sábado, 8 de setembro de 2012

O PASSAGEIRO DA PENÚRIA (ficção)

 Montado na sua pequena moto de cor vermelha, mal tratada pelos deslizes, quedas, enquanto percorria, sem destino, caminhos sinuosos, medonhos, estradas que ligavam a outras estradas, mas que o seu estado de sobriedade já não permitia discernir precisamente o endereço desejado, chegava aqui cambaleando, olhos semicerrados, rosto coberto de rugas, cabelos longos sujos, vestimenta aparente de um pedinte. Todos os presentes na esplanada se afastavam como se ele tivesse a lepra… até o tasqueiro murmurava algo de incompreensível enquanto franzia o rosto… Várias vezes se assentou a meu lado, empestando o álcool ingerido, e a falta de higiene, e, com uma palmada amiga nas costas perguntava-me: - porque fogem estas pessoas? Eu não devo nada a ninguém! É verdade que não tenho família… mas pago sempre as minhas dividas…
 O seu miserável viver é fruto de um destino infeliz que o escolheu … de uma aventura entre dois adultos, inconscientes, irresponsáveis… o genitor pai que foge para o Brasil, embora lhe conceda o seu apelido, abandona filho e mãe, refaz a sua vida com outra companheira, sem jamais se lembrar da sua existência… de uma mãe solteira, doméstica, que abandona a sua terra, deixa o filho com os avós, segue com os patrões para outra, onde se enamora de um homem, luta com todas as forças para o preservar até que chegou o casamento, já com outro filho nos braços… mesmo assim, os familiares do marido não admitiam que o filho casasse com uma criada, já mãe, e com outro filho no ventre.Anos depois, já quase adulto, bom trabalhador, com mãos de ouro que sabiam fazer tudo, foi acolhido no agregado familiar da sua meia família, como ele lhe chamava… Não confiavam nele como nos seus irmãos, era discriminado e apontado como o bastardo!
                                                                     Enquanto precisaram dos seus serviços, na reconstrução da casa, não lhe faltava nada, nem mesmo os sorrisos, os quais foram diminuindo pouco a pouco, surgindo as discussões por tudo e por nada. Resolveu sair daquela casa onde ninguém o considerava, e tentou voar pelas suas próprias asas…
Trabalhava na construção civil, fizemos um pequeno percurso juntos, na construção de uma casita minha… perdi-o de vista por força das circunstâncias, revendo-o quase todos os anos. Tinha tanbém construído uma família, mulher e filhos, e vivia segundo as suas possibilidades, o que me deixava feliz, contente porque sabia ser um bom rapaz, infelizmente dependente do álcool e tabaco, um refúgio igual a tantos outros, a quem os problemas bateram à porta… apesar de amar seus filhos e mulher, aconteceu o que fatalmente teria que acontecer um dia… chegou a casa bêbedo gastando os poucos cêntimos necessários para a sobrevivência de uma família carenciada, foi posto na rua… desprezado pela mãe e irmãos que viviam abastadamente, suportou orgulhosamente a vida que escolheu, ou que para ela foi projectado, sem vacilar à tentação de lhes pedir ajuda… via-os passar em carros topo de gama, quando raramente por lá passava, dizia olá… mas, não se considerava um mendigo… não aceitava esmolas de ninguém… sofria interiormente se alguém o tratava com compaixão… Enquanto o avô viveu ia frequentemente visitá-lo, falavam de coisas sem importância, ambos sabiam o peso do fardo que transportava na alma havia já tantos anos! De nada serviam os bons conselhos dados… o velho meditava na crueldade do destino, na injustiça dos deuses, na hipocrisia humana! Enquanto o PASSAGEIRO DA PENÚRIA sentia extrema felicidade, junto de quem o acariciava, como quando era miúdo, o amava pelo que era e não pelo que podia ter ou ser…
Acordo tantas vezes com o roncar de uma pequena moto soando-me aos ouvidos, não é a do meu amigo, esse vive a poucos km daqui, numa barraca emprestada, sem conforto nem higiene, longe da família que o desprezou, o abandonou e não sente remorsos na consciência… é a de um rapaz que segue os seus passos, o mesmo caminho sinuoso, tem quarenta e poucos anos, mas, este sim, escolheu um viver de dependência…


Dedico a todas as vitimas de um destino falhado pela fatalidade circunstancial...

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