domingo, 22 de maio de 2022

O salto

O táxi chegou, como tinha sido estabelecido previamente, eram 2h da manhã à entrada da Aldeia. Circulava apenas com as luzes mínimas para discretamente carregar o rapaz e quatro mulheres, uma delas casada, cujo marido e irmão da namorada, que viajavam com passaporte, esperariam, via ferroviária, na estação da cidade de Zamora para juntos seguirem até à fronteira francesa. Era a segunda vez que o rapaz dava o salto tendo aprendido as diretivas para não serem intercetados pela PIDE que possuía olhos e ouvidos nos recantos mais secretos do país, com os bufos (informadores) infiltrados numa população vulnerável e simples. Pagar a um passador custava caro pelo que se aventurou a fazer o mesmo percurso, economizando uns centavos. O táxi depois de pago, largou os passageiros a uma distância, mais ou menos, de 200 metros da fronteira de Calabor, onde um guia camuflado na berma da estrada cujo preço a pagar estava incluído no do motorista, conhecidos e aptos para este tipo de serviços, tomou o comando das operações, depois de os avisar gestualmente, colocando o dedo indicador na boca fechada, sinal que queria dizer nem uma palavra. Passaram, ás escuras, a uns 30 metros do posto da guarda fiscal sem percalços, supostamente também tinham sido subornados. Uma hora depois batiam à porta de uma casa já em território Espanhol e sem pedir licença entraram rapidamente onde lhes foi servida uma bebida quente. A casa estava cheia de Portugueses que como eles, no dia seguinte, foram pedir um “salva condutos” à esquadra da guardilha civil, que lhes permitia circular em território Nacional, acordo que Franco tinha feito nesse mesmo ano 1967. Surgiram problemas com uma das raparigas que ainda não tinha concluído os seus 18 anos. Porém, como o dinheiro agrada a toda a gente, a rapariga lembrou-se de tirar da carteira duas notas de pesetas, e como já tinha vivido algum tempo em Espanha, passaram-lhe o documento de circulação substituindo a data de nascimento. Ainda era bem cedo, mas como ninguém fechou olho, quando outro carro os levou até Medina Del Campo e dali seguiram viagem para Zamora para tomar o comboio que os levaria até à fronteira com a França onde tomaram outro táxi para atravessar a grande ponte, fazendo vista curta os guardas ao piscar de olho do condutor. Já não sei se era o amor que falava mais alto ou o receio de serem apanhados, porém, desde que entraram naquele carro as suas mãos enlaçaram-se com tanta força que mesmo quando chegaram, aquele olhar tímido e suave dizia o que as palavras não conseguem, mesmo as mais refinadas… - Vamos? - Dizia o irmão num tom autoritário. Mas aquela mão não se descolava da do homem que tanto amava, sacrificando tudo o que deixava para trás. Finalmente entregou-lhe um papelucho onde estava escrito o endereço, mas não era o que ela imaginou, idealizou ou sonhou, porque o amor prega-nos destas partidas, e nas encruzilhadas, segue direções opostas, ferindo na grande profundidade da alma, martirizando o corpo com contrariedades. Só se voltaram a ver tempos depois, já ela trabalhava, na rua dos Lilás, um trabalho de sopeira, mulher das limpezas, honorável, mas que jamais fez parte das suas pretensões. Quando subia as escadas do metro verificou que um jovem Português esperava alguém e surgiu-lhe a ideia que fosse a sua amada… foi ter com ela, mas verificou nela uma transformação que o penava. - Eu não quero ficar aqui mais tempo… esta não é a França que imaginava, e o trabalho pretendido. - Vais acostumar-te. No início é sempre difícil… - Uma lágrima desceu-lhe pelo rosto triste e desiludido, não eram necessárias mais explicações. Quando enveredamos por caminhos, ainda que sejam apenas sonhos, saímos sempre desiludidos. Ela queria muito mais e muito melhor para o seu viver ainda que para adquiri-los tivesse de passar por etapas indignas, lamentáveis, que o rapaz foi compreendendo com o decorrer do tempo e dos acontecimentos. Reparou ao entrar no Metro e cruzarem-se com aquele rapaz, que por certo era um pretendente arranjado pelos familiares, e a esperava, não ousava dirigir-lhe a palavra porque já ia acompanhada, e tal como o outro era um pião num tabuleiro de jogos.

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