terça-feira, 6 de outubro de 2020

O PASSAGEIRO DAS TRÉGUAS por António Braz

Chegou como um relâmpago, como as andorinhas e o cuco, em tempos primaveris, vindo nunca cheguei a saber de onde, ( clarificação de Orlando Martis)só para clarificar aqui um pouco vou deixar algo mais sobre o Camilo: "O Camilo, veio de Moçambique ainda criança. O pai dele era um militar de Bragança que foi em comissão para Moçambique. Nasceu esse filho duma preta, porque o Camilo era mulato e não preto. A mulher do militar acedeu a que ele trouxesse esse filho, muito embora tivessem outro (meio irmão do Camilo)... tendo sido acolhido neste lar com todo o carinho e amor, com a mesma educação que a do filho legítimo.

Ambos acabaram o Liceu e foram para a Universidade em Coimbra, onde, consta, chegou a frequentar o terceiro ano de História, mas o Camilo transformou-se num boémio pelas noites e tascas da cidade…)

Várias vezes o pai lhe dizia: - Camilo, ainda vais comer o pão que o Diabo amassou... "  com características que apontavam para África onde existem tantas misérias que não couberam nos cinco volumes de Victor Hugo, ou como os demais considerou que só havia miseráveis nos lugares onde a pele é branca, com perícia e astucia para torná-los submissos e humildes, exploravam humilhavam, roubando-lhes o que lhes pertencia por direito. Chamavam-lhe o preto, outros o mulato, e a minoria pelo seu verdadeiro nome: Camilo! Na sua bagagem trazia uns trapos velhos que utilizava para dormir quando a noite chegava, com a barriga a dar horas, mas quase sempre bêbedo, talvez para apaziguar as mágoas extraídas dum coração ferido, num palheiro emprestado ou debaixo do grande olmo, no prado, lugar mítico de encontros e desencontros, de negócios, cantares e danças, de conversas discretas e indiscretas, do sabor de uma sombra agradável, e do tilintar dos jogos tradicionais presenciado por centenas de pessoas, junto do qual passavam dezenas de pessoas e fingiam que o não viam, ou murmuravam palavras chocantes, que ele já não ouvia, porque o saco estava cheio e não cabia lá mais nada desdenhoso ou ofensivo. Trazia no sangue o “batuque” e não se ocultava para exercer os seus dons, em qualquer lugar, com instrumentos improvisados, ou simplesmente o estalar dos seus dedos chamando-lhes os moradores castanholas, que já não ouviam, porque a miséria é rouca, assim como a pobreza é mouca surda e muda… Tinha um nível de educação bastante elevado, grande inteligência, que nos fazia crer, o ter supostamente pertencido a uma família intelectual, e o destino ou a má sorte o empurrou para um calvário que durou grande quantidade de anos. Havia quem contasse que tinha pertencido à alta sociedade, e um esgotamento o atirou para o abismo. Via-o todos os dias, logo pela manhã, e, dava-lhe as boas horas às quais respondia com um grande sorriso nos seus lábios grandes e dilatados, e um batuque improvisado. Perguntava-lhe se já tinha comido alguma coisa, e, quando não respondia, sabia que não. Como estava na casa de acolhimento sempre tinha nos bolsos cinco coroas, e dirigia-me à taberna do Álvaro, pedia um molete de pão e um copinho de água ardente que ele saboreava como carões de noz. A pobreza e a miséria andavam de mãos dadas pela nossa terra, mas a esperança jamais morreu…

Recordo-me de um incendio que houve lá para trás do cabeço cercado, os sinos a tocarem a rebate, e as pessoas correndo para o local a fim de impedir que o fogo devasta-se um prédio de centeio e o arvoredo que o envolvia. No nosso grupo de três ou quatro pessoas que corriam em direção ao sinistro, incluía-se o Camilo que passando junto da casa do tio Couceiro, e uma das filhas veio à porta para saber o que se passava, ele dirigiu-lhe a palavra nestes termos: - Ó Adosinda guarde-me para aí estas duas coroas não as vá perder no incendio…

Pode parecer um ato de mera importância, mas se refletirmos bem, todos os tostões são importantes para quem não tem nada. Na sua terra de onde era natural, com certeza havia pessoas a banharem-se em ouro, mas são cem vezes mais os que não tem o pão nosso para cada dia, não tem roupas para vestir nem água para saciar a sede…. Simplesmente porque nasceram.

 


 

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