sexta-feira, 24 de julho de 2020

A Deusa da minha infância


A Deusa da minha infância
Tivemos uma infância conturbada, mas ao mesmo tempo folgazã, repartindo os infortúnios, e partilhando os bons e alegres momentos, com simplicidade e ternura, como se tivéssemos nascido da mesma mãe, um gemelar sem grupo sanguíneo, sem ADN, sem promessas nem juramentos, seguíamos ao ritmo do dia-a-dia, que se transformavam na doçura de um mel só nosso, ou num fel de todos, que o vento veloz se encarregava de varrer para longe, para de novo podermos poisar os pés, naqueles lugares sagrados, lavar as escórias na água cristalina que jorrava da nascente da fonte grande, ou da do espinheiro, ainda muito antes de passarem por lá os demolidores de sonhos, a crueldade humana, os filhos do demónio.
Tinha um nome engraçado, caminhava pausadamente, de cabeça erguida, que enaltecia o seu penteado moderno, copiado numa revista já sem cor, que algum passante extraviado teria deixado cair por despeito, ou lançara fora como lixo… Do seu rosto de uma brancura singular, arredondado e fino, surgia uma protuberância sorridente, e uns sons meigos, delicados e suaves ecoavam, “como mimos” de criança embalada pelo desejo de mulher, uma sofreguidão que antecipava a puberdade, o desejo incontrolável de apanhar o comboio ainda que fosse o derradeiro, que a conduzisse ao êxtase…
Vivia numa casa modesta, construída pelo pai, em granito fragmentado e azulado, soalho de madeira que todos os sábados esfregava tão intensamente que até mudava de cor. Com a higiene não se brincava, e também os potes de ferro fundido brilhavam no alto do “lançador” ornamentado com rufos de jornais antigos, mas que lhe dava um ar de arrebica. Era cautelosa e seletiva, porém, não desdenhava quem quer que fosse, e a sua singular beleza, trazia ao baile pretendentes de todos os meios sociais, embora tivesse as suas preferências, e daí fizesse as suas escolhas.
Naquela deliciosa noite de verão quente, a lua iluminava as ruas desertas, as estrelas contemplavam o céu de um azul incandescente, os habitantes da pacata Aldeia dormitavam no desassossego do calor tórrido, desnudados até às partes íntimas, e nós dançamos, unidos e apertados, como se não houvesse mais ninguém no mundo, como se os restantes dançarinos fossem meros figurinos de uma peça que tornamos só nossa…ma o baile acabou, e sentimos de novo o distanciamento ao qual nos obrigavam, porque os sentimentos não mandam, e os corações sofrem as injustiças mundanas, e nós eramos ainda tão novos! Encostamo-nos discretamente a um canto, mas nem sequer nos podemos beijar, porque os cães de guarda vigiavam-nos constantemente… passamos cada um de nós a sua mão direita por detrás dos nossos corpos, e num aperto cerrado, ficamos tempos indefinidos, como ligados para sempre, à espera que decidissem por nós separar-nos para sempre.

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