terça-feira, 3 de março de 2015

Só se ama uma vez

 Saía de manhãzinha, de farnel às costas e a mente fresquinha; dormira tão bem… com duas “meninas”, as dos seus olhos, que como estrelas brilhavam mal a noite começava a cair…voltava sempre a correr, deixando perdido o cansaço nas pegadas do poeirento caminho; impressões digitais, que o traíam na conjetura sentimental… queria avistar a sua silhueta, que todos os dias à mesma hora, vagueava pela horta, procurando serenar o desespero espiritual que o cotidiano lhe impunha… e o coração batia arfante num frenesi indiscritível, ansiando ouvir soar ao longe as palavras que apaziguam o sofrimento, um simples gesto, um olhar mendigo, um cheiro de aproximação carnal…um beijo ardente trocado, e dois corpos alheios aos julgamentos humanos, unem-se e apertam-se, num profundo alivio, suspenso em receios, contrariedades, aberrações discriminatórias… ambos fremiram soltando um suspiro, não se sabe de que género…calou-se o mundo inteiro, e neste silencio, que os dois desejavam
 
 perpetuar, ouviu-se um pintassilgo cantar, sem orquestra a acompanhar, para ninguém poder testemunhar, já que o passarinho não poderia falar… neste enlace silencioso de profundo amar, passaram apresados outros dias outras horas, de ternura e felicidade, vividos com tanta simplicidade e discrição, num canto escuro de uma noite sem luar, no bailarico saloio de uma festa local, junto à fonte de água fresca cristalina, no solheiro de escadas em ruinas, numa imprevista viagem à estação de caminhos-de-ferro, acompanhados por anjos os quais iriam aos pais jurar- que tinham ido sós – mas, aqueles ciprestes ainda meninos, ambos sabiam que podiam contar, as lágrimas derramadas por ele recusar, fugir consigo para África, para livremente se poderem amar. A vida foi tão madrasta com a vossa maravilhosa história de amor…tantas e tão dolorosas foram as separações, que nem a senhora do Remédios conseguiu conciliar, mas, sempre que se reencontravam, não eram necessárias palavras… apenas um
 
 ligeiro trocar de olhar para recaírem na doença que os contagiou eternamente! Eram então adolescentes. Ela recusou categoricamente o seu primeiro pedido de namoro, debaixo daquele cabanal, já a noite caía, e o medo de um não, invadia o seu espirito… tremia como “varas verdes” e as palavras não se queriam soltar da sua boca… e a desilusão foi tão penosa! – Nem pensar – respondeu ela ao seu pedido; e ele tão humilde e vulnerável, senti u o peso do céu que lhe caía sobre a cabeça… voltou para casa de cabisbaixo, surdo e mudo, teve uma noite para esquecer…
No dia seguinte, mandou-lhe uma carta por uma amiga onde explicava aquele “não” que tanto o fez sofrer, e o primeiro amor começou assim. Também o primeiro beijo marcou a jamais este amor puro e complexo, onde a paixão superava tendencialmente a obstrução… Havia entre eles aquilo que os jovens de hoje chamam “química” que não suportava outros componentes, 
estranhos, insólitos, insignificantes. E os dias, os meses, os anos foram passando a um ritmo rápido ou lento segundo as perspectivas ocasionais. Nunca existiram projetos futuros no seu vocabulário… viviam de “amour et d’eau fraiche”… E numa noite de luar onde os dois se foram encontrar?! Naquele ditoso lugar, onde ninguém poderia passar… nem interromper os pombinhos, um deles prestes a bater a asa, seguindo outros caminhos – ela suplicava-o a chorar, para não partir e a deixar – ali naquela pasmaceira, sem os seus ardentes beijos, nem o calor dos seus braços, ficava desfeita em pedaços…Pelo rosto angélico de formusura, que o luar banhava de misticismo abstrato, corriam ligeiras gotas de água desaguando no lenço que retirou do bolso, e num vaivém de indecisões, se pode compreender a crueldade das despedidas. Porém, já alta noite caía, quado a donzela se foi encontrar com o seu amor, e lhe jurou que ia com ele no dia seguinte. Incrédulo, apertou-lhe as mãos, beijou-as e levou-as ou peito, onde batia loucamente um coração apaixonado, enquanto se desvanecia um sorriso triste para deixar lugar à alegria e felicidade.

8 comentários:

Anónimo disse...

Ainda bem António! Ainda bem que, conseguiram fugir e ficar juntos! Ou não?

Cumprimentos

antonio disse...

Apenas por algum tempo... obrigado pela visita e comentário. Cumprimrntos

Anónimo disse...

Se foi só por algum tempo é porque, o coração dos dois não se tocavam. Quando o amor existe, torna-se o ingrediente mais importante da vida, e é a própria porção mágica da Felicidade. Se ele existe, é para todo o sempre e, aumenta cada vez mais!

Que pena António!

antonio disse...

Meu caro anónimo: um romance de verdadeiro amor, cuja paixão invade cegamente dois entes, pode encontrar pelo caminho diversos e variados argumentos tendencialmente opostos à realização de projetos concretos. Desfaz-se o que não foi ponderado… há desilusão porque o imaginário superou a realidade… volta-se à casa de partida, e continua-se a procurar a tal porção mágica para atingir a Felicidade… não se deixa de amar, é verdade, porém, ainda que esse amor aumente, e seja eterno, podem os corações tocar-se às escondidas e até submeter-se ao adultério por conveniência protocolar. E mais não digo por agora… Grato pelo seu comentário cuja observação integra a lógica… atenciosamente.

Anónimo disse...

António,

Quando não se partilham metas de vida em comum, o mesmo objetivo, o mesmo entendimento, as mesmas prioridades, valores e objetivos então, essa pessoa, não nos ama. Por vezes, confundimos pura atração física com o amor.
Os amantes felizes não têm fim nem morte, são eternos como é a natureza!

Cumprimentos

Fátima Pereira Stocker disse...

Tonho

"A certa altura fizeste-me lembrar um soneto lindíssimo de Camões: "Aquela triste e leda madrugada" até porque a separação pode ser uma outra forma de amar. É assim o poema:

Aquela triste e leda madrugada,
Cheia toda de mágoa e de piedade,
Enquanto houver no mundo saudade
Quero que seja sempre celebrada.

Ela só, quando amena e marchetada
Saía, dando ao mundo claridade,
Viu apartar-se de ũa outra vontade,
Que nunca poderá ver-se apartada.

Ela só viu as lágrimas em fio,
Que, duns e doutros olhos derivadas,
Se acrescentaram em grande e largo rio.

Ela viu as palavras magoadas
Que puderam tornar o fogo frio,
E dar descanso às almas condenadas."

Beijos

antonio disse...

Sr. anónimo:como não podemos ler no intimo das pessoas, também não nos é permitido fazer um julgament, mesmo com os argumentos que cita, e a priori, estão certos.
concordo com a última linha do seu comentário ( Os amantes felizes não têm fim nem morte, são eternos como é a natureza!)
Obrigado pela visita. Cumprimentos

antonio disse...

Fátima: o soneto é belíssimo! Sinto-me lisonjeado com a comparação, e gosto das tuas visitas, mesmo sabendo que tens pouco tempo livre, porque o teu saber enrriquece os meus rascunhos. Bem hajas. Beijos