terça-feira, 13 de outubro de 2020

SR. VIDAL


POR ANTÓNIO LOBO ANTUNES

 "Desde que os meus pais morreram a casa calou-se. Nem sequer a torneira faz barulho no lava-loiças de alumínio, os meus chinelos, quando muito, segredam no soalho, às vezes lá escuto um suspiro ao sentar-me no sofázito da sala, mas deve ser das molas da almofada ou se calhar são os meus ossos e as molas ao mesmo tempo porque não estou muito certa de que material sou feita desde que estou sozinha. Parece-me que sobretudo sou feita de silêncio, com um suspiro mudo dentro. Passos no andar de cima mas de quem se ninguém mora no sótão? A minha mãe perguntava-me

– Quem será?
com os olhos, respondia-lhe
– Não sei
porque o senhor Vidal, o antigo inquilino não morava com ninguém. Às vezes, quando muito, escutava-o
– Ai eu
num eco amortecido.
Depois o rim levou-o para o hospital e não tornou mais. Soube pela viúva do rés do chão, que faleceu e também porque vieram uns primos levar-lhe os tarecos. Pouca coisa dado que coube tudo numa furgoneta pequena, com o sobrinho do senhor Vidal a juntar uns caixotezinhos lá dentro, um ou outro com um tilintar de loiça e de talheres e mais nada. O sobrinho do senhor Vidal recomendou ao chofer
– Cuidado porque há aí coisas que se quebram
o chofer respondeu
– Para o que elas valem não se perde grande coisa e partiu aos solavancos a badalhocar inutilidades.
O senhor Vidal era gordo e quase não falava, dizia que sim ou não com a cabeça, numa espécie de sorriso que não chegava a sorriso, ficava a meio caminho entre a seriedade e a educação. Por mim gosto de pessoas discretas que não mostram o que sentem, embora o senhor Vidal volta e meia um suspiro. Creio que nunca lhe escutei muito mais do que um suspiro, algo como uma espécie de balão que se esvazia um bocadinho e era tudo. Esvaziava-se um bocadinho, de facto, mas continuava gordo. Usava óculos com a lente do lado esquerdo mais grossa e o olho por trás dela menos nítido. Pergunto-me se teria algum problema desse lado da vista mas nunca o interroguei por timidez. Os meus pais também não, éramos uma família discreta. Fomos sempre uma família discreta, respeitadora. Houve uma época em que me pareceu que o senhor Vidal dava a impressão de se interessar por mim porque, depois de nos cruzarmos sentia qualquer coisa a pesar-me nas costas. Depois pesou menos, depois deixou de pesar. Pode ser que me tenha enganado, a gente às vezes inventa palermices. Deve ser de nos sentirmos sozinhos. O meu pai, por exemplo, achava que nos sentimos sempre sozinhos.
A minha mãe respondia-lhe
– Ainda aqui estamos os dois
um bocado ofendida, acho eu, e o meu pai, que detestava discussões, dizia
– Pois é
e calava-se.
Faleceu na farmácia ao pesar-se, quer dizer estava a calcular a densidade avançando e recuando o cursor e nisto veio por ali abaixo devagarinho.
O sujeito da ambulância informou-nos que tinha sido um aneurisma que é quando uma bolha rebenta na cabeça. A autópsia disse que não, que o coração tropeçou em si mesmo e pronto, dado que às vezes até o coração tropeça em si mesmo e pronto. É possível, não sei, quem não tropeça em si mesmo nesta vida?" (2018) «O SR. Vidal»

Sem comentários: