sábado, 28 de novembro de 2020

Sentimentos

Por António Braz
 

O valor é sempre o mesmo:

Foram tantos os episódios que fizeram parte das nossas vidas que encheriam uma biblioteca de livros ou uma longa metragem de filmes, onde entrariam personagens capazes de representar, quase perfeitamente, cenas passadas no âmbito familiar, em diversificados  contextos, situações sociais, conjeturas cuja precaridade transbordava dos limites humanísticos, recorrendo a perícias de inclinação impetuosa, para lograr das migalhas desperdiçadas, de um pão centeio duro e negro que só ensopado em águas ferventes, com um dente de alho e uma areia de sal, saciariam ou enganariam o estomago por horas ou dias, numa luta constante pela sobrevivência, tal como ainda hoje se vive, em Países supostamente ricos, onde meia dúzia de magnatas, subornados e corruptos, traçam por linhas tortas o destino de gente honrada, honesta a trabalhadora, servindo-se de poderes e relações onde a justiça não existe, e muito menos o lado sentimental.

Noutras famílias, como descreve na perfeição, António Lobo Antunes, o escritor em voga, brincando com as palavras como se fosse plasticina, que tanto admiro e respeito, e que leio frequentemente. Muitas das suas crónicas, situam-se no tempo e em lugares que lhe foram queridos, junto de uma família exemplar, de médicos, desde algumas gerações, onde vigorava a inteligência, mas também a disciplina e o respeito, em casa na rua ou onde quer que um dos seus andasse. Fiquei surpreendentemente convicto de que a quantidade de filhos nunca foi obstáculo para os seus, e cada um do agregado familiar respeitava escrupulosamente as diretivas que regem os procedimentos sem barafustar invejar ou ciúmes, porque quem bem educa não necessita agredir nem sequer repreender.

Sei que hoje tudo modificou, e é verdade ser diferente, porém há valores e princípios que acompanham o ser humano até à eternidade. Para o miúdo que nasceu bem perto de Murçós onde reside há vinte e dois anos, com integração lenta e a certos momentos perturbada, e que assistiu ao desmoronar remisso de uma população numerosa e afetuosa, à desertificação e ao envelhecimento dos poucos que por cá ficaram, vendo partir os pilares que suportavam ventos e marés, nesta terra, com vivacidade e bom senso, a solidão companheira dos longos e dos curtos dias, começa a pesar como um fardo sem esperança de deixar os ombros onde se sente confortável, aguardando os libertadores que por certo jamais virão. Já não há quem acaricie as pedras da calçada, num andar lento ou num corredio desenfreado, as ruas sentem-se tristes e os largos vazios, as casas ou casebres teimam em suicidar-se, uma telha duas pedras, trancando as portas para que os ladrões não entrem e venham roubar a felicidade que presenciaram em tempos idos, enquanto junto das janelas pálidas e doentes, pousa e levanta rapidamente um pardal que resistiu por milagre às guerras dos ervecidas e pesticidas. No chafariz secaram as lágrimas, e as flores nos canteiros deixaram o lugar às silvas invasoras. Ainda se ouve o sino dar as horas, mas até o seu encanto desencantou. Subi a rua como quem sobe a montanha azul, e não encontrei ninguém, falei com Jesus. E na oração, ouvi aquela canção que o Vítor (Poulo) tantas vezes cantava lá para o lado do vale grande: oliveiras castanheiros… e a noite chegou húmida e fria, e com ela os dois tratores carregados de azeitona dos grupos que resistiram ao furacão


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