sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

O sem abrigo

 Sem abrigo:
Foi a denominação que ele se atribuiu, com a qual se apresentou, quando me pediu amizade numa rede social. Só ele sabia porquê, o verdadeiro significado, que jamais me revelará, e que me deixou perplexo, sobretudo nesta fase da vida, sabendo eu, que socialmente, se tinha afirmado com prestígio e lavor. Era feliz com a sua admirável família, a qual eu não conhecia, mas que tantas pessoas elogiavam. Vestia mal era a sua escolha, falava com peso no coração, como quem manifesta desagrado, um desalento inexplicável. Não reconhecia o primo Toninho! Porém todo ser humano pode mudar, tem esse direito, e não lhe fazia perguntas. Recordava-me dele enquanto puto, porque vivíamos em casas meeiras, propriedade do nosso avó Manuel, descalço e vestindo uns calções aos quadros, tal como o irmão que a fatalidade de um dia Negro lhe roubou a vida, num acidente estupido. Das dificuldades que a minha tia teve de enfrentar quando o pai os abandonou( mais tarde reconheceu o toninho como filho dando-lhe o seu apelido)da fome que juntos disfarçávamos junto da fonte grande, ou assentados no tanque que servia de bebedouro aos animais. Mas todos os pássaros aprendem a voar, uns pelos seus próprios meios outros ajudados. No decorrer da nossa juventude cada um de nós seguiu o caminho traçado pelo destino: eu emigrei para o estrangeiro, ele, mais novo de uns anitos, completou pelos seus próprios meios as habilitações requeridas para ingressar na polícia de intervenção. Ainda antes de imigrar para Lisboa Defendeu as cores da equipe de futebol de Rebordainhos, como guarda-redes, com brio, orgulho e paixão, em detrimento da sua integridade física, saboreando com vaidade os aplausos e olhares femininos que de longe o lisonjeavam. Recordo também com grande emoção um ato heroico que lhe podia ter custado a vida.

 Aconteceu na nossa casa de chave, quando a fuga de gaz de uma garrafa se incendiou e nos deixou a todos pétreos de pavor como estatuas. Ele que estava passando, sem hesitar, entrou pela porta dentro, com um pano qualquer desliga a botija do fogão, agarra nela às costas e sai para o meio da rua onde acabou por fechar e neutralizar as chamas, e consequentemente a explosão.
Hoje recebi a triste notícia da sua partida definitiva para o além, fulminado por um AVC. Tão jovem meu deus? Siderado passei a noite a ouvir aquele cântico: - Vale a pena viver e a interrogação martiriza-me o senso como um barco à deriva, procuro na terra, o que os marinheiros procuram no mar emprestam-nos uma vida a prazo, para alguns mais longo outros mais curto,
 , e dentro deste parâmetro, somos todos iguais e tão diferentes! Um Muçulmano tem como referencia, o ALCORÃO, os Budistas NIRVADA, os russos a ORTODOXA, NA China o Taoismo, e finalmente o ateísmo, testemunhas de jeová, reino de deus, todos partem na hora e dia previamente marcado seja qual seja a crença.
Hoje fui ao teu funeral, tinhas apenas 59 anos, e durante o trajeto que me conduziu àquela igreja onde jazia o teu corpo inerte coberto de flores, nos meus ouvidos ressoava interruptamente aquela frase: - Vale a pena viver, por ti só por amor...
Entrei com pezinhos de lã como quem tem receio de acordar uma pedra que dorme para sempre. Não te vi, ocultaram-te, mas os abutres não conseguiram levar a imagem que continua gravada no disco rígido do meu ego. Conheci a tua esposa e filha a quem chamavas princesa, e sensibilizaram-me as frases de agradecimento que ela em voz dolorosa foi prenunciando para os presentes de Parada, Rebordainhos e Amarante. A presença do teu pai e do teu filho humedeceram-me os olhos, mas não chorei por saber que não gostarias. Também estavam presentes quase todos os teus irmãos, que a tua rebeldia enfurecia e as ações amaciavam. Tiveste uma cerimónia digna e merecida, até os salmos foram cantados pela tua ex-cunhada como uma diva. Agora sei que valeu a pena teres vivido, tal como eras, um sem-abrigo.
Descansa agora em paz, Toninho meu primo.
   


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