quinta-feira, 21 de junho de 2012

AMARO NA ADOLESCÊNCIA (FICÇÃO)









Amaro II parte
 Voltando às peripécias do Amaro, e às dificuldades da sua família, as quais melhoravam à medida que os irmãos e ele próprio iam crescendo. Alguns deles já traziam uns tostões para casa, em jeiras, e outros trabalhos prestados, mesmo assim não chegava para alimentar sete bocas, vestir e calçar, e despesas extras, que deixo à avaliação de cada um.
Grande conhecedor das espécies animais, mais concretamente, da passarada, com a qual conversava, na falta de humanos pelas redondezas, enquanto guardava as vacas. Sabia ninhos de melrros, carriças, xedres, gaios rolas, pintassilgos, etc. Conhecia todas estas aves, e muitas mais, pelo cantar, e mesmo no ar, cujo prazer imenso manifestava ao vê-las ir de um lado para outro, livremente, pousando para descansar ou bicar comida, mas sempre livres de movimentos, era fascinante. Assentava-se, na parte mais alta do lameiro, cruzava as pernas e ali permanecia horas, meditando, pensando, como uma criaturazinha, mais ou menos nos seus nove ou dez anos, estrutura pequena para a idade, não lhe faltando poder e força de vontade, para vencer o fardo pesado que muitas vezes transportava, às costas ao ombro, ou apertando aquelas mãozitas de ferro enquanto cerrava os dentes, de raiva, ou de coragem… Pela sua cabecita passavam só Deus sabe que género de coisas; sorrindo de vezes em quando, tornando-se melancólico momentos depois, ao ponto de lhe cair uma lágrima pela face, talvez provocada, pelo vaguear de pensamentos, que o projectavam para um mundo maravilhoso, onde os garotos são idênticos, possuem as mesmas oportunidades, dispõem da equivalência de deveres e direitos, de valores adquiridos com mérito, menosprezando actos meramente interessados, os quais regem os adultos. De vez em quando, para libertar o formigueiro ressentido nas pernas, dirigia-se a uma árvore bem definida, onde havia ovos num ninho, ou filhotes já mais crescidos, e fazia-lhe uma festinha, acariciava-os, como gostaria ser acariciado, pelos seus pais, a mãe, já que a vida lhe roubara o pai, pouco dado a essas coisas intimas, mas úteis, necessárias, de rotina para um cidadão residente em lugares muito diferentes dos das Aldeias.
Este ritmo, infernal, tanto em trabalho, como na falta de divertimentos com garotos da sua idade ia tornando o Amaro cada vez mais pacato, sofrendo silenciosamente, abrindo-lhe feridas cada vez mais profundas no coração moribundo, ignorante, incompreensível, enfim…infeliz.
No dia catorze de Setembro daquele ano, pelas nove horas da manhã, estava eu no café da Chave, a tomar o meu café, quando reparo e vejo, lançando um rápido olhar na direcção da porta de entrada, o Amaro. Vinha entrando, vestido e calçado decentemente, com um grande sorriso nos lábios.
- Ena! Vais à cidade puto? Com esse vestuário Domingueiro pareces outro…
- Vou à festa! Dos chãos. E tu? Não vais?
- Claro que sim. Já viste passar alguma festa dos Chãos sem que eu não estivesse lá?...
Pois. Então vemo-nos lá.
- Posso dar-te boleia…
- Não, obrigado. Vou a pé, para amaciar estes sapatos novos que o Sr. Carlos me fez.
Desatou a correr pela canada de vale de espada, só, como sempre, predestinado à solidão, ou escolha sua de preconceitos, ou complexidade, tomando pelo “carreirão” da quinta, em direcção às Santas Engrácias, onde fez uma pausa, voltado para a Capela, iniciou o sinal da cruz, e rezou três ave-marias…Depois, a passo lento, porque os pés começavam a sentir o cansaço, passou por outros peregrinos, alguns deles conhecidos, e já depois de Vale de Nogueira, lançou um olhar ao céu, jubiloso, agradecido pela felicidade ressentida naquele preciso momento. Sentiu-se como os passarinhos que tantas vezes viu iniciar a primeira saída do ninho. Receosos, temerosos, inexperientes, frágeis, tentando enfrentar a realidade da liberdade.
Depois da tradicional missa e procissão, hora em que se comem as merendas, deparei com o Amaro encostado a uma parede da tasca, junto da Igreja, olhar distante, meditando não sei em quê.
- Então rapaz, burras nos pés, não é? Bem feito…
Como não respondeu, fiz-lhe outra pergunta desta forma: trouxeste merenda? Acenou negativamente com a cabeça. Então vamos fazer assim: ou vens comigo, a comer, deve chegar para todos… ou…
- Não tenho fome, obrigado.
Apercebendo-me do embaraço orgulhoso do rapaz, sensato e humilde, meti-lhe cinco escudos no bolso, retirando-me rapidamente antes que ele tivesse tempo para reagir e não aceitasse. De longe gritei: é para um “molete” de trigo, se quiseres voltar comigo para casa, espera pelo campo da bola por volta das seis.
Poucas mais vezes vi o Amaro, a partir desta data. Andei por terras longínquas, e apesar de não me sair do pensamento, aquele rosto magro e triste, um sorriso encantador, cativante, as suas repostas prontas e francas, perguntava por ele sempre que voltava, à Aldeia, mas apenas obtinha como resposta: Saiu de casa num domingo bem cedo e não tinha voltado.


2 comentários:

Fátima Pereira Stocker disse...

Tonho

Tenho andado arredia, por extenuação e tristeza.

Mas ainda bem que hoje entrei aqui e li este teu texto, que me arrepiou. O Amaro é um dos meninos que povoaram a minha infância. Não só as famílias eram amigas (e, embora distantes, ainda parentes) como vivíamos muito perto uns dos outros.

Também eu, num dia em que regressei a passar férias, ouvi da boca de minha mãe a informação da fuga do Amaro. E nunca soube mais nada, embora toda a gente supusesse os motivos. Confesso que nunca tive coragem para perguntar por ele, nem à mãe nem aos irmãos. Por isso, aguardo a continuação desta tua história, na esperança de que me possas dar novidades desse menino de cara redonda e bonita e de cabeça inteligente, como era apanágio de todos eles.

Beijos

antonio disse...

Fátima: compreendo perfeitamente o teu estado físico e mental... também eu já tive melhores dias, enfim... cest la vie, como dizem os Franceses!
Quanto à história do Amaro, tinha-a escrito havia muito tempo e agora lembrei-me de publicar duas partes...
Bem-hajas pela visita, beijos