Era um homem extraordinariamente generoso… o seu sorriso
penetrava os corações agrestes dos que o rodeavam… conquistava com uma calma
desconcertante o universo dos que o conheciam… generoso, convivial,
trabalhador, amante dos bons princípios… um homem íntegro… um pai exemplar, que
jamais se esquivou às obrigações familiares, sacrificando o seu próprio sistema
de vida, quando como tantos outros, em tempo útil, poderia dar o salto para o
estrangeiro onde existiam melhores recursos de vida. Eram tempos difíceis,
sobretudo para as famílias numerosas. Oito irmãos, filhos de pais lutadores,
cujo património herdado, dava apenas para sobreviver… mas, nunca lhes faltou
nada em casa… fruto do empenhamento, dedicação, lealdade, educação e sobretudo sacrifícios
no dia-a-dia, e num cerco rural de escassos e magros recursos.
Patriota
incondicional, foi mobilizado para o Ultramar onde cumpriu o dever cívico,
guardando
sequelas de uma guerra, da qual, como tantos outros,
discordava, mas… não teve o direito de escolher, nem de manifestar a discórdia…
Conheci-o já quando ele tinha uma vida confortável, apesar
das contrariedades, dos numerosos sacrifícios impostos pela luta constante de sobrevivência,
dos frios invernais, do suor derramado em dias tórridos de verão, lá para os
lados do Vale-Grande, entre calhaus, e no bolso uma “côdea” de pão duro
servindo-lhe de merenda, enquanto não se punha o sol e voltava para casa já na
escuridão da noite, atrás de duas vacas jungidas, que a passos lentos,
percorriam estes caminhos sinuosos, que conheciam de cor.
Confidenciava-me ele em conversas, na sua casa, à volta de
repastos copiosos… - Eu nunca fui para a França… mas, em minha casa há de tudo,
e nunca deixei que faltasse nada aos meus filhos… casei-me sem um tostão…. Trabalhei
muito! Hoje, apesar de não estar rico, tenho uma casa que mandei construir para
abrigar a minha família, que é o que tenho de mais importante na vida – foi muito
duro – continuava ele nas suas conversas das quais se podia sentir orgulhoso!
As suas confidencialidades nunca excediam a descrição… não invejava este ou
aquele no ter nem no ser… encarava a luta com uma força sobrenatural… amanhecia
apenas, com temperaturas altas ou baixas, chuva, neve ou vento, lá ia ele
tratar dos animais, preparar o trator para uma possível saída… também subia as
numerosas escadas dos pais com lenha para acender o lume, quando eles começavam
a dar índices de idade avançada.Recordo hoje, com grande emoção, o seu lado supersticioso
referente a certos gestos ou factos, a felicidade com que abraçava a vida, e o pessimismo
da fatalidade que lhe viria a dar razão.
- Coitado de fulano… está velho, e anda tão mal – dizia eu,
ao que ele sempre acrescentava: - Ainda podemos nós ir antes…
Era um duro dos duros… jamais contraira uma doença a não
ser, ocasionalmente gripe ou constipação. Queixava-se de vez em quando de uma
dor nas costas, proveniente de uma queda que tivera no Ultramar – dizia ele.
Um certo dia começou a sentir uma dor morta na perna direita…
- reumatismo ou caruncho – brincava ele ao descrever esta inesperada
contradição…
Mas, a dor acentuava-se cada vez mais com o decorrer do
tempo. Especulava-se ser um prognóstico do povo, daqueles que passam com “mezinhas”
benzimentos e outros meios que os antigos usavam e com eles saravam.Como nada resultava, mas ele nunca dava parte de fraco,
encostado a uma bengala, não deixando transparecer qualquer suspeita do
calvário que estava vivendo, confidenciava apenas à noite com a esposa inquieta
pela perca de peso e de visão.
Entretanto uma cunhada enfermeira, marcou-lhe uma consulta,
e análises clinicas observando a anormalidade do caso. Mesmo nós que convivíamos
com ele de perto, não suspeitávamos aquela
evolução tão rápida da doença. Começaram a surgir sintomas indicadores tais
como: Fomos à vindima e ele disse-me a mim para trazer a carrinha, coisa que
não faria tendo todas as suas faculdades; ia virar o trator e embateu contra a
parede.
Poucos dias depois, estávamos no cabanal a fazer a água
ardente, e durante a hora do almoço novo incidente que levou a esposa a
telefonar para a cunhada contando-lhe o sucedido, a qual tratou imediatamente
do seu internamento. Voltou para junto de mim e dos potes da água-ardente e
apenas me disse que ia ser internado.
- Levo-o lá eu propus imediatamente.
Para quê tanta presa? – Respondeu ele – vem cá o cunhado
buscar-me… e para me encher do hospital ainda vou a tempo…
Dois dias depois fui visitá-lo à enfermaria 5 de medicina.
Fiquei estupefacto, apreensivo e com o coração num punho perante a visão
daquele que tão rapidamente se tinha transformado num autêntico legume. As lágrimas
inundaram-me os olhos, senti que o coração se me apertava, que o ritmo cardíaco
acelerava, que o receio do pior me traísse, que ia soltar gritos de quem não aceita a fatalidade do
destino… porque era injusto… apesar de ser sempre injusto… ele não merecia…
ninguém merece… mas não é verdade que quem decide, decide bem. Somos todos
mortais pelo que devemos aceitar a justiça divina – gritava-me a consciência.
A enfermaria estava repleta de pessoas amigas que vieram
visitá-lo, e, como se já não estivesse ali ninguém opinavam barbaridades
deixando-me ainda mais confuso e nervoso.
Novas análises foram ordenadas para o Porto, o médico não se
podia prenunciar… temia-se o pior. Nova visita alguns dias depois, desta vez
restringida aos familiares. Fiquei surpreendido quando em voz alta disse para
as minhas filhas: vou até lá fora tomar ar..
Fumar um cigarrito… - respondeu ele.
Uma ténue esperança
Invadiu o meu
espírito moribundo, acompanhado de imenso prazer ao verificar que a sua lucidez
se mantinha intacta. Rezei uma oração pedindo ao senhor que tivesse compaixão
daquela família.
Toda esta esperança se decepou ao descer as escadas, no
final da visita e o médico que o tratava nos chamou para nos dar o diagnóstico
fatal.
A vida tem destas crueldades, que tanto nos fazem sofrer… não
escolhe… vagueia ao acaso selecionando aquele que o destino marcou… ó quão difícil
conceber nem aceitar o julgamento divino! Ò quanto ele gostaria brincar com os
seus maravilhosos netinhos que apenas o conhecem pela foto… sacrificou-se tanto
para eles e por eles e só lhes pode deixar como recordação a imagem de um homem
com H grande!
Partista num Outono cinzento… ainda sinto o perfume das roupas
que te levei àquele lugar frio, mórbido, onde os calafrios apenas me
transmitiram um estado de revolta para com a vida que te roubaram…
Foste e sempre serás para mim um homem extraordinário
Que a tua alma descanse ma paz do Senhor
2 comentários:
Tonho
Uma homenagem muito bonita. Certamente está a ser-te agradecida do Céu.
Beijos
Obrigado Fátima. Era uma pessoa fantástica... tinha apenas 50 e poucos anos, e esta doença má, levou-o com uma rapidez medonha.
Não somos nada neste mundo. Beijos
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