domingo, 6 de dezembro de 2020

FAMÍLIAS


 por António Braz

À famílias, sobretudo aquelas que viveram uma vida inteira em aglomerados identificados de aldeias, onde muito se conta e tudo se sabe, cujas histórias, jamais narradas, viajam para a eternidade com seus  donos, por pudor, ou por os interlocutores considerarem de  importância irrelevante, permanecem vivas e acesas nas recordações dos que por cá ficaram e ainda caminham pelos mesmos caminhos, menos sinuosos, menos agrestes, porque a evolução dos tempos assim o permite facultando-lhes o que recusou aos seus antepassados. Nomes e cognominação que os identificavam viajando com eles para onde fossem, servindo-os como a palavra de honra que numerosas vezes serviu para concretizar um negócio, uma promessa de compra e venda sem a devida assinatura, conceitos que alimentavam a boa fé, e constituíam a bagagem da honestidade irreversível.

Nesta grande terra, Murçós, que noutros tempos foi abrigo de forasteiros, adotou e acarinhou os passageiros da chuva e da neve, deu de comer a famintos, trabalho aos que precisavam ganhar uns tostões para sobreviverem, e a ilusão de poder viver uma vida decente, sem euforias, mas, mas com alguma dignidade, embora não terem feito o suficiente, por ignorância, ou arrogância, desdém, negligencia, é tão difícil encontrar o adjetivo justo e certo…

Tal como no filme de: “les oiseaux se cachem pour mourrir” também eles se esconderam, e sós, numa casinha fria e deserta, não se sabendo a que horas nem o dia certo, abafados pela glicose, pela fome e pela sede, pela falta de auxilio, pela “ overdose” de álcool, pela avareza de uns, pelo orgulho de outro, pela indiferença e pela pobreza, partiram sem um adeus, sem um olhar piedoso e suplicante, sem nada como vieram ao mundo, com a diferença de terem uma mãe quando nasceram, para os arrolar, os beijar, afagando-lhes o rosto. Só essas paredes miseráveis, essas telhas impotentes poderiam contar toda a verdade…

A família “carriças” aquela que conheci há décadas, me aceitou, com todos os meus defeitos e virtudes, era bem conhecida credenciada e creio amada, pelas diversas credenciais que a caraterizavam, o ímpeto que os progenitores foram estabelecendo, tentando fugir às recordações de um passado menos bom, cujos mães tiveram algumas dificuldades para levar o barco a bom porto.

O tio Manuel, homem rude e de poucas falas que fugissem aos interesses dos seus pensamentos, não nasceu em berço de ouro, e foi com perseverança, trabalho, e muito suor, que conseguiu uma casa digna para acolher os seus oito filhos com a ajuda da mãe e da esposa, uma santa mulher, educada, trabalhadeira, de uma fineza incomparável no ser e estar digno de uma rainha. Chamávamos-lhe ternamente: mãe Ana. Uma grande “galinha” para filhos e netos. Bordava aos noventa anos, como uma profissional, sem óculos, e enfiava uma agulha enquanto o diabo esfrega um olho. Leu a bíblia de lés a lés por várias vezes, e era nos pequenos livros religiosos que encontrava o seu melhor passa tempo. Isto depois de ter criado oito filhos, para os quais costurava vestimentas que sempre ficava mais barato que as comprar. O marido trazia peças inteiras de tecidos, e em noites longas invernais, passava o seu tempo a costurar, fiar, tecer linho, para agasalhar os numerosos filhos. Com duas simples agulhas nas mãos fazias meias, luvas e soquetes, com lã do gado da casa que alguns dos filhos já pastoravam embora com tenras idades, mas naquela casa o trabalho era repartido, e todos arregaçavam as mangas para que não faltasse nada. Não construiu um império, mas nesta casa nunca ouve fome nem faltou o necessário. Foi para sua casa que veio a primeira camioneta Bedford, mesmo sem ter adquirido ainda a carta de condução. Também o trator Bedford foi um dos primeiros a entrar em Murçós apesar das duas juntas de vacas que laboravam sob o comando do filho mais velho de quem falaremos mais adiante.

Era um homem orgulhoso, serviçal, e amigo do seu amigo. Em sua casa fosse festa ou não, os amigos eram recebidos como hospedes de honra e não faltava nada na grande mesa da cozinha ou da sala. A sua fome por adquirir cada vez mais para os seus levava-o a extremos de comportamento, exigindo sempre mais e melhor. Quando parte dos filhos voaram pelas suas próprias asas, emigrando, ou encontrando marido e desaninharem, começou o seu Sulpício, para fazer progredir o já adquirido. Foi o filho mais velho, o João, quem tomou as rédeas do negócio ambulante, e da agricultura com a ajuda da esposa filhos e o neto Filipe. Foi o único a quedar-se por cá, e a filha mais nova que estudava em Bragança. Mas o João também tinha o seu agregado familiar, e um acordo 

entre pai e filho foi estabelecido, do qual podiam tirar proveito os dois. Todas as manhãs, ainda bem cedo, o João subias as altas escadas dos pais com lenha para acender o lume. Por vezes saboreava a cevada que a mãe preparava para todos, com torradas feitas com azeite, na lareira, queijo, nozes e figos secos. Era um viver difícil, mas ao qual se tinham acostumado e viviam felizes assim. Tal como na casa dos pais, na sua entraram centenas de pessoas de onde saíram saciadas e a convicção de uma família incomparável. Nunca se ouve ainda hoje um lamurio, queixas, nem falta de sorrisos, venham poucos ou muitos há sempre um lugar vazio, a boa disposição. A desgraça do destino ditou a partida precoce do chefe de família, mas deixou o seu herdado que recebeu de seus pais, não em termos materiais, mas em princípios e valores que vigoram e devem orgulhar os progenitores onde quer que estejam. A minha estima e consideração por todos é grandiosa,  e a gratidão será eternamente o sentimento se ainda me considerarem como da família.

 

 



2 comentários:

Jaime Fernandes disse...

Está tudo dito, uma grande failia, que desansem em paz os que já partiram e um grande abraço para todos para o resto da familia pela cual tenho grande respeito

antonio disse...

Obrigado pelas tuas lindas palavras. Também a vossa é uma família exemplar da qual podeis estar orgulhosos. Paz à alma dos que partiram, e um bom Natal para todos vós. Abraço