer assim: ou vens
comigo, a comer, deve chegar para todos… ou…
- Não tenho fome, obrigado.
Apercebendo-me do embaraço orgulhoso do rapaz, sensato e
humilde, meti-lhe cinco escudos no bolso, retirando-me rapidamente antes que
ele tivesse tempo para reagir e não aceitasse. De longe gritei: é para um
“molete” de trigo, se quiseres voltar comigo para casa, espera pelo campo da
bola por volta das seis.
Poucas mais vezes vi o Amaro, a partir desta data. Andei por
terras longínquas, e apesar de não me sair do pensamento, aquele rosto magro e
triste, um sorriso encantador, cativante, as suas repostas prontas e francas,
perguntava por ele sempre que voltava, à Aldeia, mas apenas obtinha como
resposta: Saiu de casa num domingo bem cedo e não tinha voltado.
2 comentários:
Tonho
Tenho andado arredia, por extenuação e tristeza.
Mas ainda bem que hoje entrei aqui e li este teu texto, que me arrepiou. O Amaro é um dos meninos que povoaram a minha infância. Não só as famílias eram amigas (e, embora distantes, ainda parentes) como vivíamos muito perto uns dos outros.
Também eu, num dia em que regressei a passar férias, ouvi da boca de minha mãe a informação da fuga do Amaro. E nunca soube mais nada, embora toda a gente supusesse os motivos. Confesso que nunca tive coragem para perguntar por ele, nem à mãe nem aos irmãos. Por isso, aguardo a continuação desta tua história, na esperança de que me possas dar novidades desse menino de cara redonda e bonita e de cabeça inteligente, como era apanágio de todos eles.
Beijos
Fátima: compreendo perfeitamente o teu estado físico e mental... também eu já tive melhores dias, enfim... cest la vie, como dizem os Franceses!
Quanto à história do Amaro, tinha-a escrito havia muito tempo e agora lembrei-me de publicar duas partes...
Bem-hajas pela visita, beijos
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