sexta-feira, 1 de maio de 2020

Viveres

 A outra parte
Foram concebidos e nasceram idênticos ou semelhantes ao próximo, segundo os ensinamentos, o fundamento do endoísmo, ou a luz do caminho que não esclarece causas nem motivações, alegadas premissas, eventualidades nem pressupostos, que certifiquem sem margem para dúvidas, a igualdade. Espalhados por esse mundo fora, são centenas de milhares, em situações inexplicáveis que aderem, voluntária ou involuntariamente, ao comodismo de situações amorosas, durante uma vida inteira, trabalhando como escravos, economizando cada centavo, vivendo em casas degradadas sem o mínimo conforto, para dormir uma cama a cair aos pedaços, sem quarto de banho para se lavar, uma côdea para se alimentarem, mal calçados e vestimentas pelas quais passaram tantos anos, mas orgulhosos com uma conta bancária avultada, que talvez pensem levar no caixão, mas na verdade fará o regozijo de quem pouco ou nada se lembrará, que a sua existência foi a maior das precaridades, e nem sequer terá uma palavra de agradecimento nos seus pesadelos noturnos.
Acostumaram-se a viver sós, como os sem-abrigo, aqueles que nunca amaram nem foram amados, marcados por um destino perverso, por uma humanidade indigente, condenados desde a nascença à abstenção de uma Eva de mão tendida, de um gesto afável, de um carinho fugitivo, ou simplesmente de um sorriso encantador, tal como o da mãe que os pariu, e no regaço embalou, quando eram seres humanos. Não os julgo, porque não sou juiz, nem os condeno porque também não sou tribunal. Será uma escolha, será uma imprecação? As verdadeiras razões, guarda-as o próprio secretamente como se fosse um tesouro.
Os seres humanos são imprevisíveis… tal como alguns rios, que nascem e desaguam não se sabe onde. Existe uma mística incondicional de fatores que nos conduzem à pragmática duvidosa de ser ou não ser o que somos ou o que queríamos ser, independentemente das travessias complexas para uns, facilitadas para outros, um homem uma mulher, formados com 
 sintomáticos universos onde tudo é relativo e pessoal, segundo a individualidade de cada um que a personalidade concretiza pelo devaneio tímido ou libertino, que nos diferencia com extroversão e a sociedade moderna carateriza como útil, prático eficaz. Será? Sem entrarmos em sistemas preconceituosos, pessoalmente não consigo discernir certos comportamentos em pessoas que publicitam a suposta felicidade onde o amor lhes enche o espirito vezes sem fim, como quem muda de sobremesa a cada refeição. Casar, divorciar, juntar os trapos e de um dia para o outro tudo se desvanece por razões fúteis, mas, o orgulho fala mais alto e tem mais poder que a irresponsabilidade, deixando filhos órfãos de pais vivos, desconectados por não saberem para que lado se virar, dividindo o tempo de afeição por lugares diversificados, sem que lhes seja facultado o direito de escolher. Chamam-lhe amor ao que eu considero ser afeição, atração e outros adjetivos menos o de amar. Amar profundamente é um enxerto que pegou e que enraizou com tanta consistência que venha o vento de onde vier, veloz, ciclónico ou suave, não consegue separar dois corpos que se tornaram geminados para sempre. Não há problemas que não se resolvam, mas há atitudes que destroem para sempre. 

Naquela casinha, pequena e sem divisões nem soalho, havia uma chaminé, por onde o fumo, que sobejava dos olhos a lacrimejar, saía vulcanicamente, sem direção nem destino, viviam três irmãos, dois homens e uma mulher, já de idade avançada, solteiros, até que a rapariga desencantou o chinelo para o seu pé, e casou numa aldeia vizinha, e por lá se ficou como quem renega o passado e com ele as suas raízes. O mais velho dos irmãos faleceu num acidente de viação, enquanto prestava serviços em troco da pequena” jeira”, num Domingo fatídico. A casinha que era pequena para os três tornou-se demasiado grande e silenciosa, para o outro irmão, solteirão, como tantos por esse mundo fora, não se compreendendo as verdadeiras razões, nem os porquês que os obrigavam a viver uma vida inteira, sós, solitários, sem uma família para acarinhar, um filho para “arrolar” ninguém com quem conversar nas noites longas e medonhas de inverno, fixando o vazio ao levantar e ao deitar, e adormecer ao som dos ruídos noturnos, ano após ano, enquanto se espera o envelhecimento e a morte, sem jamais experimentar o que a vida tem de bom, a felicidade.






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