Por
ANTÓNIO BRAZ PEREIRA
Nota: este texto, escrito por mim, já foi publicado noutro blog que os
gestores congelaram, sem qualquer referencia à minha colaboração, pelo que me
sinto com o direito de voltar a publicar sem pedir o consentimento.
Rebordainhos foi, desde a
minha lembrança, uma aldeia bastante populosa, apesar das grandes dificuldades
socioeconómicas, inerentes parcialmente da posição geográfica e da adesão total
ao Cristianismo, na imposição de valores e princípios morais e religiosos. Nas
décadas 50/60, a emigração para o Brasil, África e Europa facilitou de alguma
maneira a vida aos que ficaram. Contudo, a despedida era um calvário para os
que partiam e para os que ficavam… havia acompanhamento geral até à saída da
Aldeia, choros e gritos como se fosse um adeus para sempre.
As circunstâncias básicas, a carência de meios contracetivos, o magro
conforto e outros componentes, tornavam a natalidade num fardo pesado e
complexo para o agregado familiar. Houve mulheres que pariram mais de vinte
filhos, ainda que só parte deles viesse a sobreviver! Treze, foi o número que
superou a média geral de 7/8. Os partos eram domiciliares e as parteiras
designadas para o ato aprenderam as técnicas, como os miúdos aprendem a andar
ou a falar: pela força das circunstâncias. Contudo, dada a falta de meios,
podiam ser consideradas geniais. Existiram casos onde a mãe biológica, por
diversas razões, deixou de amamentar o bebé e outra mulher, em situação de
pós-parto, substituiu-a no aleitamento.
Chegava o batizado, e os padrinhos, nobres e ricos de preferência, viriam a ser
tratados por “compadres”. As minhas recordações infantis têm como ponto de
referência os cinco anitos… capturando “azeiteiros” na poça da fonte grande.

A partir dos seis anos, a catequese, as catequistas, Lúcia, tia Ester e Aninhas
da Eira, tiveram ações preponderantes e de grande eficácia na educação de cada
um de nós, para além da formação teológica religiosa. A tia Lúcia, incansável
desde sempre, na ajuda aos arranjos dos altares, cantares, lavagem das toalhas,
enfim… merecia a medalha de fidelidade, desempenhando várias tarefas, na Igreja,
benevolamente. A cruzada, desde sempre me fascinou… vestida de branco, com a
cruz das caravelas, em fila de dois, direitinhos como fusos, orgulhosos e
sorridente, saía nos eventos importantes, festas etc. O Luís, que na altura
frequentava o seminário, e vinha passar férias a casa da tia Helena,
iniciou-nos às primeiras notas musicais, e algum latim que decorávamos sem
saber o que queria dizer, salvo uma frase aparentemente maliciosa, mas que
queria apenas dizer: “ Os peixes romperam as redes”!?
Alguns de nós aprendemos a ajudar à missa, em latim… quase sempre a dois, e foi
numa vinda oficial do Bispo, que uma “barracada” imprevista e incontrolável de
riso surgiu, entre mim e o Pintassilgo, ajudantes designados pelo P.e João. Com
antecedência de 15 dias, decorámos uns textos de boas-vindas, ensaiados ao
pormenor para que nada falhasse naquele dia, juntamente com outras fantasias e
cânticos religiosos. À saída dos ensaios, alguém nos contou uma história
relacionada com a missa, os ajudantes,

alguém nos contou uma história relacionada com a missa, os ajudantes, e um
ratito. Pelos vistos, o rato apareceu por baixo da lâmpada a azeite, no canto
entre o granito e o altar-mor, e, com as suas idas e vindas, alheio aos olhares
curiosos, despertou a atenção dos ajudantes. Parecia mesmo que se passeava com
prazer, lentamente, como a saborear a sua timidez quebrada. De repente, o
Sacerdote voltou-se para os presentes e, abrindo os braços, disse em voz alta:
- “ Orate fratres”- O ratito desatou a correr, “enfusgando-se” no seu
esconderijo, enquanto um dos ajudantes respondia em voz alta: “Porra que mo
espantaste”!
Nesse dia, o da visita do Bispo, cujo cerimonial não podia falhar, aconteceu um
caso similar: um ratito, como por magia, quis participar na festa. O primeiro a
vê-lo foi o Moisés que, com um sinal discreto, nos apontou o animal descontraído
a passear. Ainda estávamos no início da Eucaristia, mas já não conseguíamos
conter o riso que, apesar de o tentarmos abafar, se ouvia por toda a Igreja.
Outros galafates, conhecedores da história, entraram na sinfonia dos espirros,
cada vez mais ruidosos. O Sr. P.e já se tinha voltado duas ou três vezes, com
ar repreensivo, que pouco ou nada acalmou os entusiasmos. Chegou a frase
fatídica (orate fratres), e desencadeou-se um alvoroço tão ruidoso, que o Sr
P.e desceu as escadas, pegou-nos pelas orelhas, um de cada lado, e levou-nos
para a Sacristia. Como não conseguíamos explicar os deploráveis acontecimentos,
deu-nos um pontapé no rabo atirando connosco para o adro. Os ânimos nem por
isso se acalmaram, porque na Igreja ficaram ainda o Moisés, o João cuco, o
Pedro e outros que como nós conheciam a história, e cada vez que olhavam uns
para os outros, recomeçavam a sinfonia de risos, enquanto ao fundo da Igreja a
D. Graça e D. Maria murmuravam furiosas: “Que pouca vergonha!”
Fomos crescendo e a rebeldia acompanhava-nos humildemente, fiel como as
conquistas amorosas. Nos amores, abordagem para dar o primeiro passo era um
esforço colossal, invadidos que estávamos pela timidez e pelo receio de levar
um “ chega para trás”. Na adolescência aprendíamos com os mais idosos, técnicas
que, se podiam facilitar a tarefa, também podiam ajudar a distanciar a
pretendida.
Um caso concreto aconteceu numa tarde, ao cair da noite, lá para os lados das
Ribas, onde três “lafraus” nos deslocámos, a tornar a água no lameiro do tio
João Santo. Ao fundo, havia outro que confrontava com este e pertencia ao
pessoal dos Pereiros. Por coincidência, um rapaz mais velho que nós andava nas
mesmas ocupações, e aproveitámos para lhe perguntar se sabia escrever cartas às
“garinas”? Partiu-se em gabanços e, como tal, pedimos-lhe para nos escrever
uma… que no dia seguinte nos entregaria. O envelope vinha colado! Manifestámos
o desejo de ler o que vinha escrito, mas o sujeito justificou a negativa, como
sendo um meio seguro para não aprendermos as suas técnicas. A carta foi
entregue e mal interpretada, possivelmente por ignorância, e no primeiro
encontro o rapaz recebeu como resposta uma grande bofetada.
A maioria dos casamentos era organizada segundo os haveres materiais de cada
um, pelos pais e familiares próximos. Havia relativamente poucas possibilidades
de casar fora da terra, pelo facto de não existirem transportes para os
encontros e, namorar por correspondência era uma aventura incerta. O paga-vinho
obrigatório para os forasteiros de outras terras era uma tradição temerária,
embora engraçada para quem presenciava. As moças, que estavam limitadas a
saídas com acompanhamento, aproveitavam a ida à fonte para trocar rápidos
olhares, ou palavras fugitivas. Com todas estas restrições, ainda havia casos
de resistência às imposições, à semelhança do que acontecia na literatura:
“Rosa do Adro”, “Amor de Perdição” “Romeu e Julieta”.
Foi num caso similar que, um dia, fui abordado pelo meu melhor amigo que me
pediu para o acompanhar a casa dos pais da namorada, a pedi-la em casamento.
Sabia das divergências existentes mas, apesar de serem de maior idade,
impunha-se o tradicional pedido. O meu amigo acabava de pôr à prova a minha
amizade. Respondi afirmativamente, mas quando me disse que era para aquela
noite, fiquei como paralisado… era principiante na matéria, e o pai da noiva
não era de cócegas! Quando lhe entrámos em casa, já a noite caía, porém, talvez
já sabedor da nossa visita, o chefe de família tinha-se ausentado. Sentámo-nos
à lareira e esperamos. O meu coração batia a duzentos por hora, ansioso por que
o homem chegasse, e receoso com a astúcia a adoptar. Para culminar o meu
desespero, outra pessoa estava presente e, como é óbvio, adivinhou as razões da
nossa visita, por isso não arredava pé. Já era alta noite quando apareceu o pai
da moça. Sentou-se, mas o diálogo tornou-se num silêncio pesado, temeroso,
indeciso. Tanto o rapaz como a rapariga olhavam-me vezes sem fim, como a
implorar o meu pedido, mas a garganta apertava-se-me, e a língua bloqueada não
balbuciava palavra. Impaciente, mas em vão, o meu amigo dava-me joelhadas em
silêncio: da minha boca não saía palavra… Até que, por fim, já bastante tarde,
enchi os pulmões de ar e, a gaguejar, consegui pedir a rapariga em casamento.
Jurei a mim mesmo, nunca mais aceitar as funções de intermediário no que diz
respeito a casamentos!