Só a noite me apraz, no sentido figurado do termo, e, na silenciosa escuridão, tal como um invisual, vagueio mentalmente, através dos tempos, do passado que foi meu, mas que infelizmente também se vai “esgueirando” tal como outras faculdades físicas e mentais… sinto o esvair do alento debaixo dos cobertores tecidos em teares industriais, e o sorriso esbara-se com o travesseiro indiferente aos meus sonhos ou pesadelos. As insónias persistem, quezilas de pai convicto de ter falhado, onde e quando, não importa! A vida sempre me proporcionou condições satisfatórias sem alaridos disformes nem perspetivas convencionais, um humilde derisório de abstrações, mas, o suficiente, preenchendo o peculiar dia-a-dia…
Há noites assim, mas também revejo, ponto a ponto, anos de
responsabilidade, brincadeira e até profissionais.
Em 1987, exercendo ainda a profissão de “táxi driver” com o
meu CX branco, em comum acordo com aquela que viria a ser minha esposa e mãe
dos meus filhos, vim viver para o N.º 2 da rue de Presbourg no 16em “arrondissement”,
num pequeno apartamento, 1qurto sala de
banho e cozinha, situado no 4º andar, (águas furtadas” com extraordinária vista
para os dois monumentos mais importantes de Paris,; estas três janelas que se
veem na foto abrigam imensas recordações que me emocionam e me convidam a
reviver profundamente o voltar de uma página para enveredar pelo caminho da
felicidade… acostumar-me ao ruido ensurdecedor da praça do Étoile não foi
tarefa fácil, porém, tinha outras vantagens para compensar, e como também
passava 11h a trabalhar dentro desta grande e maravilhosa cidade, as coisas
foram tomando o rumo habitual.
Saía de casa por volta das 9h da manhã, depois de depositar
as minhas filhas no infantário rue Lauriston, da praça Vitor Hugo onde um dia
um cliente entrou para o meu carro e me perguntou se me podia contratar para o
dia todo? Estupefacto com a proposta, olho o retrovisor e verifico pelos seus
traços e personalidade ser um Senhor vindo dos países Árabes, provavelmente de
um desses países do petróleo. Não me enganei no meu julgamento, e a tarefa era
visitar as numerosas lojas que possuía na rue do Faubourg Saint Honoré, e Av.
Montaigne, onde as senhoras ricas passavam o tempo a visitar as “boutiques”
requintadas, fazendo compras a preços exorbitantes. Por volta do meio dia, saiu
de uma loja, entro no carro e disse:
- Vamos almoçar?
- Com certeza. Onde quer que o deixe?
Vamos almoçar juntos, se não se importa? Claro!
Embaraçado não sabia que responder… e já o homem anunciava o endereço:
Restaurante Ledoyen… conhece?
Sim… mas… não estou vestido nem calçado a rigor para poder entrar nesse lugar… para além de nunca ter comido em lugares tão chics…
- Não se preocupe com isso.. .Conheço bem o proprietário.
E foi assim que entrei e comi num dos restaurantes mais prestigiosos de Paris, acanhado e envergonhado, mas quase à vontade dado o poder financeiro do meu cliente, o qual no final do dia me deixou 100 francos de gorjeta.