sábado, 13 de dezembro de 2014

Memórias

Decorriam os anos 60. Era então “o puto de vale-dos-amieiros” adotado pela casa grande, branca como neve, recentemente construída por um homem, oriundo da simpática Aldeia de Soutelo Mourisco, a quem poderiam chamar o banqueiro do povo, se nos referirmos às atividades praticadas, quando ainda possuía a tasca no centro da Aldeia de Rebordainhos, por onde passaram almocreves, forasteiros, e mesmo homens de reputação que a má sorte tinha conduzido ao colapso, vergando-se agora ao peso de um orgulho manchado pela vergonha e desprezo, porque os amigos só batem à vossa porta enquanto tudo vai bem… vinham pedir dinheiro a juros exorbitantes ao Sr. Ernesto, mediante fiança de duas pessoas possuidoras de bens superiores ao empréstimo, sujeitas ao pagamento das prestações em caso de falha do devedor, cujo documento passado no notariado chamavam “Letra”. Havia milhares de “letras” encafuadas naquela gigantesca “burra” (cofre) de ferro fundido, no aposento que servia de escritório, onde pessoas restritas tinham acesso, e a combinação para a abertura era guardada exclusivamente pelo próprio, não fosse o diabo  armá-las! Enriqueceu este homem com as 
gotas de suor dos malfadados, e em 1962, quando já morava na sua rica casa acabadinha de construir, adoeceu, falecendo nesse mesmo ano, deixando para trás os adquiridos honesta e desonestamente, com remorsos de consciência ou sem eles, não me sendo possível pronunciar, nem sequer fazer um julgamento, mesmo tendo assistido ao seu fechar de olhos definitivamente, junto do leito onde o P.e João lhe administrou a extrema-unção, e eu de bata branca e a cruz na mão o assisti.
Nesse mesmo ano, tinha o P.e João abandonado a casa de residência paroquial, situada junto do cruzeiro, próxima da Igreja, e foi viver com a mãe, uma santa mulher, a irmã D. Denérida na casa grande da qual era proprietária por herança, que exercia a profissão de professora primária em Espadanedo, e só vinha passar os fins-de-semana e férias. A pequena Angelina, oriunda de Penhas Juntas, foi, tal como eu, adotada para acompanhar a Sra. Professora nas suas deslocações por caminhos enlameados, sinuosos, e extremamente frios através da serra Mourisca onde jaz a fraga dita do “berrão” e as intempéries assustavam o mais corajoso dos humanos. As minhas funções eram de acompanhar o Sr. P.e, fazer os recados da casa,
 enquanto fermentava a ideia de ir a estudar para padre, desejo profundo da bondosa e caridosa D. Denérida, cuja reputação como professora não foi das melhores, segundo contam alunos seus de Espadanedo e arredores, e ainda os de Murçós que fizeram exames de 3ª e 4ª classe com ela, porém todos nós sabemos que a disciplina e o rigor existentes nestes tempos deram bons frutos, embora com alguns exageros…Como humanista foi , tal como a mãe, uma madre teresa exemplar, ajudando os pobres, mas sobretudo, ao retirar todo o efeito ás centenas de letras, que jaziam no fundo da “burra” de ferro, queimando-as  após a morte do seu marido. Trabalhavam na casa, no serviço doméstico, duas raparigas, ambas naturais de Penhas Juntas, que acompanharam o P.e João da Trindade Alves após a sua transferência
 
solicitada para vir substituir o P.e Amilcar, transferido recentemente por razões de mera importância, a D. Irene que casou e seguiu a sua vida, e a Luzia solteira, competente, desenvolta bastante agarrada á pouca família que lhe restava, um irmão por parte da mãe, que permanecera em África após o serviço militar, e escrevia raramente para dar noticias, e a própria mãe a seu encargo quando já velhinha… os caseiros, durante alguns anos, a tia Isaura e o marido, tio Bernardino, homem de tempera que lhe fazia a vida negra com maus tratos, como aliás a maioria dos homens destes tempos rudes, a fazia levantar par ir trabalhar no dia seguinte a um dos vários partos, e ela obedecia sem manifestar fragilidade, nem protestos que  só lhe podiam acarretar mais dissabores… Trabalhava, ou melhor, jardinava, quase por caridade, o Sr. Guerra, já com certa idade, carenciado, vindo não se sabe de onde, com quem tive conversas de adolescente para um homem da escola do mundo, que sempre me deu bons conselhos, e me prometia que um dia seria alguém na vida…
Uma cavalgadura de grande porte, manhosa e má como as mulas, servia para o transporte dos géneros alimentícios, dentro de duas alforges, que eu todos os fins-de-semana, ao Domingo pela tarde, ia acompanhado da moça e da professora, levar a Espadanedo, á casa de funções contígua à escola junto da igreja, onde uma rapariga demente, despida e descalça vinha vezes sem fim puxar as cordas do sino, e me metia medo, obrigando-me a fugir daquele local ás quatro patas, depois da missão cumprida. Mais tarde soube que teria sido internada, mas guardo ainda hoje na minha memória a imagem de uma rapariga selvagem de cabelos soltos ao vento, eriçados e sujos, completamente nua, rosto coberto de raiva que nem a sujidade podia esconder… era a demente que todos conheciam salvo eu…
Montado naquela cavalgadura parecia um pintassilgo na ponta de uma árvore! Um certo dia ao chegar perto se Soutelo Mourisco deu-lhe a pancada que tinha de vezes em quando, e não fosse o freio que apertei com todas as minhas forças ter-me-ia deitado para o chão, tal o estado de esquizofrenia, se assim se pode dizer de um animal, a tornou completamente louca, saltando aos pinotes, levantando as patas da frente, abrindo grande a boca. Capaz de me matar, furiosa como um touro bravo daqueles que se veem nos filmes Americanos. Consegui puxar a corda e prende-la a um cerdeiro junto do caminho, e sabendo que o tio Ernesto tinha um irmão a residir em Soutelo a quem chamavam de nomeada o “soquinhas”, perguntei pela casa dele e veio em meu auxilio, não podendo fazer grande coisa para domar o animal, propondo-se a guarda-lo até ao dia seguinte numa das suas estrebarias, e que disse-se ao Sr. P.e para mandar um adulto recuperá-lo. Estas e outras peripécias passadas em Soutelo e Espadanedo, que conheci nestas circunstâncias enquanto puto, não previam a minha vinda a residir para perto onde hoje tenho amigos, e recordo com nostalgia estes tempos loucos da minha adolescência.

4 comentários:

Fátima Pereira Stocker disse...

Tonho

As nossas memórias são o nosso cofre-forte. É nelas que vamos buscar as forças para prosseguir a jornada da vida e ensinamentos para discernirmos o bem do mal. Hoje voltei a aprender muitas coisas contigo. Obrigada por isso.

Beijos

antonio disse...

Olá Fátima! Tens razão, como sempre... eu cá vou rascunhando para eliminar o isolamento pelo qual optei por razões pessoais. A azeitona apesar de dificil, fez-me bem passar no campo o dia todo entretido, pois já não me apetecia ver nem fazer nada.
Obrigado pela visita e se não nos virmos no Natal desejo-te desde já um Santo dia passado em companhia dos que te são queridos. Beijos

Serrana disse...

Sr. António,

Eram tempos muito difíceis os de antigamente! Mas, recordo-os com muita saudade. Lembro-me muito bem da Luzia, da Irene e do Sr. Guerra, trabalharem em casa da Sr. D. Denérida, assim, como me recordo também da taberna do Sr. Ernesto. Mais tarde, penso que foi quando a Irene saiu para casar, quem ocupou essa vaga foi a Angelina. A Senhora Isaura, passou muitos maus bocados o Sr. Bernardino, passou! Eu andava lá por casa deles, pois era amiga da filha mais velha deles, da Denérida.
Pensava, que o Sr. Ernesto, tinha gozado a casa nova mais tempo. O ditado lá diz. " ninho feito, pássaro na coba".
Continue a maravilhar-nos com as suas memórias Sr. António! A si, faz-lhe bem em escreve-las, e a mim faz-me bem lê-las, pois as suas memórias também são as minhas.
Um grande abraço

antonio disse...

Olá amiga serrana! Vou chamara-lhe pelo pseudónimo que escolheu respeitando a sua opção, mesmo tendo a certeza que nos conhecemos bem... esse(Sr.) creio estar a mais... se realmente era amiga da Denéreida que tinha dois ou três anos menos que eu, por certo nos conhecemos bem?
Quanto aos meus rascunhos, estou-lhe imensamente grato por dedicar o seu tempo a ler...é verdade que vivemos um pouco das nossas memórias dos tempos que não fomos previlegiados, e, podemos por vezes saltar episódios, como o do pouco tempo que o Sr. Ernesto gozou a nova casa,tenho como ponto de referencia a minha chegada àquela casae recordo-me da antiga com o carismático pátio e as escadas de cantaria assim como a taberna que creio só lá ter entrado uma vez com os meus 6 anos.
Ficarei eternamente grato à Sra. Virginia minha segunda mãe durante 5 anos, à D. Denérida pela bondade mas sobretudo porque tentou fazer de mim a seus custos um representante de Deus na terra, de onde guardo educação, principios e valores apesar do seu sonho se não ter concretizado, ao P.e João pelo que me snssinou da vida, e às numerosas familias desfavorecidas ou não cuja estima e consideração nunca arredaram pés da minha memória.Rebordainhos será para sempre o berço que me embala e me torna feliz. Bem-haja pela visita, receba os meus cumprimentos respeitosos