sábado, 5 de março de 2022

A tua vez chegará

Uma velhinha caminhava e em cada passo tropeçava, caía no chão magoada, sem alento ainda tentava, erguer-se, mas já não conseguia e gritava numa voz abafada, pedia socorro mas ninguém passava para ajudá-la, rezava mas nem santos nem anjos nem nada, um cão que por ali passava, lambeu-lhe as feridas, com carinho e amor, ao ponto de já quase não sentir a dor, e quando o sangue deixou de brotar, estende as duas patas para a ajudar a levantar, e quando a idosa o quis afagar, fugiu para longe de rabo a abanar. Voltou para a sua humilde casinha, para uma mala arrumar, com meia dúzia de trapos que teria de levar, deixando para trás tantas lágrimas derramadas, fotos na parede que já não vislumbrava, de um marido que havia tempos a tinha deixado, de filhos que amamentou, e o pão que da boca retirou, para saciar a fome daqueles que tanto amou. Eram seus filhos, paridos em noites medonhas e frias, e no grande silêncio aos seus seios encostou. Lutou tanto para nada lhes faltar! Ensinou-lhes os trilhos mundanos, e eles foram crescendo, até o ninho deixar. Casaram com as mulheres que escolheram, e nunca mais lhe chamaram Mãe. Ás escondidas passavam por sua casinha, mas, sem tempo para lhe dedicar, nem para as mãos aquecer, esperavam-nos filhos e cônjuges, não se podiam atardar. A escaleira já não podia subir com alimentos ou lenha para a fogueira. Ninguém vinha visitá-la. Com a sua pequena reforma pagava os medicamentos, e sobejava tão pouco! Tinha netos que ignoravam a sua existência. Filhos obedecendo ás exigências das esposas frias e sem coração. Hoje vai abandonar a sua terra, a casinha e as pessoas que conhecia desde há muitos anos. Leva consigo a vontade de morrer o mais depressa possível, para não ter de sofrer com saudades daqueles que deixaram de ser seus filhos e netos. Não venham fingir chorar a minha morte, porque em vida fostes simplesmente estrangeiros, já não tenho ninguém! Porque devo permanecer num lugar que nunca foi meu?

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