sábado, 23 de maio de 2020

António Lobo antunes



O MANUAL DOS INQUISIDORES
Publicado por António Lobo Antunes em 1996, fala-nos sobre o fascismo em dois momentos: antes e depois da Revolução dos Cravos, a narração é feita por personagens que se sucedem e se alternam. É um romance escrito pelos próprios personagens que se revezam em depoimentos e comentários. Centra-se nas relações de poder de um Ministro de Salazar à volta do qual girará a própria narração do livro- que possuía “poderosas credenciais”, condecorado com a ordem nacional do: “você sabe com quem está falando?”, um homem imoral, agressivo, machista, lascivo e autoritário enquanto está no poder, que contrasta drástica e dramaticamente com a figura decrépita e degradada em que vem a tornar-se depois, ficando sujeito à mesma sorte de sentimentos a que qualquer pessoa comum pode ser submetida. As restantes personagens são tipos sociais que não mostram nenhuma evolução com o passar dos anos, mesmos os pobres são conservadores, têm o ponto de vista dos dominadores, reproduzem o discurso da ignorância em que vivem, devido a uma acomodação adquirida com o passar dos anos. Como em outros livros de ALA embora sejam questionados alguns aspetos delicados, como família, política, religião, diferenças de classes sociais, o grande senso de humor e a espirituosidade criam uma leitura que não é penosa, nem entristeçe o leitor, fazendo com que assuntos dolorosos e trágicos acabem provocando o riso.
(...) o senhor doutor dobrou-me para a frente, encostou-me a uma viga em que dormiam rolas e as placas do telhado estremeceram, procurou-me no vestido achou-me perdeu-me tentou achar-me de novo, e eu esqueci-me dele e pensei nas laranjas a brilharem na paz de agosto (...) até que as laranjas se apagaram de súbito, a morte (e, pior que a morte, o tempo) tornava a existir, o cheiro do tabaco a desvanecer-se, e o senhor doutor a recuar um passo – Para te lembrares de mim comunista de merda.
– Xixi senhor doutor xixi então que é isso vamos lá bravo ótimo bravo hoje não nos vai sujar os lençozinhos lavados pois não seu maroto? o meu pai de queixo pendente, de nádegas bambas, a tentar limpar o nariz com a manga que treme, e elas solícitas – Tem o lencinho na algibeira não tem senhor doutor tem sim senhor cá está ele repare no lencinho e diga aqui à Fernanda para que lhe serve o lencinho o meu pai calado, submisso, inútil, sem cigarrilha, sem dentadura postiça, sem lábios, sem chapéu, estendido no colchão como um espantalho de cama (...)
(...) eu em Caxias a lutar pela família para que a minha mulher e as outras mulheres da tribo continuassem a gastar fortunas em cabeleireiros e terrinas e os idiotas dos meus filhos e dos filhos dos meus irmãos enfiassem no nariz a cocaína suficiente para não virem ao escritório aborrecer-me com idéias e projetos de empresas, nem desatarem a contar ações e a quererem tirar-me o lugar como eu fiz ao meu velho assim que me cansei de ser verbo de encher e de ver numa dor de alma o crédito a apodrecer parado, prometi isto e aquilo, acenei com umas poltronas no conselho fiscal, uns postos de administrador aqui e acolá, umas promoçõezitas discretas, umas garantias vagas, juntei cinquenta e dois por cento, convoquei uma assembléia-geral extraordinária (...)
(...) almocei com o médico do meu pai para saber se a diabetes, a tensão arterial e o coração do velho o aguentavam muito tempo, se não era aconselhável uma dessas intervenções cirúrgicas complicadas, para trocar artérias por próteses de borracha, que se demora meses a convalescer ligado a três dúzias de máquinas, com três dúzias de tubos nos orifícios do corpo, a comer à colher chávenas de caldo até uma pneumonia redentora salvar o desgraçado de máquinas, tubos e canjas (...)
(...) o professor Salazar que mandava no país inteiro, nos militares, na igreja, a fazer-me perguntas, a preocupar-se comigo, a achar-me graça, a oferecer-me torradas, refrescos, bolos de ovos, taças de morangos, o professor Salazar de perninhas magras juntas, com um guardanapo nos joelhos, a pedir-me que lhe falasse da praça do Chile, da minha mãe, da loja, o professor Salazar a tratar-me por minha senhora, a tratar-me por menina, as ondas recuando e avançando nos túneis do castelo, o farol a chorar lágrimas verdes não sei por quem, as palmeiras a gritarem lá fora, o professor Salazar que eu não acreditava que prendesse pessoas, as mandasse torturar, as embarcasse nos paquetes de África para morrerem de mordeduras de cobras venenosas, o professor Salazar tão prestável, tão delicado, tão atencioso, a pegar-me na mão com a mãozinha lenta, uma mãozinha insegura de menina, o professor Salazar, se eu me calava, a suplicar-me que continuasse, interessadíssimo (...)
– Caldinho senhor doutor um caldinho de legumes ótimo passado pelo passe-vite uma postazinha de pescada frita sem nenhuma espinha que gastei meia hora a tirá-las seu camelo uma perazinha cozida esta pelo papá toca andar esta pela mamã mais depressa esta por mim raios parta o velho que também mereço esta é pelo palerma do seu filho para o não achar mais magro no dia da visita não vamos assustar o seu filho com um rostozinho chupado das carochas não vamos assustar seu filho com um rostozinho de múmia vamos ser obedientezinhos senhor doutor engula sacrista do homem que me fecha os dentes engula engoles ou não engoles meu safado?
(...) como se eu fosse beijá-la senhores, como se quisesse beijá-la, como se me apetecesse beijar uma cadela esquelética, exausta, na agonia, sem forças para latir, rastejar, erguer o focinho sequer, como se me apetecesse beijar as formigas e as moscas que lhe passeavam no lombo sem que ela as sacudisse, como se me apetecesse beijar a baba de sangue do focinho, uma lata de conservas e um frasco de perfume vazio no parapeito, os pés descalços, pratos e talheres por limpar no lava-louças, uma criança lançando serpentinas de carnaval na varanda fronteira, como se ma apetecesse, imagine, beijar uma cadela usada, uma cadela repugnante, se eu tivesse a caçadeira, trazido os cartuchos, gritasse pela Titina para mos ir buscar, e a minha mulher no sofazito de vime – Não adianta chorar não chores não adianta chorar como se eu chorasse senhores, como se fosse homem de lágrimas, como se a minha vida não melhorasse sem ela (...) (...) por que motivo não vens comigo para casa, a Titina muda os lençóis da cama, muda as toalhas, põe o serviço das visitas, deita o pequeno para estarmos à vontade (...) precisas de engordar, ir à depilação, cuidar de ti, e que eu cuide de ti, precisas de ir à Baixa comprar roupa mas como se fala a uma bicho surdo atravessado numa calha de rega, a uma cadela enferma prestes a desaparecer debaixo da figueira, como se fala com pernas cruzadas e braços cruzados que me repelem, me recusam, se defendem de mim (...)
(...) entrar no palácio que me cabe de direito, terminar com os abusos, colocar o Exército em sentido, enfiar esta bodega na ordem, governar este esterco, uns tabefes por aqui e por ali, os semanários caladinhos, o povo caladinho que é aquilo que ele gosta, pode crer que é aquilo que ele gosta, caladinhos e toca a andar que há-de haver neste país quem me siga, quem se lembre de mim e me respeite (...)
(...) e fazia de conta ser a minha casa ser a minha casa como fazia de conta que a mulher que me recebia no capacho e se vestia como a Isabel, se penteava como a Isabel, usava o perfume da Isabel era de fato a Isabel, não a Isabel da altura da separação mas a Isabel do tempo em que nos conhecemos, uma mulher que aluguei e decorei e paguei exatamente como o apartamento, com a mesma minúcia de cenário de teatro e o mesmo cuidado de relojoeiro, um quarto igual ao nosso quarto, uma sala igual à nossa sala, os mesmos retratos, as mesmas flores, o mesmo espelho onde ela me aceitou e rejeitou, cortinas verdes que me davam a ilusão das faias das quintas, a ilusão dos pássaros, eu a afagar a Isabel através daquela a quem chamava Isabel e se vestia e penteava e cheirava como a Isabel – Gostas de mim?
Excertos de O MANUAL DOS INQUISIDORES

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