Passei ontem
pela casa do meu amigo… foi mais uma visita esporádica, mas, profundamente
sentida. Prostrado naquela cama, há já cinco anos, adaptada às necessidades
facultativas, num quarto com muita luz, cujo conforto, sua esposa vela atenciosamente
dia e noite, como uma sentinela no seu posto de guarda, os seus olhos brilham
como estrelas cintilantes, quando sente que alguém vem visitá-lo, mas sobretudo
ao afago da cônjuge e filhos, oriundos de Murçós, visivelmente cansada, talvez
mesmo exausta, embora não manifeste quaisquer indicio que possa justificar tal
julgamento, pelo contrário, vai buscar forças não se sabe onde, fala dele com
tanto amor e carinho, tal uma dedicação e fidelidade a Deus, que por obra da
fatalidade predestinada, carregará o seu fardo, enquanto essa luz permanecer
acesa… aquele rosto guarda a mesma suavidade aparente, embora se tenha
desvanecido o sorriso nos lábios, matreiro ou simplesmente terno, quando ambos,
em tempos da nossa juventude, fazíamos o que não devíamos, passando
inconscientemente por cima do que fosse suposto protocolar, estravagâncias da
juventude, momentos conviviais que guardarei para sempre num canto sencível da
minha memória… batimentos rituais que os nossos corações humildemente acatavam
o sentido da responsabilidade, conjugados com a alegria de viver, o ardor
benevolente, e a sensibilidade familiar, mesmo não tendo sido reconhecida pelo
progenitor.
Deixei-o com
uma lágrima no canto do olho, que discretamente voltou ao: “esquecimento de um lenço”… e no caminho, de
volta a casa, refugiado no silêncio, exprimi mentalmente o que realmente me ia
na alma… uma revolta terrível… uma inconformação doentia… pensamentos
horrorosos de discórdia, de injustiça ao ponto de pôr em causa a crença e os
valores que me foram inculcados. De vez em quando, passava pela minha mente, apressadamente,
um tênue de lucidez trazendo-me de volta ao realismo que faz de tantos mártires
a sua vítima…a noite começava a cair, e as árvores que ladeavam a berma da
estrada, desapareciam na fluidez da luz… a mesma que brilha durante a vida toda
para alguns, mas para outros é madrasta… aparecia uma curva mais apertada, e os
pneus do carro manifestavam também a inocência e a isenção de culpa… Chegava ao
cruzeiro das comunidades, onde parei para acalmar os nervos que trazia à flor
da pele, mas o meu pensamento voltava sempre para aquela casa. É gente boa e
honesta que ali vive… não mendiga compaixão de ninguém. Também não propagam
lamurios, nem sonham com desavenças. A doença de alzheimer bateu-lhe um dia à
porta, tal como a milhares de pessoas pelo mundo… queria homenageá-los a todos
e deixar um pensamento positivo de força e solidariedade para com todos os
familiares , e pedir a Deus que lhes dê as forças e coragem necessárias para
suportar este pesadelo com dignidade para com os que sofrem, e se o fardo vos
parecer pesado demais não exciteis a pedir ajuda às instituições competentes, e
aos benévolos de boa fé que ainda sabem o que é ter fé.
Até sempre
meu amigo.
Sem comentários:
Enviar um comentário