domingo, 5 de julho de 2020

Dia de sorte


Dia de sorte: ficção

Era sexta-feira, dia treze de Agosto, para uns sinónimos de má sorte, para outros de boa sorte, mas não há boa nem má, assimilamos simplesmente os fatos aos acontecimentos, dos quais extraímos, convenientemente, desejos e vontades, que se enquadram nos caixilhos que previamente preparámos, ou a moldura é pequena demais…
O José, trabalhava numa fabriqueta de sonhos, daqueles que aparentam ser o que jamais serão, mas que cativam a juventude, como é costume dizer: “ nem tudo o que reluz é ouro”?
A sua infância foi dourada. Filho único, de uma família cujos progenitores, também eram filhos únicos, pai arquiteto e mãe médica, foi criado e embalado em berços de ouro, por um pai discreto, distante, frio, e uma mãe galinha cujo” slogan”: a distância é o fascínio do amor, de Corrado Alvaro, que é como quem diz: sempre por perto, sempre vigilante, fazendo por ele escolhas, opções, minando-lhe a autonomia desde a sua mais tenra idade, para o bem de não se sabe quem, consciente e convicta de que as vivências protocolares, trariam de volta o resultado esperado, como se o destino de um ser humano pudesse ser alterado, de uma barafunda medonha, um cortar de “voadouros “em tempo útil e necessário para deixar o ninho.
José nunca teve aqueles amigos que tanto desejava ter, nem na primária, nem na secundaria, e muito menos na faculdade, porque apenas contactava com eles nas aulas, acatado num canto discreto, sempre de olhar fixo no vazio à procura da sua verdadeira identidade… via os rapazes da sua idade jogar à bola, de mãos dadas com raparigas, ou em grupinhos dos quais ele se sentia excluído. A porta de sua casa esteve sempre fechada para os que tentaram aproximar-se dele, tornando as relações de amizade distantes daquilo que supostamente costuma acontecer, sobretudo na idade da adolescência… tinha já dezassete anos, e, as relações amorosas dos seus colegas deixavam-no apreensivo, com a pergunta que mentalmente se fazia todos os dias: Serei eu diferente? Mergulhava novamente em profundas reflecções e sentia o seu corpo arrepiar-se… um pequeno suor invadia-lhe o dorso, e aqueles olhos meigos e ternos, inundavam-se num silencio enternecedor. Naquele dia chegou a casa triste, o que não passou despercebido à sua mãe, que vigiava permanentemente todos os seus gestos e atitudes. Subiu ao seu quarto no andar de cima, e suavemente deu três pancadinhas na porta. – Entre – respondeu uma voz magoada do interior.
Que tens Zezinho – perguntou a mãe com certo enfado
Assentado na beira da cama, com uma das mãos segurava o queixo, cabisbaixo, apenas respondeu:
- Não é nada… coisas minhas, não se preocupe mamã.
- Como não me devo preocupar vendo-te entrar em casa triste e nem sequer me vieste dar o beijo de costume…
- Desculpe mas… tenho já dezassete anos, e vivo como um miúdo de onze… sem amigos nem amigas, não convivo com ninguém, passo o meu tempo daqui para a escola, e da escola para aqui, estudo, janto e deito-me. Acha que sou um rapaz normal?
- Claro que és. Anormais são aqueles que vadiam, não aprendem, e não tem educação nem notas para tirar um bom curso.
- Então para si a vida resume-se ao que acaba de citar?
- Claro que não. Mas… para o resto tens ainda a vida toda pela tua frente…
Mais uma vez a mãe arranjou argumentos para calarem o desespero de um jovem que não pensava por ele, que não decidia por ele, que não vivia no seu verdadeiro corpo, que sentia que alguma coisa diferente o habitava, mas não podia gritar o desconforto, nem mesmo confidenciar, com receio de chegar à conclusão que o martirizava, tantos eram os índices que apontavam na mesma direção.
Entrou na Universidade de direito, com aspirações de magistratura, proeza que orgulhava os progenitores, mais manifesta na mãe depois de tantos esforços. Mas a sua maneira de viver continuava a mesma. Tinha-se já conformado e acomodado com este in viver, tirara a carta de condução e os pais ofereceram-lhe um carro á sua escolha. Escolheu uma marca reputada estrangeira, topo de gama, de cor azul claro e uma potência que lhe trazia alguma adrenalina, e um pouco de liberdade nas suas deslocações.
Andava no terceiro ano, quando começou a simpatizar com uma rapariga que vinha assentar-se à sua mesa no restaurante da faculdade. Era uma rapariga jovial, e falava com frontalidade, e à força de tantas conversas, a rapariga começou a sentir um fraquinho pelo Zé pacato. Tomou as rédeas dos acontecimentos e chegaram ao primeiro beijo, ao escurecer de uma noite estrelada e céu limpo. Apercebeu-se do embaraço do rapaz por não saber beijar, mas, não manifestou qualquer desconforto tentando guiar ela que já tinha experiencia. O José sentiu pela primeira vez na sua vida o efeito de uma relação amorosa e apesar de não desgostar, algo ou alguém o puxava para as reticências, teria de falar com a mãe.
(continua)

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