Foi um final de férias particularmente doloroso. Estávamos no mês de Setembro de 1972. Logo no dia seguinte à festa dos chãos, que se realiza no 14 deste mês, onde, por todos os meios, inclusive o atestado médico, para justificar a ausência ao trabalho, eu sempre tentei estar presente… já a noite começava a cair e os pássaros procuravam, num chilrear apressado, um lugar seguro para passar a noite, ao abrigo do fresco orvalho que caía discretamente, encontramo-nos naquele lugar escondido dos olhares curiosos, ladeados por duas paredes “surdas e mudas”, vegetação selvagem indiferente aos acontecimentos, para o : “adeus até p’ró ano”… Foram tão poucas as palavras! Apenas um balbuciar de lábios molhados, pelos olhares lacrimosos, um sufoco que nos unia e a obrigação que nos distanciava, cruelmente, mas sem culpas nem responsabilidades.
Estava dividido pelo destino entre duas paixões, que me martirizavam o corpo e a alma, não me deixando tomar a decisão certa, se realmente existia uma decisão certa? Embora tal decisão já tivesse sido tomada, influenciado pelas circunstâncias, quase obrigado para auferir de uma liberdade total.
Durante o mês de Agosto do mesmo ano, desloquei-me a Lamego,
ao quartel onde trabalhava o 1º sargento Eduardo Pereira, a quem me dirigi recomendado
por familiares seus, no caso de precisar de qualquer ajuda… registaram a minha
apresentação como “compelido”, e pouco tempo depois fui chamado para ser
inspecionado no Hospital Militar do Porto, cuja aptidão foi declarada. No dia 16 de Setembro parti para Paris, onde
me esperava o trabalho e as diversas atividades culturais e desportivas, cuja
integração prezava. Era membro ativo da associação Santulhanensse, uma
comunidade empreendedora, simpática, vizinha, onde jogava futebol,
participava nos numerosos convívios, bailes, peças teatrais,
torneios, - n’um dos quais conheci pessoalmente o agora famoso Tony Carreira,
vocalista no grupo musical “ os irmãos 5”, - sobretudo nos fins-de-semana.
O tempo passava veloz como o vento, arrastando, a “contracorrente”
a minha jovialidade vulnerável, o complemento de uma adolescência atribulada e
condescendente… metáfora de esquecimentos e lembranças, de anseios, de sonhos.
Esperava-me no meu humilde quarto do 6º andar, uma carta
vinda de Portugal, onde era solicitada a minha apresentação no quartel de
Lamego, em tempo útil de 15 dias, caso contrário passaria a ser refratário…
Caiu-me a “alma aos pés, com esta notícia… sabia que iria ser chamado, mas,…
porquê tanta pressa? Agora era o meu coração que estava dividido em dois…
abandonar os meus amigos, aquela terra acolhedora e maravilhosa onde por não
sei qual ordem milagrosa se expandiram tantos desejos manifestos de felicidade?
Participei no escritório da fábrica Citroên onde trabalhava,
a minha obrigatoriedade de deixar periodicamente o emprego explicando as
razões, ficando tudo registado para no caso de querer voltar após o serviço
militar, a admissão era obrigatória. Despedi-me também à presa de alguns dos
meus próximos e amigos, meti os escassos haveres em duas malas, e triste como a
noite, entrei para um táxi que me levou à estação de caminhos-de-ferro com
ligação para Portugal.
Durante a viagem, num compartimentos de 8 pessoas, senti-me
tão só, desamparado, à medida que, de olhar fixo no vazio da noite estrelada e
fresca, refletia sobre as razões que me obrigavam a deixar o lugar e as coisas
de que tanto gostava, entregando-me cegamente às peripécias desastrosas de uma
guerrilha sem fundamento que não era de todo minha… enfiar uma farda durante
tantos anos para defender o quê? Poderia ser mobilizado para o Ultramar, e de
lá voltar com lesões profundas físicas ou morais, doenças infeciosas graves, ou
até mesmo num caixão, como foi o caso de alguns rapazes nossos vizinhos. Estes
pensamentos faziam-me arrepiar os cabelos, e revoltar-me contra mim próprio,
arrependido por ter tomado tal decisão, quando podia esquivar-me a tudo isto.
Um ato Patriótico, cívico que merece reverencia – diriam aqueles cujo interesse
passava em primeiro lugar!
Abria-se então outra janela no meu pensamento, de onde via
os meus entes queridos, a terra e as pessoas que tanto amava às “escapulas”
como um fugitivo que apesar de não cometer nenhum crime, não me era permitida a
passagem nas fronteiras, nem a permanência livre no País onde nasci, e sem esta
liberdade jamais poderia viver feliz…
Adormeci profundamente, cabeça contra o vidro da janela,
através da qual já não se enxergava nada da paisagem, apenas a escuridão da noite,
caindo num sonho medonho, horroroso com seres humanos, mutilados, armas de fogo
a disparar em todas as direções, granadas a rebentar junto de mim e de colegas
que gemiam desmedidamente já quase sem vida, e eu que tentava libertar-me da
trincheira onde caíra, rastejando, enquanto se ouvia ao longe a voz de Fernando
Farinha cantar: - O soldado nas trincheiras…
Um vizinho de viagem tocou-me levemente no ombro perguntado:
- Ça ne va pas?
Acordei em suor, e envergonhado com a pergunta, apenas acenei
positivamente com a cabeça.
Entravamos em Irum, para trás ficavam as belas recordações
de um Emigrante como tantos outros, que deixou o País para poder desfrutar da
felicidade que lhe proporcionavam noutro lugar, sem complexos nem preconceitos,
acarinhado e respeitado pelos seus valores e princípios, qualquer que fosse a
sua profissão quando exercida condignamente.
2 comentários:
Boa noite, Tonho
A tua história é parecida com a do meu irmão Artur. Maldita seja a guerra e todos os que lucram com ela! Creio que é esse o único ódio que sinto no coração.
Contaste muito bem: a vida interrompida, os projectos destruídos, os sonhos proibidos e, o pior de tudo, o medo do que poderia acontecer.
Também gostei de rever as pessoas que, nas fotografias, viviam dias felizes.
Beijos
Olá Fátima! Aminha história é identica à de centenas de pessoas, que foram atirados para uma guerra de interesses, correndo o risco de deixar lá a vida. O mais curioso foi que paguei uma certa quantia de dinheiro no consulado para adiar, e no fundo veio a resultar, pois no ano que assentei praça deu-se o 25 de Abril, por coneguinte a independencia das colónias... mas, foram 3 anos passados sem ganhar um tostão, por outro lado gastei-o bem gasto a aprender, porque jamais me resignei com a fatalidade. Saí da tropa com 3 diplomas em 3 anos, nada mau, embora não me tivessem servido, porque recusei, por exemplo emprego na marconi, e guarda fiscal para seguir outros destinos. Obrigado pelo comentário. Beijos
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