Era uma vez… todas as histórias de encantar começavam assim, para os miúdos que tinham quem lhas contasse, carinhosamente, ao adormecer, n’uma cama confortável, à luz brilhante de um candeeiro, nas noites invernais geladas e silenciosas, onde o aconchego dos cobertores de Lã merina, proporcionavam sonhos lindos. Ao “puto”, na penúria herdada, à luz de uma candeia já com falta de “torcida” e pouco petróleo, deitado n’um “cheragão” (colchão) cheio de “colmo” moído, buracos no tecido de sacas velhas, “empelouricado” sobre quatro tábuas velhas a cair aos pedaços, envolto em mantas de farrapos, tecidas para os pobres, nunca ninguém lhe contou, os porquês de ter vindo ao mundo, no mesmo dia de Camões, e só onze anos passados foi registado civilmente?! Seria fatalidade ou ironia predestinada, proclamada pela justiça divina; um dia, quando era pequenino, adormeceu tão profundamente, durante dois dias e três noites, deixando pressuposta partida para os anjos, o que levou sua mãe a chamar alguém competente, a fim de sopiar um filho que ainda não tinha sido batizado… e, na sua mais tenra infância, o puto teve fome… do caldeiro que cozia a “bianda” (refeição) para os porcos extraiu castanhas, (mamotas) para comer, sujeitando-se ao perigo eminente que o levou a cair nas brasas da lareira, acorrendo de imediato a mãe que o envolveu numa toalha, e das chagas extraiu uma a uma as brasas coladas ao corpo do menino desesperado com as dores que lhe penetravam o corpo sangrentamente. Uma nutrição que supera a precaridade… metade de uma batata cozida com a casca água e sal, e uma pequena percentagem de meio quarteirão de sardinhas, compradas a um sardinheiro familiar, que sempre deixava mais uma, moída, que ninguém queria, divididas por nove pessoas… passou dias inteiros com um naco de pão centeio, pedido emprestado a uma senhora de coração de ouro, até que viessem uns tostões para comprar uns kilos de farinha e devolver a peça, muitas foram as vezes em que essa santa mulher não aceitou de volta o empréstimo por ter conhecimento das dificuldades financeiras da família. Quando a fome apertava ainda mais, tendo ingerido apenas um caldo de couves a navegar na água, uma batata esmagada, e adubado com uma lasca de unto, ia sentar-se nas escadas de granito de uma familiar, com a mão direita segurava o queixo pendente, enquanto o olhar triste vagueava pelo imaginário da desventura, e dava às feições um ar de pedinte envergonhado.
E o “puto” teve frio… de pés descalços, pisou a lama suja
das ruas molhadas pelas lágrimas tristes que seus olhos derramavam, quando
cruzava meninos da sua idade, correndo nos seus sapatos ou socos confortáveis
dentro de meias quentes de Lã. Trémulo, soluçando, erguia várias vezes os olhos
para o céu, talvez a implorar o divino do peso que carregava na alma injustamente,
porque não pedira para nascer, ou seria para contar as estrelas que brilhavam
com menos densidade, onde se notava também a injustiça discerne. As calças e
camisa rotas que os remendos já não cobriam os buracos, deixavam entrar o vento
gelado, que cruelmente entrava e penetrava no corpo, que a pele tentava
proteger com pouca e impotente espessura.
E o “puto” sentiu o medo atroz e traumatizante, que o
persegue até ao final do seu viver… a violência doméstica, praticada pela embriaguez
frequente de um pai irresponsável, viciado e violento… gastava na taberna, nos
jogos e em copos, os poucos tostões provenientes de raras jeiras, e outros que
pedia emprestados, voltando tardiamente, já alta noite, e gritava com sua mãe,
porque ela tentava chamá-lo à razão envolvente, do miserável viver, seu e dos
seus filhos… espancava-a com o cinto e tudo quanto lhe vinha à mão, enquanto os filhos chorávam e íam pedir socorro, junto dos primos maternais mais idosos,
os quais acorriam, ameaçando de tomar medidas caso voltasse a acontecer. Toda
esta violência sobre o efeito do álcool era hereditário, sendo da mesma maneira
tratada, a avó, fruto da frustração de irresponsabilidade, que no passado pela
má gerência, alcoolismo, jogos e perguiça, levou uma das casas mais abastadas
da Aldeia, a penhorar prédios rústicos e urbanos, por umas cascas de alho,
desvanecendo-se pouco a pouco a fortuna, a honra e a reputação de uma família
considerada e respeitada.
E o “puto sentiu, raiva… com as doenças que chegavam
naturalmente, como: Os papos, Varicela, Sarna, Sarampo, assim como as
infececiosas, tuberculoses e bronco-pulmonares… foi com uma pneumonia que um
dos seus irmãos caiu doente, e uma simples penicilina teria curado, comprada
com a ajuda de pessoas da terra… mas essa ajuda não veio. Nem com pedidos
desesperados perante um homem que trabalhava no Hospital de Bragança, foi possível
salvar aquela alma inocente, que pedia socorro em alta voz e ninguém se comoveu…
deixaram-no morrer à mingua, ali para um canto, como um animal, sem dó nem
piedade… que os remorsos daqueles que podiam e não quiseram fazer nada para o
salvar os persiga para sempre neste e no outro Mundo
2 comentários:
Tonho
Embora comeces com "era uma vez" não contaste nenhuma história da carochinha. No entanto, se a continuasses, tenho a certeza de que a poderias transformar numa história de encantar: "o puto, apesar de tudo quanto passou, fez-se homem bom, jurando e cumprindo que seria bom pai e bom marido. Conservando, embora, a memória do sofrimento da infância, soube sublimá-lo e transformá-lo em pena e perdão".
Um grande beijo
Obrigado Fátima pelas tuas palavras, sempre agradáveis, cheias de compreensão e discernimento. Beijos
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