A Deusa da minha infância
Tivemos uma infância conturbada, mas ao mesmo tempo folgazã,
repartindo os infortúnios, e partilhando os bons e alegres momentos, com
simplicidade e ternura, como se tivéssemos nascido da mesma mãe, um gemelar sem
grupo sanguíneo, sem ADN, sem promessas nem juramentos, seguíamos ao ritmo do
dia-a-dia, que se transformavam na doçura de um mel só nosso, ou num fel de
todos, que o vento veloz se encarregava de varrer para longe, para de novo
podermos poisar os pés, naqueles lugares sagrados, lavar as escórias na água
cristalina que jorrava da nascente da fonte grande, ou da do espinheiro, ainda
muito antes de passarem por lá os demolidores de sonhos, a crueldade humana, os
filhos do demónio.
Tinha um nome engraçado, caminhava pausadamente, de cabeça
erguida, que enaltecia o seu penteado moderno, copiado numa revista já sem cor,
que algum passante extraviado teria deixado cair por despeito, ou lançara fora
como lixo… Do seu rosto de uma brancura singular, arredondado e fino, surgia
uma protuberância sorridente, e uns sons meigos, delicados e suaves ecoavam,
“como mimos” de criança embalada pelo desejo de mulher, uma sofreguidão que
antecipava a puberdade, o desejo incontrolável de apanhar o comboio ainda que
fosse o derradeiro, que a conduzisse ao êxtase…
Vivia numa casa modesta, construída pelo pai, em granito
fragmentado e azulado, soalho de madeira que todos os sábados esfregava tão
intensamente que até mudava de cor. Com a higiene não se brincava, e também os
potes de ferro fundido brilhavam no alto do “lançador” ornamentado com rufos de
jornais antigos, mas que lhe dava um ar de arrebica. Era cautelosa e seletiva,
porém, não desdenhava quem quer que fosse, e a sua singular beleza, trazia ao
baile pretendentes de todos os meios sociais, embora tivesse as suas
preferências, e daí fizesse as suas escolhas.
Naquela deliciosa noite de verão quente, a lua iluminava as
ruas desertas, as estrelas contemplavam o céu de um azul incandescente, os
habitantes da pacata Aldeia dormitavam no desassossego do calor tórrido,
desnudados até às partes íntimas, e nós dançamos, unidos e apertados, como se
não houvesse mais ninguém no mundo, como se os restantes dançarinos fossem
meros figurinos de uma peça que tornamos só nossa…ma o baile acabou, e sentimos
de novo o distanciamento ao qual nos obrigavam, porque os sentimentos não
mandam, e os corações sofrem as injustiças mundanas, e nós eramos ainda tão
novos! Encostamo-nos discretamente a um canto, mas nem sequer nos podemos
beijar, porque os cães de guarda vigiavam-nos constantemente… passamos cada um
de nós a sua mão direita por detrás dos nossos corpos, e num aperto cerrado,
ficamos tempos indefinidos, como ligados para sempre, à espera que decidissem
por nós separar-nos para sempre.
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