terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Tempo de Natal




Natal por António Braz 

A Aldeia apareceu, logo de manhã, com um manto branco de vinte centímetros de neve brindada com feições de rainha sem coroa, mas amada e acariciada com a ternura e o carinho de uma terra mãe, onde os filhos brincam, de mãos geladas e roupas encharcadas, atirando-se bolas como palavras que se desfazem no ar, construindo bonecos nas encruzilhadas, e enrolando lentamente esta beleza até se tornar uma bola gigantesca, chegada ao destino, pela exaustão das forças  de uns braços de criança frágeis, mesmo que os olhos e a esperança vissem a obra de arte com dimensões planetárias. Dos beirais das casas caem os sincelos (Candeolos) cristalizados fabricados pela noite clara mas gelada, ornamentando os lares pobres como os ricos, embora no interior se evidenciasse o conforto relativo em alguns, e o tintilar dos dentes onde apenas uma lareira e a fumaça a sair por entre as telhas aquecia os moradores de casas construídas em granito, com poucas divisões e escassas mantas de farrapos, recuperados na roupa velha, tecidas ao desbarato e que serviam de Lençóis, e do resto, por cima do colchão

esburacado, por onde se ia esgueirando a panha moída pelo uso. – Que grande nevada!  - Anunciava a mãe em tom de mágoa e desalento, mas logo a garotada, eufórica, saltava para o soalho gemendo com o impacto, e de pés descalços, quase despidos, apressavam-se à janela mais próxima de onde obtinham confirmação. Os telhados vergavam e gemiam para aguentar o peso, mas a visão era mesmo mágica! Na entrada, cuja porta datava já de há muitos anos, e os sintomas de envelhecimento se iam notando cada vez mais, tinha sido retirada a neve, e as impressões digitais de uns passos de homem, confirmavam a sua saída, ainda não rompia o dia, enquanto num sono pesado, no silencio, os donos das touças dormiam; e na dor de uma perna que arrastava, vitima de um acidente estúpido, quando uma relha lhe veio fraturar o tíbia, e sem meios nunca 

foi tratado convenientemente, rebentava-lhe todos os anos por este tempo, o hematoma companheiro das noites à vela, dos gritos, e dos curativos caseiros com pele de unto o qual aliviava o sofrimento que o acompanharia até ao fim da vida… era o pai, e como brevemente seria Natal, sentia-se com a obrigação de dar aos seus sete filhos, o calor de uma lareira, já que pouco mais lhes podia dar, nem refeição melhorada de uma couve tronchuda, uns pedaços de “raba” misturadas com batatas, poucas, e uns rabos de bacalhau comprado ao desbarato na taberna que lhe fiava até que pudesse recompensar, talvez no tempo da sega dos fenos, se a perna já estivesse melhor…A neve cobrira os caminhos, e os 


seus pés tropeçavam nas pedras, nas silvas e nas giestas, e a dor surgia-lhe no rosto molhado e frio, mas a força puxava-o pouco a pouco como se fosse arrastado, para longe, porque por perto não havia carvalhos que pudessem durar durante as festividades, e o guerreiro não voltaria para casa sem trazer o que procurava? Conhecia o terreno como ninguém, palmilhou-o vezes sem fim, carregando no ombro um jovem carvalho, para que os filhos não tivessem frio. No seu sequeiro havia sempre lenha, mesmo não tendo “touças” nem carro para transportar. Nunca considerou ser um furto e muito menos roubo, ficando-se pelo ditado: só dá quem tem. Também ele já teve, e, nesse tempo, também os pobres não morriam de frio. Finalmente a mãe foi à varanda, e a sua inquietação era notável. Esperava vê-lo ao longe, carregando a cruz dos dias invernais, e o coração batia mais forte e mais depressa, não tivesse ele sido apanhado? 



Finalmente surgiu uma silhueta por detrás da fonte do Espinheiro, e um homem, calvo e coxeando, limpava com um lenço encharcado, a fronte, os olhos, não se sabendo ao certo se era de cansaço, de dor ou se chorava… os seus passos eram cada vez mais lentos e descontrolados, cambaleando, chegou ao destino e ergueu os olhos ao céu. Não era de rezas, crente e talvez agradecesse ao menino jesus a sorte de estar vivo e ter uma família ainda que pobre. O galo cantou e a filharada que não tinha fechado olho, levantaram-se de uma vez e foram à lareira procurar no soco de pau de amieiro, o presente do menino jesus. Eram dois rebuçados e uma bolacha para cada um, e todos ficaram contentes e agradeceram no dia seguinte. Mais tarde o pai ingressou na CP lá para os lados da Senhora da hora, e de lá trazia cestos de laranjas que partilhavam, entre familiares e amigos.



 



1 comentário:

Anónimo disse...

Que bela narrativa. Foram tempos difíceis os dos nossos pais.