Nascer com um verdadeiro dom, é um presente, vindo não se
sabe de onde, nem quem é o remetente, prevalecendo o mistério por desvendar,
relativamente ao facto de entre a galinha e o ovo, qual deles nasceu primeiro?
Sabemos qual é a cor do cavalo branco de Napoleão… incógnita sobre o privilégio
de uns, os quais já nasceram em berços doirados, superdotados nas diversas e
variadas caminhadas da vida, enveredando por caminhos largos e floridos… com
sorte? Enquanto outros são perseguidos pelo azar, do nascimento até à morte,
transportando a cruz que lhes caiu sobre os ombros, ordenada não se sabe por
quem, segundo a crença de cada religião, mas que, por mais esforços que
façamos, boa vontade e otimismo, esperança e desespero, não se passa da: “cepa
torta”.
Se nos cingirmos à religião cristã cujos pragmatismos
revelam a criação do Mundo e da humanidade, diz-se que somos irmãos, filhos de
um só pai, mas diferentes durante o período de vida… a morte essa não faz a
diferença entre as variadas etnias, as cores que suportamos, as religiões da
nossa crença, e sobretudo entre pobres ricos ou remediados…
Sempre fui pretensioso, e sinto enorme frustração por ter
nascido com fragmentos de vários dons, mas concretamente nenhum capaz de me
diferenciar, de um “bon à rien”como se costuma dizer em terras gaulesas, por
onde andei perdido mas usufruindo de enorme felicidade, durante trinta anos, os
mais maravilhosos da minha singela vida. Quis ser poliglota, e para além do
Português, linguagem da minha naturalidade, sinto o Francês nas entranhas como
uma sonata de Vivaldi, que penetra a escuridão e se prolonga pela noite fora
até aos mais maravilhosos sonhos embalados num leito confortável e acariciados
pelos lençóis de uma alvura singular. Já com o Inglês, apesar dos vários
esforços realizados na aprendizagem, continuo como uma sopa sem sal nem adubo,
lendo como um aluno de 2º ano, e oralmente, considero que falam tão rápido como
o TGV o que me dificulta ao máximo a captação. A propósito aconteceu-me uma
cena com um cliente quando exercia a profissão de táxi driver em Paris, e, no
aeroporto Charles Degaule, carreguei o ditoso cliente para a Gare de Lyon.
Durante o trajeto que separa o aeroporto da cidade, tentamos comunicar em
inglês com grande dificuldade da minha parte, e o meu inglês afrancesado.
Reparando que o cliente desejava perguntar-me algo referente á cidade, e como
não conseguia responder-lhe, sugeri-lhe que me fizesse a pergunta em Italiano.
- Vorrei dare qualche giro i posti più belli di Parigi fino a quando arriva il
momento il mio treno può essere?
-Ah! Sì, lo capisco.
Avanti
Quando voltei à noite e contei o acontecido aos meus colegas
de trabalho, juntos rimos como perdidos… valeu a pena os cursos de inglês que
paguei, aprendi mais com a patroa do bar ao lado da garagem, de origem
Italiana, onde íamos tomar o aperitivo no final do trabalho!
O espanhol era outra linguagem que prezava, pelo facto de
conviver com muitos Espanhóis jovens, que frequentava enquanto praticava o
desporto do futebol. Havia nesta equipa patrocinada pela Citroen onde
trabalhavam muitos Espanhpois dos diversos cantos de Espanha, e o Francisco,
sabendo que eu gostava de ler, emprestou-me uma grande quantidade de livros
escritos em Castelhano que trouxe da sua biblioteca quando finalizou o curso,
que nos tempos vagos, sobretudo à noite, lia.
Quatro linguagens de povos diferentes, mas que eu, teria
gostado aprender, primeiro porque me seria útil na profissão, segundo por
julgar ter o dom, que afinal não tinha…
Comediante foi mais um dos fragmentos do dom que sempre julguei
ter pelas representações teatrais de rua, marchas populares, participações em
comédias improvisadas enquanto miúdo até à adolescência, e uma louca paixão que
surgiu mais tarde quando já vivia em Paris e sempre que me era possível assistia
a peças teatrais, e ia frequentemente ao cinema. Foi um destes filmes que me
marcou profundamente ao ponto de tentar aceder aos cursos das belas artes. O
titulo – Mourir d’aimer -
http://www.interfilmes.com/filme_230394_Morrer.de.Amor-(Mourir.d.aimer).html,
interpretado por Anie Girardot
32
anos, divorciada, com dois filhos, é
professora de uma escola em Rouen em meio aos tumultos de Maio de
1968, ... evolveu-se numa aventura amorosa com um dos seus alunos, menor,
pelo qual se apaixonou, e perante a impossibilidade de dar seguimento à profundidade
deste amor, já consumido, após várias tentativas infrutíferas, optou pelo suicídio,
pedindo n’uma carta que deixou escrita, ao marido, para tratar dos seus filhos
e que perdoassem a sua cobardia. Belíssima interpretação com um fim trágico que
fez subir as lágrimas aos olhos da maioria dos espectadores, complementada com
a magnifica voz do Charles Aznavourg na musica. https://www.youtube.com/watch?v=rAHnc_d10MY
O canto foi outro dos fragmentos fracassados de um dom cuja
voz poderia eventualmente seguir outro caminho com um poucochinho de sorte…. Sobretudo
no fado, cujas letras e musicas conhecia de cor, dos variados cantores desse tempo,
e que dentro do meu carro enquanto vazio, através das ruas e belas avenidas de
Paris, cantava como se estivesse no Olimpia, lugar mítico por onde passaram os
maiores da musica e do canto. Sem ter um ídolo preciso, era fã de todas as
belas canções dos numerosos artistas que vendiam os seus discos, enquanto eu
cantava gratuitamente de A a Z somente pelo prazer… fascinavam-me as letras, e
a musica que me caísse no ouvido penetrava-me enfeitiçando-me ao ponto de
necessitar de poucos ensaios para repetir…
No futebol, que pratiquei durante toda a minha juventude a
um nível amador faltou-me aquela ajuda para saltar o trampolim, considerando as
apreciações de entendidos que diziam ter potencial para voar mais alto…
suposições e nada mais. Hoje sei que é necessário muito talento, para ser bom,
qualquer que seja a modalidade… e eu sempre fui um: “bom à rien”. Nunca fui
capaz de aprender a tocar acordéon, realejo ou guitarra, sentindo-me frustrado…
onde foram parar todos os dons que eu pensava ter? No fundo não passo de um pretensioso
sem fundamento talentoso… gosto de ler e escrever, passando horas até às tantas
da noite, na fumaceira de um quarto, rascunhando e dormir sossegado ainda que
não fosse lido por ninguém… ser ou não ser dotado esta é a questão?