segunda-feira, 21 de setembro de 2020

Mãe era um nome vulgar...

"Mãe era o nome mais vulgar em Portugal. Curto, rápido, preciso e fácil de gritar durante o horrível suplício do corte das unhas, sobretudo o mindinho que uma tesoura feroz atacava magoando-me sempre, ou então era o medo que me magoasse que me magoava. Horas tremendas
- Que horror essas unhas ordens horríveis - Chega-te mais para a luz conselhos tenebrosos - Não te mexas agora e isso, o arrancar dos pontos pretos com o aviso
- Está quase seguido da exibição de uma coisa microscópica na ponta do indicador, sem mencionar a sopa (- Quem não tem fome de sopa não tem fome de doce) e a lavagem dos dentes, constituíram os suplícios cardinais da minha infância.
Entretanto acho que me desviei do princípio desta crónica, ou seja de ficar sempre espantado com a vida das pessoas, os seus desejos, as suas ambições, os seus medos, as suas minúsculas querelas. E as folhas das jarras a desprenderem-se dos caules. Se me deitasse no chão da sala acabavam por cobrir-me por inteiro e eu debaixo delas dando pela empregada a abrir a porta, a olhar para aquilo e a varrer-nos na direcção da pá: lá vou eu para o contentor dentro de um saco plástico, cheio de perfumes moribundos como os das tias-avós, rodeadas de essências vagas e tristes. Claro que se eu chamar a dona Olívia não liga: não acredita que as plantas falem e para o caso de se atreverem a falar nada melhor do que empurrá-las com força para o fundo.
O que os outros se agitam, tanta pressa sempre, e eu quieto. Sou um narciso, uma begónia, uma túlipa, ou antes restos de narcisos, de begónias, de túlipas, tão doces, tão pálidas. Mas não terei olhos ocos nem aflitos, apenas um caule tranquilo e por cima sacos plásticos dos vizinhos." (2008) António Lobo Antunes

 

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