quinta-feira, 31 de maio de 2012

O AMARO...(ficção)

O MUNDO RURAL
                                                                                                                                                                 

                                                                                                                                      
                                                                           1ª parte

À minha lembrança, surge frequentemente a imagem de um garoto cativante, através do olhar, tristonho, piedoso, que lançava, quando passava, agarrado a uma vara de castanho, descascada pelo fogo, seca, para se tornar mais rígida, obra sua, suponho, coberto até ás orelhas, com um casaco refeito com remendos, de farrapos vindos de outras peças de roupa, provavelmente inutilizadas, tentando abrigar-se, do vento gelado vindo do Nascente, e dispersar algumas gotas de chuva, de tempos a tempos mais moderada, encharcando-lhe os pés, metidos em sapatilhas velhas e rotas; até a cabeça, mesmo coberta com um boné, usado, escorregando-lhe dos cabelos, pela face angélica, fina, e para o torrado, herança de um pai que perdera miúdo. Doenças que surgem sem se saber como, não escolhendo idades, nem posições sociais, mas afectando muito mais, financeiramente, pessoas de baixos rendimentos, dependentes do chefe de família, inclusive os filhos, numerosos e jovens, e a mãe, cuja responsabilidade, tanto na educação como na nutrição, lhe recai sobre os ombros, um peso atroz, longo e permanente. Atrás de duas vaquitas, magricelas, ou de uma dezena de cabras, adquiridas com muita labuta e sacrifícios, privando-se com toda a certeza, de tantas coisas boas e lindas, inclusive da alimentação, cujo ementa costumava ser um caldo de couves e um naco de pão, dividido em porções pouco abastadas; movimentava-se com uma lentidão desconcertante, sério sem contemplações, se às vezes se cruzava com alguém, baixava os olhos ao chão, tornava as horas numa voz estranha, e, lá seguia o seu caminho; parava por uns segundos junto do café, por baixo das grandes janelas de correr, que davam para a rua, e serviam de miradouro aos visitantes menos atarefados, esperando colegas da cor, para bater uma sueca, simples divertimento, mas, com os tempos que correm, uma bebida de borla, era sempre bem-vinda; gritavam e davam gargalhadas, que deixavam o Amaro apático, pensativo, revoltado pelo facto de não poder permanecer ali, junto aos de mais. - Malditas vacas… pensava, desatando a correr, porque elas havia já minutos, tinham abalado, não fossem dar cabo de qualquer coisa, e ter de se haver com os donos mais a mãe, bastante rigorosa e respeitadora das propriedades alheias.





 Vezes sem fim, vi através dos vidros desse café o Amaro repetir os mesmos gestos… adivinhava já a hora da sua passagem, ou seria que aguardava impaciente, que passa-se, talvez por sentir o que lhe ia na alma, havendo tido um viver idêntico, quando tinha a sua idade… por curiosidade, sensível àquele olhar, não sei se piedoso ou revoltado, que lançava para cima, impotente por não poder fazer o que quer que fosse: - Ainda te faltam alguns anos, mas tenho a certeza, de que um dia voarás com as tuas próprias asas! … Quedava-me pensativo, perguntando-me: - Que teria sido de mim se me tivessem cortado os voadores, nos anos antecedentes á minha partida para o estrangeiro?...
De volta a casa, depois do tocar das trindades, já noite escura, ensopado, esforçando-se para levantar os pés, que o solo atraía ou a água no interior, impedia os movimentos; após ter encerrado os animais, dirigia-se para o local onde residia, pouco ou nada confortável… empurrava a porta com um pé, indo instalar-se num “escano” na cozinha, junto da lareira, onde dois pedaços de carvalho, ainda verde, teimavam em não querer arder, parecendo ignorar a persistência, da irmã, que “afolava”, com um grande e velho fole, herdado provavelmente dos avós, com todas as suas forças, sem obter o resultado esperado. Pelas telhas velhas, algumas delas partidas, escapava-se grande quantidade de fumo, vestígios de uma chaminé em ruínas, também provocado pelo vento de travessia e demais buracos que não faltavam. Quando voltavam todos para casa, na hora da ceia, o diálogo era sempre o mesmo.


– Toca a lançar o caldo, meninos, antes que arrefeça.O Amaro disfarçava, a careta que fazia, voltando-se para a parede, mas no fundo, sabia perfeitamente, de nada servir. Dias melhores virão, garotos, - dizia optimista a mãe, que lia na alma de cada um dos seis filhos, o infortúnio do peso que um dia lhe caíra sobre os ombros, -  e vereis que para a festa, havemos de matar o galo pedrez, e cozinhá-lo com um pote de arroz. Não se podia considerar miserável o viver desta e de outras famílias semelhantes, sabendo que pelo Mundo, existem casos mais carentes ainda, porque raras vezes faltava pão ou batatas. Contudo, que nome ou adjectivo se deve dar ao elevado conforto de agora? Sabendo que a vida evoluiu, que os tempos são outros, que ninguém pode nada referente ao passado, e que são bem-vindas, modificações de beneficência para a população, pergunto-me: qual é a utilidade da minha escritura? Diz o adágio: os velhos dão bons concelhos por não poderem dar maus exemplos. – eu pretendo somente inculcar aos jovens , a sorte, com a qual são brindados, pelo facto de terem vindo ao mundo, numa época diferente, ainda que o local possa ser o mesmo.

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