sábado, 14 de novembro de 2020


 "- Como vai dona Ema?

derivado a que o osso da anca iniciou uma revolta contra ela, a que o colesterol aderiu. Felizmente o coração, por enquanto, mantém-se neutro e o médico anda em diligências diplomáticas na esperança de evitar que os ventrículos tomem partido
- São impulsivos os ventrículos, previne ele à dona Ema, as aurículas em geral pacíficas, os ventrículos é o que lhes dá na tola
e a dona Ema, é natural, preocupada com a tola dos ventrículos. Quase oitenta anos se calhar, sei lá, o osso da anca arrasta-se ao andar. Mas anda. Pelo menos por enquanto anda. Anda ela e andam os pombos no passeio em torno da esplanada. Sempre os achei parecidos com chefes de secção, sempre achei que, quando chegam, o mundo fica cheio de funcionários públicos. A dona Ema, a olhar para a minha tosta mista:
- Você o que é que faz como trabalho?
que é uma pergunta sempre difícil para mim. Não vou dizer que escrevo, tenho pudor, não vou dizer que sou médico porque já não faço medicina e os impulsos dos ventrículos escapam-me. Fico a olhar a tosta com ela e parecemos duas pessoas fixadas num quadro de museu. Respondo
- Ando por aí
e a dona Ema a subir da tosta até mim, desconfiada, não vá eu fazer parte do grupo do inspector e encontrar-me na esplanada em trabalho, investigando desvios aos regulamentos de conduta das raparigas do alterne, por vezes dominadas por impulsos autonomistas de País Basco, que umas bofetadas a tempo, graças a Deus, corrigem. As mulheres, largadas à solta, são todas como aquelas de que falava um senhor espanhol: a morte do marido transtornou-a tanto que, de um dia para o outro, o cabelo tornou-se-lhe loiro, e portanto convém andar em cima da fruta. A dona Ema, esperançosa
- Pediram-lhe que se ocupasse de mim?
e eu, não querendo desiludi-la
- Mais ou menos
fazendo-a sonhar com música, penumbra, mesas discretas e clientes sussurrantes, de joelhinho empreendedor, a sonharem com uma hora de ginástica sueca numa pensão a jeito. O problema da dona Ema era a anca
(- Será que aguenta, será que não aguenta?)
que o resto é como andar de bicicleta, não se esquece nunca, e até faz oitos se for preciso. A dona Ema hesitou nesse ponto, a vacilar
- Ainda conseguirei um oito?
e há-de conseguir, dona Ema, se o coração se mantiver neutro é canja.
Tornámos a encontrar-nos no dia seguinte, tornámos a encontrar-nos mais vezes, convidei-a a visitar-me em casa, conversámos disto e daquilo, fomos ganhando amizade, dormimos juntos a verificar os oitos que conseguimos mais ou menos, um bocado tremidos mas conseguimos mais ou menos, a amizade deu lugar à afeição, a afeição deu lugar ao, não direi amor, que oitenta anos sempre são uma barreira, a afeição deu lugar a uma ternura sólida, não cozinha mal, não limpa mal, tem-me o andar arrumado e, acerca de dois meses, mandei-a trazer os tarecos para aqui. Não me sinto aborrecido: tenho companhia à noite e massaja-me os ombros quando chego cansado. Não me trata por Hernâni, trata-me por Nani como a minha madrinha me tratava e uma noite ou outra damos um pulinho ao bar de alterne, onde me apresentou um militar reformado, um pouco a cair da tripeça mas lúcido, que me declarou com entusiasmo
- Tem aí uma pérola
e sem ofensa, até tenho. A idade a gente esquece e também não olho muito para ela. Sento-me no sofá, fecho os olhos, a dona Ema traz-me uma almofada para apoiar a cabeça
- Não estás melhor assim, Nani?
e realmente até estou. Descalço e confortável, com a dona Ema ao lado. De longe em longe um oitozito, basta-me pensar na sobrinha e aí vou eu. Ofereço-lhe uns trocos
(poucos)
para os alfinetes dela, que a dona Ema merece, dedicada, cúmplice. Quando visitamos o médico o doutor segreda-me
- Um dia destes fica-lhe como um passarinho
mas enquanto fica e não fica vivo em sossego. No caso de ficar o meu cunhado, que trabalha no ramo, já me prometeu um funeral em conta. E no dia seguinte lá estarei na esplanada, certo de que no meio dos pombos algum galãozito claro há-de aparecer. " (2013) ANTÓNIO LOBO ANTUNES « A Dona Ema »

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