quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Missão cumprida

  Todo ser humano necessita extrair, de vez em quando, aquele bichinho que o microscópio não enxerga, nos pesa na consciência, ou martiriza o coração, se esgueira como enguias… e o sentimento supera a discrição, a humildade sujeita-nos momentaneamente a exigências formais onde só existe uma razão; a verdadeira: Aquela que passamos a vida a esconder para salvar as aparências… simulamos ironicamente o que queremos ser, mas, chega o tempo em que a corda parte… resistiu tanto tempo!
Era uma consulta de rotina, com o médico de família. A Dra. Pareceu-me mais atenciosa que de costume – todos nós temos dias assim, de melhor disposição – pensei enquanto folheamos discretamente o processo clinico. E o verdadeiro tema de conversa inesperado iniciou com o ruido de três pancadas suaves na porta, e a abertura da mesma, aparecendo a enfermeira, com a informação de que uma senhora paciente, utente sua, se sentia mal…
- Não posso recebê-la… estou em consulta… que aguarde.
E a enfermeira apreensiva lança-me um olhar de compaixão, como um SOS, ao mesmo tempo que me pergunta:
- O senhor viu-a… ela parecia realmente mal?
- Se está mal porque não se dirigiu diretamente para a urgência? Encaminhe-a para lá…
E a enfermeira aprestava-se a desistir da sua persistência, desiludida e frustrada, por não ter conseguido que a pobre mulher recebesse ali os primeiros socorros. Saiu e fechou a porta, lentamente levando consigo a revolta de quem não é ouvido em defesa de uma boa causa…
- A senhora parecia realmente mal… – disse eu num tom de voz suplicador.
E a razão aliada com a justiça venceu. A médica levantou-se – enquanto a incentivava com estas palavras; vá que eu tenho tempo… - e correu atrás da enfermeira. Administraram-lhe os primeiros socorros, assentaram-na numa cadeira de rodas, e enviaram-na com uma enfermeira para a urgência, onde telefonicamente falou com um colega e lhe explicou o caso e a patologia da doente.
Quinze minutos depois, quando voltou, olhou-me olhos nos olhos, e parecia querer justificar a sua hesitação…
Mas antes que ela balbuciasse palavra, disse eu:
- Não se pode ser velho!
- Pois não – retorquiu com os olhos inundados de água, que me sensibilizaram ao ponto de sentir também uma lágrima deslizar lentamente pelas faces, cujos óculos testemunhavam apenas, não podendo exercer a sua opacidade.
Às nossas mentes tinham chegado as imagens dos nossos pais, e talvez a confirmação do que nos espera futuramente…
Conversamos durante tanto tempo que perdemos a noção. O tema englobava o passado e os nossos progenitores… ficaram de lado os preconceitos e o pudor, e, como dois miúdos inocentes, contamos parte da história que marcou as nossas vidas.
Oriundos de uma Aldeia do concelho de Macedo de Cavaleiros, seus avós maternais possuíam uma casa de lavradores abastada, e uma numerosa família que enviaram estudar, nos tempos salazaristas, salvo uma rapariga, a mãe da nossa médica, não por falta de meios ou discriminação, mas porque segundo a lógica de critérios dos antepassados, uma rapariga nunca deve abandonar o lar maternal, para velar pelos mais velhos em seu tempo, e vigiar os criados ao serviço da casa… esta senhora jamais demonstrou ressentimentos, cumprindo com os valores e princípios adquiridos, em detrimento de estudos que lhe poderiam ter dado outro estatuto na sua vida ativa; também não manifestou arrependimento pelo cumprimento do seu dever de filha. Casou com um homem honesto, trabalhador, e que sempre lutou pelo bem-estar das três filhas, enviando-as a estudar para Bragança, onde estiveram hospedadas, numa das duas residências existentes de um lado e do outro da praça da Sé, cujo rigor disciplinar era bem conhecido das estudantes dos anos 80. Estudiosas, empenhadas e responsáveis, as três raparigas, terminada a escolaridade secundária, inscreveram-se nas universidades do Porto e Coimbra, de onde saíram diplomadas, em germânicas, medicina, e advocacia. Seu pai, recebeu um dia um telefonema da filha mais nova anunciando-lhe o resultado do seu último exame, que lhe permitia exercer, a partir daquela data, a profissão de advogado, ao que ele respondeu soltando um suspiro: MISSÃO CUMPRIDA.
Pelo caminho ficavam as dificuldades das raparigas, nas suas deslocações, a Coimbra e ao Porto, em tempo de férias, pela linha de caminhos-de-ferro do Tua, em invernos medonhos, enquanto o coração dos seus pais batia a duzentos km hora, apertava enquanto não recebiam a notícia de que tinham chegado bem ao destino. O pai falecera – e novamente os olhos da Doutora se inundaram de lágrimas – com o sentimento de ter cumprido a missão que o dever de pai lhe impunha. A mãe, de 92 anos de idade, vive com a filha médica, tendo as três irmãs chegado a um comum acordo, após ponderarem, a possibilidade de a institucionalizar num lar particular, ao qual renunciaram em reconhecimento pelo que tinha feito por elas e pela própria mãe, e conscientes de que estavam a trair um sentimento nobre, enviando aquela mãe carinhosa para uma prisão da qual guardariam os remorsos durante o resto das suas vidas.

Contei a minha história. A de uma mãe carinhosa de filhos e netos. Que sofreu, e foi feliz junto daqueles que tanto amava, e eram tão numerosos! Tentei tudo para mantê-la na sua pobre casinha, até que uma manhã vim encontra-la estatelada no soalho junto do leito, e perante a recusa de a senhora que cuidava dela em vir dormir para a sua casa, não tendo outra alternativa, resolvi institucionaliza-la, continuando a ver, a todos os instantes da minha vida, aquele olhar suplicante de não a deixar naquele lugar mórbido, frio, aterrorizador, onde as aparências são tão diferentes da realidade! Onde esperam dia após dia o fim do calvário, com o sentimento de serem abandonados pelos entes queridos, tratados como estátuas ou pior, como trapos velhos, sem remorsos nem sensibilidade humana, como contam as empregadas que lá trabalharam… mudei-lhe as fraldas, mas, não cumpri a minha missão. Sei que me espera um tratamento idêntico, talvez assim possa aliviar os remorsos de ter tomado a decisão, que tantos filhos tomam: a mais conveniente.

2 comentários:

Anónimo disse...

boa noite António.
é formidável a forma como escreves e adjectivas as frases, exprimes-te ao limite do humanamente possível.
leio os teus devaneios com muito entusiasmo e revejo-me em muitos deles.
nota-se perfeitamente que és uma pessoa culta.
é para mim, como natural de Murçós, uma mais valia ter pessoas como tu ai a residir.
grato pela amizade que reciprocamente me tens demonstrado.
abraço.
deste amigo Vítor Fernandes.


antonio disse...

Olá Vitor! Tantos elogios que fiquei benfiquista sem qurer! Gosto imenso de ler e escrever, lá isso é verdade! Todos os sere humanos tem pontos em comum... alguns tentam dessimulá-los, outros gostam acimilá-los a personagens elequentes, mas como diz o francês: "cest la vie"! Também tenho muito aprezo e consideração por ti... aliás já tinha pelos teus pais, sobretudo do teu pai, cujas recordações guardo como de um homem simples, honesto e frontal. Contigo, brinco por saber teres sentido de humor, sou amigo dos meus amigos, nada de extraordinário... Abraço e bem-hajas pela visita e comentário ternulento.