quinta-feira, 24 de abril de 2014

Tentações perigosas


 Conheci-o, era eu ainda um puto, daqueles que nasceram nas casas sem quartos… dos que dormiam em camas de tábuas apodrecidas pela urina que se escapava do cueiro, velho e usado, por outros putos… dois para os pés e dois para a cabeceira… debaixo de um teto sem forro, por onde se podia ver, através das telhas esburacadas, os raios solares penetrar no verão, entrar no Inverno, a neve fina e seca, que o vento puxava velozmente, chamada de “furaqueira”… onde se tinha de andar, sobre soalho corrompido pelos bichos, com o cuidado de quem pisa em ovos chocos… e nas paredes construídas de pedra e barro não havia quadros… ornamentavam-nas as aranhas com suas teias, enquanto o zumbido das moscas e outros insetos, que circulavam livremente, substituíam as famosas sinfonias de Beethoven, Mozart, Bach… A candeia a petróleo e a vela de cera, ocupavam os lugares dos candeeiros de cristal, cobre, ou ferro forjado… Não havia guarda-louça, nesta sala, ampla, velha e fria… porque também não havia louça… apenas o prato já com pouco esmalte… o garfo de ferro ao qual faltavam “dentes”… a malga de barro “ratada” nos bordos… o copo de alumínio contundido… Havia uma arca grande, herdada dos avós paternos, onde se guardavam, diversos e variados produtos, úteis e indispensáveis para a sobrevivência.
Vivíamos separados por uma larga parede, e uma porta trancada definitivamente, quando foi doada, esta parte da casa a meu pai, seu irmão, como prenda de casamento pelo avô.

O tio Belmiro não casou. Não sei as razões. Jamais foi cortado o cordão umbilical entre ele e os pais. Com o envelhecimento dos seus progenitores, foi ele e  irmã solteira, quem tomaram as rédeas da “charrete” à deriva, tendo sido empenhadas, por umas “cascas de alho” a quase totalidade das propriedades valiosas, fazendo a felicidade dos oportunistas, ao mesmo tempo que engrandeciam o património, a despeito das fraquezas, do vicio, da irresponsabilidade.Possuíam ainda um par de vacas, vestígios do desaire, com as quais fabricava, meia dúzia de terras, lá para os lados do Fetal, Cobinha e  Eiras.
Com os outros irmãos “desaninhados”, o tio Belmiro trabalhava duro, empenhando-se na criação dos sobrinhos, mas, sobretudo honrando a casa, que em tempos fora das mais abastadas da Aldeia. Cruzava-me com ele, no caminho, debaixo do grande “cabanal”, que protegia das intempéries, aqueles que passavam os grandes portões de madeira, abertos de par em par, e, raramente me falava… carismático ou prazeroso, não conseguia definir com absoluta certeza a personalidade que o caracterizava. Um certo dia, resolveu ir à feira do Chãos, acompanhado de dois amigos agricultores. De volta, já a noite caía, a pés, pelo caminho das Santas Engrácias, passando pela quinta do Sepúlbeda, Múrio, e chegados a Val-de-Piteiras, o tio Belmiro sentiu a necessidade de urinar, pelo que disse aos companheiros que fossem andando… chegavam já quase à Ribeirinha e o amigo sem voltar.
- Estranho! Não achas? Temos vindo num passo tão lento… e, ele nunca mais chega!
O outro mostrou também uma certa apreensão, e ambos resolveram retroceder caminho, à procura do companheiro. Entretanto escurecera, de forma que não se via um gato a um metro de distância. Tropeçando, num passo apressado, chegaram ao local onde se tinham separado dez minutos antes, do companheiro de viagem. Uma visão lamentável, terrível, incrédula se 
lhes deparou… o corpo do tio Belmiro jazia estatelado no chão convulsivamente. Levantaram-no, mas este tremia como varas verdes, gaguejando frases sem sentido, tentando a todo o custo libertar-se dos braços dos amigos, os quais não conseguiam chamá-lo à razão. Afectado psicologicamente, talvez tentado maquiavélicamente pelo demónio… dizia-se mais tarde, ser obra de bruxedo.
Nessa mesma noite, já em casa, o tio Belmiro tentou por fim à sua vida. Salvou-se porque foi encontrado, e a tempo, levado para o hospital. Diziam na Aldeia que o homem teria sido possuído por espíritos malignos, lá para os lados de Val-de-Piteiras…
Poucos dias depois, segunda tentativa de suicídio, ingerindo o fungicida, de dois frascos, com alto nível tóxico. O tio Belmiro, talvez pressionado pelo cansaço psicológico, conseguiu partir, para o outro lado, deixando à sua volta, a tristeza para além da dramática tragédia, e um ponto de interrogação que continua pendente.

HOMAGEM SENTIDA DE UM PUTO QUE JAMAIS ESQUECERÁ. Descanso eterno para a sua alma.

5 comentários:

Fátima Pereira Stocker disse...

Tonho

As memórias mais antigas que tenho da casa dos teus avós coincidem com os momentos finais do tio Belmiro. Ainda hoje se me revolvem as entranhas quando o lembro, deitado na cama, desfigurado, com a minha mãe a tentar fazê-lo beber azeite, para que vomitasse. Eu era muito pequena, mas essa imagem não a consigo esquecer.

Há coisas que se não compreendem e essa é uma delas. Sabia que ele tinha feito outra tentativa, mas não me lembrava que fosse tão pouco tempo antes, nem sabia das circunstâncias.

Curiosamente, a imagem que tenho da casa dos teus pais é uma imagem exterior: o teu pai, sentado na varanda, com uma manta por cima, e a tua mãe, de pé, ao lado dele. Dizem-me que deve ser da altura em que teve o acidente e se magoou nas pernas.

A casa dos meus pais não deveria ser melhor do que a vossa. No entanto, quando penso nela, só me lembro de coisas boas, o que me faz tingir o quadro com outras cores. Foi assim tão duro viver ali?

Beijos

antonio disse...

Não foi fácil viver numa casa com cozinha terreira, e uma sala ampla que servia de tudo, inclusive de dormitório... relativisando, tudo é uma questão de costume, pelo que não escrevi isto para julgar, e muito menos com a pretensão de que tivessem pena do que foi a minha infancia... gosto da franqueza, da verdade, penosa ou não, é o destinado, e, ninguem tem culpa disso... detesto aquelas pessoas, que esquecem, ou fingem esquecer o que foi o seu passado,complexos que não me habitam. Também relato as coisas boas e bonitas que fizeram parte integral do meu viver, e foram tantas!
Já não me recordo do acidente da perna de meu pai, que se afectou e teve consequencias desastrosas. Compreendo que te tenha ficado na lembrança, aquela varanda onde nos estendiamos ao sol, passeando apenas por metade dela, estando a outra parte a ruir.Foi uma casa como tantas outras... por ser lá que eu nasci apraz-me que seja alguém da familia a comprar as ruinas.Gostaria dizer-te com toda a sinceridade que o meu comentário, com caracter de agressividade, não tem nada a ver com a tua gentileaza nem com o que escreveste no teu... não interpretes os meus desabafos de outra maneira que não seja apenas sentimentos do passado... e, quem não teve uma infancia complicada noutros tempos?
O tempo que separou as duas tentativas de suicídio do tio Belmiro podem não corresponder à verdade absoluta, na minha memória foi assim. Tambem me recordo da tua mãe, tia Zulmira e outras mulheres a tentarem salvá-o... foi tão doloroso!
Imensamente grato pelo teu comentário, Beijos

Fátima Pereira Stocker disse...

Tonho

Não vejo agressividade nenhuma no teu comentário. Ninguém da nossa idade, em Rebordaínhos, teve uma infância fácil e quem disser o contrário ou mente, ou tem memória fraca, coisa de que nem tu nem eu padecemos.

Beijos

antonio disse...

Obrigado pela compreenssão... ando um pouco confuso e baralhado. Ontem minha mãe fazia 87 anos... sempre lhe levei um bolo e uma prenda, que me agradecia com um sorriso terno, encantador! Estive na sua campa, já não sei quanto tempo... enfeitei-a com lindas flores, duas velas ardentes, mas, não lhe vi o sorriso...
è tão doloroso... Beijos

Fátima Pereira Stocker disse...

Tonho

Não lhe viste o sorriso mas sentiste-o no teu coração. Isso também importa.

Beijos